Crimes vitimando crentes são cada vez mais comuns, trazendo perplexidade à comunidade evangélica.
Pais e amigos de Karla Santos choram em seu enterro: ato de violência gratuita contra jovem evangélica chocou o país.
O crime, ocorrido no fim de março, ganhou as páginas dos jornais de todo o país. A estudante Karla Leal dos Reis, de 25 anos, voltava para casa, na região central do Rio de Janeiro, na companhia do pai, o porteiro Carlos Antônio dos Reis, e da mãe, a vendedora Iolete Fátima Leal dos Reis, após participar de um culto na Igreja Assembleia de Deus da Penha, subúrbio da cidade. A família foi abordada por três assaltantes, por volta das 20h de um domingo, após descer do ônibus. Depois de entregar tudo o que lhe foi exigido, Karla pediu a um dos bandidos que lhe devolvesse o crachá da empresa onde trabalhava como estagiária de administração e sua Bíblia. O criminoso a atendeu, mas, momentos depois, sem nenhuma explicação, disparou na estudante pelas costas, atingindo sua nuca. Karla morreu com o livro nas mãos. No momento do sepultamento, sua mãe ergueu um clamor a Deus: “Senhor, minha filha está descansando em teus braços, mas me dá um consolo. Acalma esta cidade e o rapaz que fez isso, para que ele venha à tua casa. Conforta o coração aflito da mãe dele e de todas as mães que sofrem como eu”.
Ocorrências policiais vitimando evangélicos têm se multiplicado pelo país, fazendo com que os crentes engrossem as pavorosas estatísticas que dão conta de 40 mil mortes violentas por ano no país. Em Uberaba (MG), um evangélico é fuzilado e tomba com a Bíblia na mão. Em São Sebastião (DF), um homem é alvejado com um tiro nas costas em plena Semana Santa, dentro do templo da Assembleia de Deus. Em Vila Kennedy, subúrbio do Rio, um jovem evangélico confessa que matou a ex-namorada por envenenamento, após adicionar chumbinho – fórmula usada para eliminar ratos – em sua comida. Na região metropolitana do Recife (PE), um adolescente de 15 anos foi assassinado em frente ao templo de uma igreja. Na mesma cidade, um evangélico de 47 anos é alvejado por dois motociclistas quando voltava da igreja para sua casa. Em Matriz de Camaragibe (AL), dois homens invadiram uma igreja no centro da cidade e assassinaram a golpes de peixeira um trabalhador rural. E um evangélico de 48 anos foi abatido com um tiro no peito ao lado de sua mulher, logo após ter saído de um culto em Piabetá, no Grande Rio. A polícia suspeita que outro frequentador de sua igreja seja o assassino.
Essa lista chocante de crimes recentes tem em comum o fato de todos envolverem cristãos que morreram de forma violenta em diferentes cidades do Brasil, alguns deles dentro de suas igrejas ou logo após terem participado de momentos de culto a Deus. E a sensação de insegurança, que já afeta a sociedade como um todo, tem entrado com força nas igrejas evangélicas, deixando perplexos muitos crentes acostumados a acreditar no cuidado divino diante das tragédias da vida. Repleta de promessas de proteção – como o Salmo 91, que diz que aquele que habita no abrigo do Altíssimo será livrado do laço do caçador, do veneno mortal e da flecha –, a Bíblia oferece consolo ao que sofre, mas se por um lado a oração da mãe enlutada mostra um profundo entendimento da realidade – muitas vezes dura –, por outro não são poucos os irmãos que se afundam em questionamentos ao tomar conhecimento de crimes como o perpetrado contra Karla.
Para compreender de que modo eventos como esses se coadunam com as Escrituras, antes de mais nada é preciso conhecer o contexto em que é feita cada afirmação sobre a proteção divina. “Quando lemos a Palavra de Deus, temos de examinar todas as passagens que falam sobre determinado tema. Não podemos ler apenas um trecho, como a poesia escrita por um guerreiro num contexto de batalha, e tomá-lo como regra”, pondera o bispo Walter McAlister, primaz da Aliança das Igrejas Cristãs de Nova Vida. Ele explica que, na época do rei Davi, os povos entendiam que, numa guerra, saía vitorioso aquele cujo deus era mais forte. Esse seria o contexto no qual foi escrito o Salmo 91 – bem diferente da realidade brasileira do século 21. “O crente não está blindado por sua devoção a Cristo”, continua McAlister. “O próprio Jesus afirmou que no mundo teríamos aflições. Afinal, aprouve a Deus que seu próprio Filho fosse moído por nossas transgressões. Quanto mais nós”. O bispo aponta um princípio bíblico básico: “Em nosso mundo, coisas boas e ruins acontecem para nós e nossos vizinhos. O livro de Jó deixa isso claro.”
“Ingenuidade” – Aquilo que a letra mostra é comprovado no dia-a-dia. A assistente social e pedagoga Rejane Romero trabalha diariamente com a violência. Pós-graduada em psicologia dos distúrbios de comportamento, ela atua no Conselho de Defesa dos Direitos da Mulher de Belford Roxo, município com alto índice de criminalidade da Baixada Fluminense. Rejane diz que não existem estatísticas conhecidas no país que apontem especificamente quantas vítimas de assassinatos e outros tipos de violência são evangélicas, mas sua experiência mostra que a religião não é fator determinante na hora de se verificar quem sofreu qualquer espécie de ato violento: “Não há uma regra. Os índices de violência independem da tradição religiosa da vítima. Todo tipo de pessoa está sujeito a se tornar mais uma, mas vemos a intervenção divina em muitos casos”, observa. Ela cita como exemplo mulheres que sobrevivem a estupros. “Em metade das ocorrências que registramos, os estupradores deixam suas vítimas vivas por acreditar que estavam mortas e não desmaiadas, ou quando apenas fingiam. Vejo isso como um livramento de Deus”, conclui.
“A violência urbana é um fato social e atinge a todos. Entender que ser evangélico nos manteria livres dessa desarmonia social seria ingenuidade de nossa parte”, afirma o sociólogo Valdemar Figueiredo Filho, pastor da Igreja Batista Central em Niterói (RJ). Ele aponta uma contradição curiosa: apesar do número de evangélicos crescer cada vez mais no Brasil, a sociedade se deteriora mais e mais. A explicação estaria no fato de que a Igreja tem se voltado muito para dentro de si mesma: “Deveríamos ter uma ação voltada para a realidade, mas nos fechamos nos templos. Sem querer, somos excludentes. Precisamos estar menos apegados às estruturas e mais às pessoas. As igrejas precisam estar mais presentes nas suas comunidades.”
Professor de antropologia, sociologia e ciência política, o pastor Valdemar lembra que a discussão sobre o tema não é nova, pois tanto no Antigo quanto no Novo Testamento diversos personagens bíblicos questionaram a prosperidade dos ímpios e o próprio sofrimento. “É importante lembrar que pertencer a Cristo pode trazer prejuízos sociais”, ratifica. “Mas, apesar disso, os cristãos são chamados para proclamar esperança, salvação e libertação a todo tempo. Não podemos é ficar encastelados em nossas igrejas, apontando para a Bíblia e esquecendo da realidade.”
Em artigo publicado em seu website, Ilana Casoy, integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo e membro consultivo da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da Ordem dos Advogados do Brasil, apresenta um panorama duro: “Matar, neste país, é bem barato. Com uma rapidez absurda o assassino está nas ruas, isso quando cumpre algum tempo de cadeia”, protesta. A especialista advoga a busca por soluções científicas, e não mais tentativas infrutíferas que confundem e atrasam a tomada de medidas adequadas e eficientes.
Proteção divina – Há dez anos dedicando-se ao estudo de crimes violentos e assassinatos em série, Ilana dá sua receita: “Todo trabalho de prevenção ou diminuição de criminalidade se inicia com pesquisas relacionadas à infância e família, berço da violência e crime.” Quem sabe, então, os cristãos deveriam devotar menos atenção a certas promessas infundadas e passar a viver mais passagens como Provérbios 22.6: “Ensina a criança no caminho em que deve andar, e, ainda quando for velho, não se desviará dele”. Uma aposta – bíblica – num futuro mais seguro e menos violento.
“Deus nos proteja, já que a Justiça não o faz”. Dentro dessa perspectiva sombria, o pastor Marco Antonio de Oliveira, da Catedral Metodista do Rio de Janeiro, acredita que existe um equívoco quando os cristãos se imaginam acima da realidade. “Não estamos imunes à violência. Não existe uma promessa bíblica de que Deus nos protegerá de todos os males”, sentencia. A proteção divina precisaria, assim, ser entendida como uma afirmação de que a alma do cristão nunca estará perdida, mas sempre com Deus. “Ou seja, as promessas da Bíblia apontam, antes de tudo, para a vida eterna.” Oliveira, que é doutor em teologia, lembra do sofrimento dos apóstolos Pedro e Paulo e de seus colaboradores registrado no livro de Atos dos Apóstolos como um exemplo claro. “Mesmo sofrendo, entendemos que nossa angústia não nos afasta daquilo que está preparado para nós”, sentencia.
Por amor a Cristo
A violência contra os cristãos não é nenhuma novidade na história da Igreja. Desde a gênese do cristianismo, inúmeros seguidores de Jesus têm sido mortos de forma violenta – a diferença é que, noutros tempos, a fé era o principal motivo. Do ano 64 até 313, quando o Edito de Milão proibiu a perseguição aos cristãos, a Igreja enfrentou ciclos de intensa matança e tortura encarniçada, num total de 129 anos. Entre os suplícios enfrentados estavam prisões em cárceres imundos, trabalhos forçados em minas insalubres, torturas de todo tipo e a morte por crucificação, decapitação, feras selvagens e outras práticas cruéis. Naquela época, os cristãos consideravam uma honra e um privilégio morrer por amor ao seu Salvador. São conhecidos relatos como, por exemplo, o do patriarca Policarpo, que, segundo a tradição, ao ser martirizado, no ano 156, fez uma oração que deixa transparecer o espírito da época: “Ó Pai, eu te bendigo por me teres considerado digno de receber o meu prêmio entre os mártires”.
A diferença da violência daquele período para a dos dias de hoje é que os seguidores de Jesus entregavam suas vidas para não negá-lo. Na atualidade, a quantidade de cristãos que morre de forma violenta como consequência de sua fé não é menor do que nos primeiros séculos. Um levantamento da Missão Portas Abertas, que se dedica a monitorar e denunciar a perseguição religiosa por todo o planeta, mostra centenas de relatos de pessoas em diferentes países que são obrigadas a enfrentar os mais diversos tipos de violência devido à sua ligação com o cristianismo. Na Coréia do Norte, por exemplo – nação onde há menor liberdade religiosa em todo mundo contemporâneo –, cerca de 25% dos cristãos estão presos por causa da fé, detidos em prisões e campos militares mantidos pelo regime comunista. Já na China, no período de um ano mais de 600 pastores e líderes cristãos foram encarcerados.
Questionamento sem fim
Triste ironia. O pai da jovem Karla dos Reis, o porteiro Carlos Antônio, conseguiu deixar o alcoolismo graças às orações da filha e ao projeto Esperança na Praça, trabalho que ajuda a recuperar moradores de rua, pessoas envolvidas na criminalidade e dependentes de drogas e álcool na capital fluminense. E o próprio assassino da estudante, o traficante de crack Augusto César de Souza, preso dias depois do crime, também vinha sendo atendido pelo mesmo ministério. “Imagine a dor que estou sentindo”, desabafa o pastor Fábio Borges de Moura, coordenador do projeto.
A tristeza de Fábio só não se equipara à dos pais de Karla, que, imersos em dor, depressão e questionamentos acerca da própria fé, têm sido acompanhados por ele desde o crime, ocorrido em 29 de março. Evidentemente, uma pergunta não quer calar: “Eles questionam por que Deus deixou isso acontecer?”, conta o religioso. “Mas a pergunta que todos deveríamos estar nos fazendo é sobre o que estamos fazendo para que coisas assim não aconteçam”, emenda.
Ele tem dado assistência constante a Carlos e à sua mulher, Ioleti. “Eu procuro respeitar sua dor, mas também mostrar o caminho da esperança.” Pastor Fábio acredita que a morte de Karla e outros irmãos em Cristo seja um alerta para a Igreja contra o pensamento que diz que Deus só está com o cristão enquanto está tudo bem – “Se esta for nossa teologia, teremos constantes crises de fé”, avisa. O convívio com o submundo do crack leva Fábio à conclusão de que a droga sintética, de efeito devastador – cujo consumo só tem aumentado em cidades como o Rio e São Paulo –, está por trás de crimes brutais como o que vitimou Karla, morta quando voltava da igreja. “A Bíblia antigamente impunha respeito; os bandidos respeitavam o crente. Mas o crack acabou com isso. Ele faz o usuário perder a noção de tudo.”
Cristãos na mira
Nos Estados Unidos, país onde a comercialização e o porte de armas têm estímulos legais, ocorrências policiais vitimando cristãos também não são nenhuma novidade. Uma das mais recentes, e que repercutiu no mundo todo, foi a execução de um pastor em pleno sermão. O reverendo Fred Winters, dirigente da Primeira Igreja Batista de Marysville (Illinois), pregava para 150 fiéis quando foi alvejado por um homem que entrara repentinamente no templo. O agressor ainda feriu a faca dois outros crentes antes de ser subjugado pelos membros da igreja e entregue polícia. O assassinato do pastor Winters, de 45 anos, casado e com duas filhas, foi considerado pelos colegas de ministério como um “ataque das forças do inferno”.
Tristemente comuns nos EUA, os crimes praticados por serial killers também contabilizam vítimas evangélicas, como os dois voluntários da agência missionária Jovens com uma Missão (Jocum) mortos pelo pistoleiro Matthew Murray em dezembro de 2007 em pleno centro de treinamento da entidade, no subúrbio de Denver, no estado do Colorado. Murray havia sido expulso da missão três anos antes. Doze horas depois, ele matou duas irmãs e feriu o pai delas no estacionamento da The New Life Church, em Colorado Springs. Ao entrar na igreja, onde provavelmente faria novas vítimas, foi executado por uma guarda de segurança.
Pior foi o crime que aconteceu um ano antes, quando o entregador de leite Charles Roberts invadiu uma escola de uma comunidade rural amish – grupo fechado que pratica um protestantismo de linha ortodoxa – na Pensilvânia e matou cinco meninas entre 6 e 14 anos e se suicidou após ser cercado pela polícia. O assassino pedófilo queria estuprar as crianças e contou a um policial com quem negociava estar traumatizado com a perda, nove anos antes, de um bebê prematuro – o rapaz queria “vingar-se de Deus”. O líder da comunidade, Sam Fisher, sugeriu que Roberts pode não ter sido totalmente responsável pelo crime. “O diabo o controlou”, disse na ocasião.