domingo, 15 de agosto de 2010

O Vendedor de Sonhos.


Dedico este romance aos queridos leitores de todos os países
onde meus livros têm sido publicados. Em especial aos que de
alguma forma vendem sonhos por meio da sua inteligência, crítica,
sensibilidade, generosidade, amabilidade. Os vendedores de
sonhos são freqüentemente estranhos no ninho social. São
anormais. Pois o normal é chafurdar na lama do individualismo,
do egocentrismo, do personalismo. O seu legado será inesquecível

Prefácio

Este é meu quarto livro de ficção e meu vigésimo segundo
livro. Meus romances, como O futuro da humanidade e A ditadura
da beleza, não objetivam criar tramas que apenas entretêm,
divertem, excitam a emoção. Todos eles envolvem teses
psicológicas, psiquiátricas, sociológicas e filosóficas. Têm a
intenção de provocar o debate, viajar no mundo das idéias e
ultrapassar as fronteiras do preconceito.
Escrevo continuamente há mais de vinte e cinco anos e
publico há pouco mais de oito anos. Tenho mais de 3 mil páginas
ainda inéditas, não publicadas. Muitos não entendem por que
meus livros são tão procurados, já que não tenho atração por
propagandas e, dentro do possível, possuo uma vida social um
tanto reclusa. Talvez seja- por causa das viagens pelo território do
insondável mundo da mente humana. Sinceramente, não mereço
esse sucesso. Não sou um autor capaz de produzir textos com
agilidade. Sou, sim, um escritor determinado. Costumo brincar
que sou um grande teimoso. Procuro ser um artesão das palavras.
Escrevo e reescrevo continuamente cada parágrafo, dia e noite,
como se fosse um escultor compulsivo. Você vai ver neste romance
diversos pensamentos que foram esculpidos depois de terem sido
reescritos, forjados em minha psique dez ou vinte vezes.
Há livros que saem do cerne do intelecto; outros saem das
entranhas da emoção. O vendedor de sonhos saiu dos recônditos
desses dois espaços. Há muitos anos o venho elaborando, até que
chegou o momento de escrevê-lo. Enquanto o escrevia, fui
bombardeado com inumeráveis questionamentos, sorri muito e ao
mesmo tempo repensei nossas loucuras, pelo menos as minhas.
Este romance passeia pelos vales do drama e da sátira, pela
tragédia dos que perderam e pela ingenuidade dos que fizeram da
existência o picadeiro de um circo.
O personagem principal é dotado de uma ousadia sem
precedente. Ele esconde muitos segredos. Nada, ninguém consegue
controlar seus gestos e palavras, a não ser sua própria
consciência. Sai bradando aos quatro ventos que as sociedades
modernas se tornaram um grande manicômio global, onde o
normal é ser ansioso, estressado, e o anormal é ser saudável,
tranqüilo, sereno. Ele instiga a mente de todos os que passam por
ele, seja nas ruas, nas empresas, nos shoppings, nas escolas, com
o método socrático. Torpedeia as pessoas com inumeráveis
perguntas.
Sonho que este livro possa ser lido não apenas pelos adultos,
mas também pelos jovens, pois penso que muitos deles estão se
tornando servos passivos do sistema social. Não são arrebatados
pelos sonhos e pelas aventuras. Tornaram-se, apesar das exceções,
consumidores de produtos e serviços e não de idéias. Entretanto,
consciente ou inconscientemente, todos querem uma vida regada a
emoções borbulhantes, até bebês quando se arriscam a sair do
berço. Mas onde encontrá-las em abundância? Em que espaço da
sociedade tais emoções se encontram? Alguns pagam muito
dinheiro para consegui-las, mas vivem angustiados. Outros se
desesperam em busca de fama e reputação, mas morrem
entediados. Outros ainda escalam íngremes montanhas para ter
algumas doses de aventura, mas elas se dissipam no calor do dia
seguinte. Na contramão da massacrante rotina social estão os
personagens deste romance. Eles viverão altas doses de adrenalina
diariamente. Entretanto, o "negócio" de vender sonhos tem um alto
preço. Por isso, riscos e vendavais os acompanharão.

O encontro

No mais inspirador dos dias, sexta-feira, cinco da tarde,
pessoas apressadas — como de costume — paravam e se
aglomeravam num entroncamento central da grande metrópole.
Olhavam para o alto, aflitas, no cruzamento da Rua América com a
Avenida Europa. O som estridente de um carro de bombeiros
invadia os cérebros, anunciando perigo. Uma ambulância
procurava furar o trânsito engarrafado para se aproximar do local.
Os bombeiros chegaram com rapidez e isolaram a área,
impedindo os espectadores de se aproximar do imponente Edifício
San Pablo, pertencente ao grupo Alfa, um dos maiores
conglomerados empresariais do mundo. Os cidadãos se
entreolhavam, e os transeuntes que chegavam pouco a pouco
traziam no semblante uma interrogação. O que estaria
acontecendo? Que movimento era aquele? As pessoas apontavam
para o alto. No vigésimo andar, num parapeito do belo edifício de
vidro espelhado, debruçava-se um suicida.
Mais um ser humano queria abreviar a já brevíssima
existência. Mais uma pessoa planejava desistir de viver. Era um
tempo saturado de tristeza. Morriam mais pessoas interrompendo
a própria vida do que nas guerras e nos homicídios. Os números
deixavam atônitos os que refletiam sobre eles. A experiência do
prazer havia se tornado larga como um oceano, mas tão rasa
quanto um espelho d’água. Muitos privilegiados financeira e
intelectualmente viviam vazios, entediados, ilhados em seu mundo.
O sistema social assolava não apenas os miseráveis, mas também
os abastados.
O suicida do San Pablo era um homem de quarenta anos,
face bem torneada, sobrancelhas fortes, pele de poucas rugas,
cabelos grisalhos semilongos e bem-tratados. Sua erudição,
esculpida por muitos anos de instrução, agora se resumia a pó.
Das cinco línguas que falava, nenhuma lhe fora útil para falar
consigo mesmo; nenhuma lhe dera condições de compreender o
idioma de seus fantasmas interiores. Fora asfixiado por uma crise
depressiva. Vivia sem sentido. Nada o encantava.
Naquele momento, apenas o último instante parecia atraí-lo.
Esse fenômeno monstruoso que costumam chamar de morte
parecia tão aterrador... mas era, também, uma solução mágica
para aliviar os transtornos humanos. Nada parecia demover aquele
homem da idéia de acabar com a própria vida. Ele olhou para
cima, como se quisesse se redimir do seu último ato, olhou para
baixo e deu dois passos apressados, sem se importar em
despencar. A multidão sussurrou de pavor, pensando que ele
saltaria.
Alguns observadores mordiam os dedos em grande tensão.
Outros nem piscavam os olhos, para não perder detalhes da cena
— o ser humano detesta a dor, mas tem uma fortíssima atração
por ela; rejeita os acidentes, as mazelas e misérias, mas eles
seduzem sua retina. O desfecho daquele ato traria angústia e
insônia aos espectadores, mas eles resistiam a abandonar a cena
de terror. Em contraste com a platéia ansiosa, os motoristas
parados no trânsito estavam impacientes, buzinavam sem parar.
Alguns colocavam a cabeça janela afora e vociferavam: ”Pula logo e
acaba com esse show!”.
Os bombeiros e o chefe de polícia subiram até o topo do
edifício para tentar dissuadir o suicida. Não tiveram êxito. Diante
do fracasso, um renomado psiquiatra foi chamado às pressas para
realizar a empreitada. O médico tentou conquistar a confiança do
homem, estimulou-o a pensar nas conseqüências daquele ato...
mas nada. O suicida estava farto de técnicas, já havia feito quatro
tratamentos psiquiátricos malsucedidos. Aos berros, ameaçava:
”Mais um passo e eu pulo!”. Tinha uma única certeza, ”a morte o
silenciaria”, pelo menos acreditava que sim. Sua decisão estava
tomada, com ou sem platéia. Sua mente se fixava em suas
frustrações, remoia suas mazelas, alimentava a fervura da sua
angústia.
Enquanto se desenrolavam esses acontecimentos no alto do
edifício, apareceu sorrateiramente um homem no meio da
multidão, pedindo passagem. Aparentemente era mais um
caminhante, só que malvestido. Trajava uma camisa azul de
mangas compridas desbotada, com algumas manchas pretas. E
um blazer preto amassado. Não usava gravata. A calça preta
também estava amassada, parecia que não via água há uma
semana. Cabelos grisalhos ao redor da orelha, um pouco
compridos e despenteados. Barba relativamente longa, sem cortar
há algum tempo. Pele seca e com rugas sobressaltadas no
contorno dos olhos e nos vincos do rosto, evidenciando que às
vezes dormia ao relento. Tinha entre trinta e quarenta anos, mas
aparentava mais idade. Não expressava ser uma autoridade
política nem espiritual, e muito menos intelectual. Sua figura
estava mais próxima de um desprivilegiado social do que de um
ícone do sistema.
Sua aparência sem magnetismo contrastava com os
movimentos delicados dos seus gestos. Tocava suavemente os
ombros das pessoas, abria um sorriso e passava por elas. As
pessoas não sabiam descrever a sensação que tinham ao ser
tocadas por ele, mas eram estimuladas a abrir-lhe espaço.
O caminhante aproximou-se do cordão de isolamento dos
bombeiros. Foi impedido de entrar. Mas, desrespeitando o
bloqueio, fitou os olhos dos que o barravam e expressou
categoricamente:
— Eu preciso entrar. Ele está me esperando. — Os bombeiros
o olharam de cima a baixo e menearam a cabeça. Parecia mais
alguém que precisava de assistência do que uma pessoa útil numa
situação tão tensa.
— Qual o seu nome? — indagaram sem pestanejar.
— Não importa neste momento! — respondeu firmemente o
misterioso homem..
— Quem o chamou? — questionaram os bombeiros.
— Você saberá! E se demorarem me interrogando, terão de
preparar mais um funeral — disse, elevando os olhos.
Os bombeiros começaram a suar. Um tinha síndrome do
pânico, outro era insone. A última frase do misterioso homem os
perturbou. Ousadamente ele passou por eles. Afinal de contas,
pensaram, ”talvez seja um psiquiatra excêntrico ou um parente do
suicida”.
Chegando ao topo do edifício, foi barrado novamente. O chefe
de polícia foi grosseiro.
— Parado aí. Você não devia estar aqui. — Disse que ele
deveria descer imediatamente. Mas o enigmático homem fitou-lhe
os olhos e retrucou:
— Como não posso entrar, se fui chamado?
O chefe de polícia olhou para o psiquiatra, que olhou para o
chefe dos bombeiros. Faziam sinais um para o outro para saber
quem o chamara. Bastaram alguns segundos de distração para
que o misterioso malvestido saísse da zona de segurança e se
aproximasse perigosamente do homem que estava próximo de seu
último fôlego.
Quando o viram, não dava mais tempo para interrompê-lo.
Qualquer advertência que fizessem contra ele poderia desencadear
o acidente, levando o suicida a executar sua intenção. Tensos,
preferiram aguardar o desenrolar dos fatos.
O homem chegou sem pedir licença e sem se perturbar com a
possibilidade de o suicida se atirar do edifício. Pegou-o de
surpresa, ficando a três metros dele. Ao perceber o invasor, o outro
gritou imediatamente:
— Vá embora, senão vou me matar!
O forasteiro ficou indiferente a essa ameaça. Com a maior
naturalidade do mundo, sentou-se no parapeito do edifício, tirou
um sanduíche do bolso do paletó e começou a comê-lo
prazerosamente. Entre uma mordida e outra, assoviava uma
música, feliz da vida.
O suicida ficou abalado. Sentiu-se desprestigiado, afrontado,
desrespeitado em seus sentimentos.
Aos berros, clamou:
— Pare com essa música. Eu vou me jogar. Intrépido, o
estranho homem reagiu:
— Você quer fazer o favor de não perturbar meu jantar?!
- disse com veemência. E deu mais umas boas mordidas,
mexendo as pernas com prazer. Em seguida, olhou para o suicida
e fez um gesto, oferecendo-lhe um pedaço.
Ao ver esse gesto, o chefe de polícia tremulou os lábios, o
psiquiatra estatelou os olhos e o chefe dos bombeiros franziu a
testa, perplexo.
O suicida ficou sem reação. Pensou consigo: ”Não é possível!
Achei alguém mais maluco do que eu”.
Ver alguém comer um sanduíche com eloqüente prazer diante
de quem estava para se matar era um cena surreal. Parecia
extraída de um filme. O suicida fechou parcialmente os olhos,
aumentou um pouco a freqüência respiratória e contraiu ainda
mais os músculos da face. Não sabia se atirava, se gritava, se
bronqueava com o estranho. Ofegante, bradou, altissonante:
— Se manda! Eu vou me atirar. — E ficou a um fio de cair.
Parecia que dessa vez ele realmente se esborracharia no chão. A
multidão sussurrou, apavorada, e o chefe de polícia colocou as
mãos nos olhos para não ver a desgraça.
Todos esperavam que, para evitar o acidente, o estranho
homem se retirasse imediatamente de cena. Ele poderia dizer,
como fizeram o psiquiatra e o policial: ”Não faça isso! Eu vou
embora”, ou dar um conselho do tipo: ”A vida é bela. Você pode
superar seus problemas. Você tem muitos anos pela frente”.
Entretanto, num sobressalto, colocou-se rapidamente em pé e,
para assombro de todos e em especial do suicida, bradou um
poema filosófico em voz alta. Declamava-o para os céus e apontava
as mãos na direção daquele que queria exterminar seu fôlego de
vida:
Seja anulado no parêntese do tempo o dia em que
este homem nasceu!
Que na manhã desse dia seja dissipado o orvalho
que
Umedece a relva!
Que seja retida a claridade da tarde que trouxe
júbilo
aos caminhantes!
Que a noite em que este homem foi concebido seja
usurpada pela angústia!
Resgate-se dessa noite o brilho das estrelas que
pontilhavam o céu!
Recolham-se da sua infância seus sorrisos e seus
medos!
Anulem-se da sua meninice suas peripécias e suas
aventuras!
Risquem-se da sua maturidade seus sonhos e
pesadelos,
sua lucidez e suas loucuras!
Após ter recitado o poema a plenos pulmões, o estranho
expressou um ar de tristeza e, abaixando o tom de voz, disse o
número um, sem dar qualquer explicação da contagem. A
multidão, atônita, perguntava-se se aquilo não era uma peça de
teatro a céu aberto. Tampouco o policial sabia como reagir: seria
melhor intervir ou continuar acompanhando o desenrolar dos
fatos? O chefe dos bombeiros olhou para o psiquiatra, pedindo
explicações. Confuso, ele disse:
— Não conheço nada na literatura sobre anular a existência,
recolher sorrisos. Não entendo de poesia... Deve ser mais um
maluco!
O suicida ficou pasmado, quase em estado de choque. As
palavras do forasteiro ecoaram em sua mente sem que ele lhes
desse permissão. Indignado, reagiu com violência:
— Quem é você para querer assassinar o meu passado?! Que
direito tem de destruir minha infância? Que ousadia é essa? —
Após agredir o invasor com essas frases, caiu em si e pensou:
”Será que não sou eu o autor desse assassinato?”. Mas lutava para
dissipar qualquer ponderação.
Vendo-o circunspecto, o misterioso homem teve o atrevimento
de provocá-lo ainda mais:
— Cuidado! Pensar é perigoso, principalmente para quem
quer morrer. Se quiser se matar, não pense.
O suicida ficou embaraçado; fora fisgado pelo invasor. Pensou
consigo: ”Esse sujeito está me encorajando a morrer ou o quê?
Será que estou diante de um sádico? Será que ele quer ver
sangue?”. Sacudiu a cabeça, como se assim pudesse interromper
seus devaneios, mas os pensamentos sempre traem os desejos
impulsivos. Percebendo a confusão mental do suicida, o estranho
homem falou com suavidade, mas com não menos contundência:
— Não pense! Porque, se você pensar, vai perceber que quem
se mata comete homicídios múltiplos: mata primeiro a si, e depois,
aos poucos, os que ficam. Se pensar, entenderá que a culpa, os
erros, as decepções e as desgraças são privilégios de uma vida
consciente. A morte não tem esses privilégios! — Em seguida, o
forasteiro saiu do estado de segurança e passou para o de
angústia. Disse o número quatro e movimentou indignadamente a
cabeça.
O suicida ficou paralisado. Queria rejeitar as idéias do
forasteiro, mas elas pareciam um vírus penetrando nos circuitos
de sua mente. Que palavras eram aquelas? Perturbado e tentando
resistir às reflexões, enfrentou o forasteiro:
— Quem é você que, em vez de me poupar, me confronta? Por
que não me trata como um miserável doente mental, digno de
pena? — e, aumentando o tom de voz, decretou: — Cai fora! Sou
um homem completamente acabado.
Em vez de se intimidar, o estranho homem perdeu a
paciência e censurou seu interlocutor perturbado:
— Quem disse que você é uma pessoa frágil ou um pobre
deprimido que esgotou o prazer de viver? Ou um desprivilegiado...
um frustrado? Ou um moribundo que não consegue carregai o
peso das suas perdas? Para mim, você não é nada disso. Para
mim, você é apenas um homem orgulhoso, preso na sua gaiola
emocional, alienado de misérias maiores que a sua.
O suicida colocou as duas mãos para trás e se afastou,
assustado, da linha de tiro em que se encontrava. Com raiva e a
voz já embargada, indagou:
— Quem é você para me chamar de orgulhoso, um prisioneiro
em minha gaiola emocional? Quem é você para dizer que estou
alienado de sofrimentos maiores que os meus?!
Ele sentia-se alvejado no peito, sem ar. O intruso acertara na
mosca. Seus pensamentos penetraram como um raio nos
recônditos da sua psique. Naquele momento, o triste homem
pensou no pai, que lhe esmagara a infância, lhe causara muita
dor. Seu pai emocionalmente distante, alienado, enclausurado em
si mesmo. Mas o suicida não tocava nesse assunto com ninguém;
era-lhe extremamente difícil lidar com as cicatrizes do passado.
Atingido por essas recordações angustiantes, disse em tom mais
ameno, com lágrimas nos olhos:
—Cale-se. Não fale mais nada. Deixe-me morrer em paz. Ao
perceber que havia tocado numa ferida profunda, o homem que o
questionava diminuiu também o tom de voz.
— Eu respeito a sua dor e não posso elaborar nenhuma tese
sobre ela. Sua dor é única, e é a única que você consegue
realmente sentir. Ela te pertence e a mais ninguém.
Essas palavras iluminaram os pensamentos do homem quase
em prantos. Ele entendeu que ninguém pode julgar a dor dos
outros. Compreendeu que a dor de seu pai era única e, portanto,
não poderia ser sentida ou avaliada por mais ninguém a não ser
por ele mesmo. Sempre condenara veementemente seu pai, mas
começou a vê-lo, pela primeira vez, com outros olhos. Nesse
instante, para sua surpresa, o intruso lhe teceu algumas palavras
que era difícil dizer se eram elogios ou críticas:
— Para mim, você é também um ser humano corajoso, pois
tenciona esmagar seu corpo em troca de uma longa noite de sono
no claustro de um túmulo! É, sem dúvida, uma bela ilusão — e
interrompeu seu discurso, para que o suicida se desse conta das
conseqüências imprevisíveis do seu ato.
Mais uma vez, o homem deprimido interrogou-se sobre
aquela estranha figura que havia surgido para atrapalhar seus
planos. Que homem era esse? Que palavras! Uma noite de sono
eterno no claustro de um túmulo... essa idéia lhe causava
repugnância. Porém, insistindo em levar seu projeto adiante,
rebateu:
— Não vejo motivo para continuar esta merda de vida! —
resmungou veementemente, e franziu a testa, atormentado pelas
idéias que vinham sem pedir licença. O forasteiro calibrou a
potente voz e o confrontou energicamente:
— Merda de vida? Mas que ingratidão! Seu coração, nesse
instante, deve estar querendo rasgar seu tórax e protestar com
lágrimas de sangue o extermínio da vida! — e, com rara
eloqüência, mudou o timbre, tentando traduzir a voz do coração do
suicida: — ”Não! Não! Tenha compaixão de mim! Eu bombeei seu
sangue incansavelmente, milhões de vezes. Supri suas
necessidades... fui seu servo sem reclamar. E agora você quer me
calar, sem nem me dar direito de defesa? Ora... eu fui o mais fiel
dos escravos. E qual é o meu prêmio? Qual a minha recompensa?
Uma morte estúpida! Você quer interromper minha pulsação só
para estancar seu sofrimento. Ah! Mas que tremendo egoísta você
é! Quem me dera eu lhe pudesse bombear coragem! Enfrente a
vida, seu egocêntrico!” — e, instigando o suicida, pediu que ele
prestasse atenção no peito para perceber o desespero do seu
coração.
O homem sentiu a camisa vibrar. Não notara que seu coração
estava quase a explodir. Parecia que, de fato, estava gritando
dentro do peito. O suicida arrefeceu. Ficou impressionado com o
impacto da fala daquele estranho em seus pensamentos. Mas,
quando parecia derrotado, mostrou o pouco da determinação que
lhe restava.
— Já me sentenciei a morte. Não há esperança.
O maltrapilho, então, lhe deu o golpe derradeiro:
— Você já se sentenciou? Você sabia que o suicídio é a
condenação mais injusta? Porque quem se mata executa contra si
mesmo uma sentença fatal sem ao menos se dar o direito de
defesa. Por que se auto-condena sem se defender? Por que não se
dá o direito de argumentar com seus fantasmas, encarar suas
perdas e lutar contra suas idéias pessimistas? É mais fácil dizer
que não vale a pena viver... Você é realmente injusto consigo
mesmo!
O estranho demonstrava saber com maestria que os que
tiram a própria vida, ainda que planejem sua morte, não têm
consciência das dimensões do fim da existência. Sabia que, se
vissem o desespero dos íntimos e as conseqüências indecifráveis
do suicídio, voltariam atrás e se defenderiam. Sabia que nenhuma
carta ou bilhete poderia ser atestado de defesa. O homem do topo
do Edifício San Pablo havia deixado uma mensagem para seu
único filho, tentando explicar o inexplicável.
Ele também já tinha comentado com seus psiquiatras e
psicólogos sobre suas idéias de suicídio. Fora analisado,
interpretado, diagnosticado, e ouvira muitas teses sobre suas
deficiências metabólicas cerebrais, bem como fora encorajado a
superar seus conflitos e ver seus problemas sob diversos ângulos.
Mas nada tocava aquele rígido intelectual. Nenhuma dessas
intervenções ou explicações o retirou do seu atoleiro emocional.
O homem era inacessível. Mas estava pela primeira vez
atordoado por aquela pessoa estranha que o interpelava no topo do
edifício. A julgar pelas vestes e pela aparência humilde, tratava-se
de um miserável que pedia esmolas. Contudo, as idéias e o
discurso deixavam entrever um especialista em abalar mentes
impenetráveis. Suas palavras geravam mais inquietação do que
tranqüilidade. Parece que sabia que sem inquietação não há
questionamento, e que sem questionamento não se encontram
alternativas, não se abre o leque de possibilidades. A ansiedade do
suicida aumentou tato que ele acabou por decidir fazer ao
forasteiro uma pergunta; resistira muito a fazê-la, pois havia
presumido, pelos primeiros embates, que entraria num campo
minado. E entrou.
— Quem é você?
O suicida ansiava por uma resposta curta e clara, mas ela
não veio. Em vez disso, mais uma rajada de indagações.
— Quem sou eu? Como você ousa perguntar quem eu sou se
não sabe quem você é? Quem é você, que procura na morte
silenciar sua existência diante de uma platéia assombrada?
Tentando desdenhar do homem que o interpelava, o suicida
retrucou com certo sarcasmo:
— Eu? Quem eu sou? Sou um homem que em poucos
momentos deixará de existir. E já não saberei quem sou e o que
fui.
— Pois eu sou diferente de você. Porque você parou de
procurar a si mesmo. Tornou-se um deus. Enquanto eu
diariamente me pergunto: ”Quem sou?”. - E mostrando astúcia, fez
outra pergunta: — E quer saber qual é a resposta que encontrei?
O suicida, constrangido, meneou a cabeça, dizendo que sim.
O forasteiro prosseguiu:
— Eu lhe respondo se primeiramente me responder. De que
fonte filosófica, religiosa ou científica você bebeu para defender a
tese de que a morte é o fim da existência? Somos átomos vivos que
se desintegram para nunca mais resgatar a sua estrutura? Somos
apenas um cérebro organizado ou temos uma psique que coexiste
com o cérebro e transcende seus limites? Que mortal o sabe? Você
sabe? Que religioso pode defender seu pensamento se não usar o
elemento da fé? Que neurocientista pode defender seus
argumentos se não usar o fenômeno da especulação? Que ateu ou
agnóstico pode defender suas idéias sem margem de insegurança e
sem distorções?
O forasteiro parecia ter conhecido e ampliado o método
socrático. Fazia intermináveis indagações. O suicida ficou
atordoado com essa explosão de perguntas. Era um ateu, mas
descobriu que seu ateísmo era uma fonte de especulação. Como
muitos ”normais”, dissertava teses sobre esses fenômenos com
uma segurança insustentável, sem nunca debatê-las isentas de
paixões e tendências.
O homem de roupas rotas e semblante circunspeto dirigia
sua máquina de perguntar também a si mesmo. E, antes de
receber qualquer resposta, definitiva ou provisória, de quem o
ouvia, deu um ultimato:
— Somos dois ignorantes. A diferença entre nós é que eu
reconheço que sou.

Emocional

Enquanto grandes idéias eram debatidas no topo do edifício,
algumas poucas pessoas da multidão se afastavam sem saber o
que estava acontecendo. Não suportavam esperar o desfecho final
da desgraça alheia. Mas a maioria permanecia firme; não queriam
perder o desenrolar dos fatos.
De repente, apareceu no meio do povo um homem curtido no
uísque e na vodca, chamado Bartolomeu. Era mais um ser
humano com cicatrizes ocultas, embora fosse extremamente bemhumorado
e, em alguns momentos, petulante. Cabelos pretos
desgrenhados, relativamente curtos, que há semanas não viam
pente nem provavelmente água. Tinha mais de trinta anos. Pele
clara, sobrancelhas exaltadas, rosto um pouco inchado, que
escondia as cicatrizes da surrada existência. Trançava as pernas
ao andar, de tão bêbado que estava. Com a voz pastosa e a língua
presa, esbarrava em algumas pessoas e, em vez de agradecer pelo
apoio, reclamava. Para uns, dizia:
— Ei, você me atropelou. Não vê que estou na mão esquerda?
Para outros, falava:
— Dá licença, amigo, que estou com pressa. Bartolomeu deu
alguns passos a mais e tropeçou na sarjeta.
Para não se espatifar no chão, tentou se apoiar onde pôde,
até que encontrou uma velhinha e caiu por cima dela. A coitada
quase quebrou a coluna. Tentando se desvencilhar dele, deu-lhe
uma bengalada na cabeça e gritou, assustada:
— Sai de cima, seu tarado!
Ele não tinha força para se deslocar. Vendo a velhinha gritar
sem parar, para não ficar em maus lençóis, gritou mais alto que
ela.
— Socorro! Gente, me açode! Esta velhinha está me
agarrando.
As pessoas próximas deslocaram os olhos do céu para a terra.
Fitaram a reação do bêbado. Percebendo sua astúcia, tiraram-no
de cima da velhota, deram-lhe uns empurrões e disseram:
— Sai para lá, seu malandro.
Mas ele, não querendo sair por baixo, falou, todo
atabalhoado:
— Obrigado, gente, por esse empu... empu... — Estava tão
embriagado que ensaiou três vezes falar a palavra
”empurrãozinho”. - Em seguida, tentou sacudir a poeira da calça e
quase caiu de novo:
— Vocês me salvaram dessa...
A velhinha estava de prontidão quando ele ameaçou caluniála.
Levantou sem titubear a bengala e preparou-se para desferi-la
novamente em sua cabeça, mas o esperto corrigiu-se a tempo.
— ... dessa senhora bonitona...
E deixou o campo de batalha. Começou a andar. Enquanto
caminhava por entre a aglomeração, perguntava-se, intrigado, por
que todo mundo estava compenetrado, olhando para cima. Achou
que as pessoas estavam vendo um extraterrestre. Olhou para o
alto do edifício com dificuldade e, tumultuando mais uma vez o
ambiente, começou a gritar:
— Estou vendo! Estou vendo o E.T. Cuidado, gente! Ele é
amarelo e chifrudo. E tem uma arma nas mãos!
Na realidade, Bartolomeu estava alucinando. Sua mente
estava tão perturbada que construía imagens irreais. Não era um
alcoólatra comum, era um amotinador. Além de beber tudo que
estivesse à sua frente, era um especialista em chamar a atenção
social. Por isso seu apelido era Boquinha de Mel. Amava beber e
amava mais ainda falar. Aliás, os amigos mais íntimos diziam que
tinha a SCF, a síndrome compulsiva de falar.
Ele agarrava as pessoas próximas, estimulando-as a ver o
que só ele via. Elas tentavam se soltar das mãos dele com safanões
e xingamentos.
O bêbedo balbuciava:
— Que povo mal-educado! Só porque vi primeiro o E.T. eles
morrem de inveja.
Enquanto isso, no topo do San Pablo, o homem que pensara
em desistir da vida começou a pensar que, na verdade, precisava
exterminar era seu preconceito, pois estava repleto de idéias vazias
e conceitos superficiais sobre a vida e a morte. Exaltava a própria
cultura, mas agora precisava exaltar a própria ignorância — um
comportamento improvável (e até doloroso) para quem sempre se
julgara um brilhante intelectual. Dentro do mundo acadêmico, ele
parecia ter vastos conhecimentos, que ostentava com tanto
orgulho, mas nunca poucos minutos haviam sido tão longos para
fazê-lo enxergar a sua insensatez.
Sentiu que estava tomando uma ducha de serenidade. E essa
ducha não parava de jorrar do homem saturado de incógnitas e
sem glamour social. Como se não bastasse o que havia argüido, o
forasteiro ampliou o bombardeamento. Fez um passeio pela
história de um grande pensador:
— Por que Darwin, nos instantes finais de sua vida, quando
sofria de intoleráveis náuseas e vômitos, bradava ”Deus meu”? Era
ele um fraco ao clamar por Deus diante do esgotamento de suas
forças? Era ele um covarde por se perturbar diante da dor e, ao se
aproximar da morte, considerá-la um fenômeno antinatural,
embora a sua teoria se fundamentasse em processos naturais da
seleção das espécies? Por que ocorreu um grave conflito entre sua
existência e sua teoria? A morte é o fim ou o começo? Nela nos
perdemos ou nos encontramos? Será que, quando morremos,
somos regurgitados da História como atores que nunca mais
contracenam?
O suicida reagiu com espanto, engoliu saliva. Nunca havia
pensado nessas questões. Jamais refletira sobre a hipótese de que,
de forma tão singela quanto um bebê que regurgita o leite que o
amamentou, ele, ao querer morrer, estaria regurgitando sua
história da História. Embora fosse partidário da teoria da evolução,
desconhecia o homem Darwin e seus conflitos. Mas será que
Darwin havia sido incoerente e frágil? Não... não podia ser.
”Darwin não desistiu de viver. Ele certamente se apaixonou pela
vida muito mais do que eu”, pensou.
A sensação que tinha era de que o homem das questões
inumeráveis lhe tirara a roupa da soberba sem pedir permissão.
Enquanto o coração se acalmava, procurou recuperar o fôlego,
como se pegasse carona no ar que aspirava para percorrer áreas de
sua mente jamais percorridas. Respondeu com franqueza:
— Não, não sei. Jamais pensei nessas questões.
E o forasteiro emendou:
— Trabalhamos, compramos, vendemos e construímos
relações sociais; discorremos sobre política, economia e ciências,
mas no fundo somos meninos brincando no teatro da existência,
sem poder alcançar sua complexidade. Escrevemos milhões de
livros e os armazenamos em imensas bibliotecas, mas somos
apenas crianças. Não sabemos quase nada sobre o que somos.
Somos bilhões de meninos que, por décadas a fio, brincam neste
deslumbrante planeta.
O suicida diminuiu a respiração. Começou a resgatar sua
história e sua identidade. Júlio César Lambert — esse era o seu
nome — era portador de raciocínio arguto, rápido, privilegiado. Em
sua promissora carreira acadêmica, quando defendera suas teses
de mestrado e doutorado, obtivera notas máximas com louvor.
Também havia participado de muitas bancas como avaliador de
trabalhos alheios. Perturbava mestrandos e doutorandos com suas
críticas ácidas. Sempre fora um ególatra, e sua expectativa era a
de que os outros gravitassem na órbita da sua inteligência. Agora,
no entanto, participava de uma banca cujo avaliador era um
maltrapilho. Sentia-se uma criança indefesa diante dos próprios
medos e da própria falta de sabedoria. Mas, pela primeira vez, foi
chamado de menino, e não se contorceu de raiva, pela primeira vez
teve prazer em reconhecer sua pequenez. Já não se sentia um
homem diante do próprio fim; via-se como um ser humano em
reconstrução.
As loucuras só podem ser tratadas quando abandonam seus
disfarces. E Júlio César se escondia atrás de sua eloqüência,
cultura e status acadêmico. Agora, começava a remover suas
camuflagens. Haveria um longo caminho pela frente.
O sol já se punha no horizonte. E o suicídio se dissipava no
topo do San Pablo. Nesse momento, o homem que resgatara Júlio
César citou o número vinte, mostrando-se consumido por um
estado de aflição. Júlio César, intrigado, questionou:
— Por que você cita números enquanto conversamos?
O homem não respondeu de imediato. Olhou para o
horizonte, viu várias luzes se acendendo, mas outras se apagavam.
Respirou lentamente, como se quisesse estar presente em todos os
lugares para reacendê-las. Virou o rosto para Júlio César,
penetrou profundamente em seus olhos e falou, com tensa
suavidade:
— Por que eu conto números? No breve intervalo de tempo
em que permanecemos no alto deste edifício, vinte pessoas
fecharam os olhos para sempre. Vinte pessoas desistiram de viver.
Vinte seres humanos não deram o direito de defesa a si mesmos,
como você não dava. Pessoas que um dia brincaram, amaram,
choraram, batalharam, recuaram... agora deixam um rastro de dor
na memória dos que ficam.
Júlio César não entendia a apurada sensibilidade daquele
homem. Quem era ele? O que vivera para ter tamanha afetividade?
O sagaz professor tentava definir o intruso, sem êxito. E, num
lance de olhar, percebeu que o forasteiro estava chorando. Era
uma reação incompreensível para um homem tão forte, afinal.
Parecia que penetrava na dor indescritível dos filhos que perderam
os pais e cresceram se perguntando: ”Por que não suportou sua
dor por mim?”. Ou parecia que percorria a mente dos pais que
perderam os filhos e que, apesar de freqüentemente terem feito
muito por eles, se contorciam de culpa, alimentada pelo
pensamento: ”O que eu poderia ter feito por meu filho e não fiz?”.
Ou ainda parecia que o invasor chorava porque resgatava suas
perdas desconhecidas.
O fato era que tanto as palavras como as lágrimas do
forasteiro fizeram Júlio César se desarmar completamente. O
intelectual começou, assim, uma viagem para os trilhos da sua
infância, e não o suportou. Permitiu-se, também, cair em pranto.
Como poucas vezes na vida, chorou sem se importar com as
pessoas que o observavam. Era um homem de cicatrizes
profundas.
— Meu pai brincava comigo, me beijava e me chamava de
”meu filho querido”.
E, suspirando fundo, falou de algo que julgava proibido falar,
algo que mesmo seus colegas mais íntimos desconheciam. Algo
que estava enterrado, mas continuava vivo e influenciando a sua
maneira de interpretar a vida.
— Mas ele me abandonou quando eu era criança, sem me dar
explicação. — Fazendo uma pausa, acrescentou: — Eu assistia a
um desenho animado, na sala, quando ouvi o forte estalido que
vinha de seu quarto. Quando cheguei para saber o que havia
ocorrido, vi que ele estava sangrando, caído no chão. Eu tinha
apenas seis anos. E gritava sem parar, pedindo ajuda. Minha mãe
não estava em casa. Corri até os vizinhos, mas meu desespero era
tão grande que, por alguns momentos, ninguém entendeu minha
crise. Mal começava a vida e perdia minha infância, minha
inocência. Meu mundo desabou. Passei a detestar desenhos
animados. Não tive outros irmãos. Minha mãe, viúva e pobre, tinha
de trabalhar fora; lutou como uma valente para me sustentar, mas
contraiu um câncer e morreu quando eu tinha doze anos. Fui
criado por tios. Passava de casa em casa, sentia-me um estranho
em lares que nunca foram meus. Fui um adolescente irritadiço,
pouco afeito às festas de família. Pudera: não poucas vezes, fui
tratado como um empregado e tinha de me calar.
Júlio César havia desenvolvido uma personalidade agressiva.
Era pouco sociável, tímido e intolerante. Sentia-se feio e malamado.
Para não se destruir, compensara seus conflitos no estudo.
Com dificuldades, entrou para a universidade e tornou-se um
aluno brilhante. Trabalhava durante o dia, ia para a faculdade à
noite, estudava nas madrugadas e nos finais de semana. E,
externando uma raiva jamais superada, adicionou:
— Mas ultrapassei todos aqueles que zombaram de mim.
Tornei-me mais culto e bem-sucedido que eles. Fui um
universitário exemplar e tornei-me um professor respeitadíssimo.
Fui invejado por uns e odiado por outros. Muitos me admiravam.
Casei-me e tive um filho, João Marcos. Mas acho que não fui nem
bom amante nem bom pai. O tempo passou e, há um ano, me
apaixonei por uma aluna quinze anos mais nova. Fiquei
desesperado. Tentei seduzi-la, comprá-la, contraí dívidas. Acabei
com meu crédito, perdi minha segurança... e, por fim, ela me
abandonou. Meu chão se abriu. Minha esposa descobriu meu caso
e me abandonou também. Quando ela se foi, percebi que ainda a
amava; não podia perdê-la! Tentei reconquistá-la, mas ela estava
cansada do intelectual que nunca fora afetivo, que era pessimista,
deprimido e ainda por cima estava falido. Deixou-me.
Nesse momento, começou a se permitir chorar, algo que
nunca mais acontecera depois da perda da sua mãe. Lacrimejava e
começou a limpar os olhos com a mão direita. Quem via o
autoritário professor não conhecia suas cicatrizes. E continuou
seu inquietante relato:
— João Marcos, meu filho, caiu no mundo das drogas.
Agressivo, sempre me acusou de nunca ter brincado ou ter sido
amável, companheiro e amigo. Foi várias vezes internado. Hoje
mora em outro estado e se recusa a falar comigo. Resumindo,
desde os cinco anos coleciono incontáveis abandonos. Alguns por
culpa dos outros, outros por culpa minha - disse com sinceridade,
começando a aprender a retirar seus disfarces.
Assim que terminou, um filme passou rapidamente pela sua
mente. Recordou as últimas imagens do pai, imagens que estavam
bloqueadas. Recordou também que o chamara dia e noite por
longas semanas após sua perda. Cresceu com raiva do pai, crendo
que ele estava preso em sua gaiola emocional, alienado das dores
que ele, Júlio, sentiria no futuro.
Agora estava repetindo a mesma trajetória. O passado calava
mais forte do que sua notável carreira acadêmica. Sua cultura não
o tornara flexível nem o relaxara. Era um homem engessado,
impulsivo, tenso. Nunca se desarmou diante de seus psiquiatras e
psicólogos. Não raras vezes os criticava frontalmente por
considerar as interpretações deles infantis para alguém do seu
nível intelectual. Convencê-lo era uma tarefa dantesca.
Após rasgar a sua história e expô-la cruamente, o intelectual
fechou-se novamente, pois temia que o homem ao seu lado lhe
desse uma enxurrada de conselhos, de pensamentos de auto
ajuda, de informações sem raízes e de orientações sem efeitos. Mas
o forasteiro não fez nada disso. Brincou num momento em que era
quase impossível brincar. Disse suavemente:
— Meu amigo, você está numa grande enrascada.
Júlio César deu um leve sorriso. Não esperava essa resposta.
Os conselhos não vieram. Em seguida o estranho mostrou que,
apesar de não conseguir sentir a dor dele, conhecia a matemática
do abandono.
— Sei muito bem o que é perder! Há momentos em que o
mundo desaba sobre nós e ninguém é capaz de nos compreender!
Enquanto falava, tocou o dedo indicador no olho direito e
depois no esquerdo e enxugou também suas lágrimas. Talvez as
suas cicatrizes fossem tão profundas ou maiores do que as que
ouvira.
Júlio César, novamente sensibilizado, perguntou:
— Diga-me: quem é você?
A resposta foi um cálido silêncio.
— É psiquiatra ou psicólogo? — perguntou, pensando estar
diante de um profissional inusitado, incomum.
— Não sou — afirmou com segurança o estranho.
— É filósofo?
— Aprecio o mundo das idéias, mas não sou.
— É um líder religioso? — falou, achando que podia se tratar
de um líder católico, protestante, mulçumano ou budista.
— Não sou! — respondeu com firmeza o homem. Como não
obtivera nenhuma resposta, Júlio César, intrigado, perguntou com
impaciência: — Você é louco?
— É provável - respondeu o outro, com um pequeno sorriso
no rosto. Júlio César não poderia estar mais confuso.
— Quem é você? Diga-me.
Pressionava o protagonista contemplado por uma multidão
confusa, que não sabia o diálogo que se desenrolava no topo do
edifício. O psiquiatra, o chefe dos bombeiros e o da polícia se
esforçavam para ouvir a conversa, mas nem sempre era audível.
Com a insistência de Júlio César, a reação do misterioso homem
não poderia ser mais perturbadora. Ele abriu os braços, levantouos
para o alto e disse:
— Quando considero a brevidade da existência dentro do
pequeno parêntese do tempo e reflito sobre tudo o que está além
de mim e depois de mim, enxergo minha pequenez. Quando
considero que um dia tombarei no silêncio de um túmulo, tragado
pela vastidão da existência, compreendo minhas extensas
limitações e, ao deparar com elas, deixo de ser deus e liberto-me
para ser apenas um ser humano. Saio da condição de centro do
universo para ser apenas um andante nas trajetórias que
desconheço...
Suas palavras não responderam às indagações de Júlio
César, mas ele as bebeu. Elas produziram em seu intelecto uma
indagação que seria comum na boca de muitos que cruzariam a
história do forasteiro: ”Esse homem é um psicótico ou um sábio?
Ou os dois?”. Tentava alcançar as nuances dos pensamentos que
ouvira, mas era uma árdua tarefa.
O intrépido homem novamente olhou para o alto e mudou de
discurso, começando a questionar a Deus de um modo que Júlio
César nunca ouvira:
— Deus, quem és tu? Por que te calas diante das loucuras de
alguns religiosos e não abrandas o mar de dúvidas dos céticos? Por
que disfarças teus movimentos atrás das leis da física e escondes a
tua assinatura nos eventos que ocorrem ao acaso? Teu silêncio me
inquieta!
O intelectual era um especialista em sociologia da religião;
conhecia o cristianismo, o islamismo, o budismo e outras religiões,
mas esses textos não o ajudavam a compreender a mente do
forasteiro. Não sabia se ele era um ateu irreverente ou alguém que
tivesse uma intimidade informal com o Autor d, existência O
notável professor novamente se interrogou: Que homem é esse? De
onde saiu? Qual a sua origem?
As pessoas, na sociedade moderna, inclusive líderes de vários
segmentos, eram por demais previsíveis. Suas reações transitavam
dentro do trivial. Não tinham comportamentos que provocassem a
emoção alheia nem excitassem a imaginação. O que faltava nos
”normais” sobejava no misterioso homem que estava diante de
Júlio César. Sua curiosidade para saber a identidade do forasteiro
expandiu-se tanto que ele novamente perguntou, mas dessa vez foi
diferente. Primeiro se interiorizou e reconheceu que sabia muito
pouco sobre si mesmo.
— Eu não sei quem sou, preciso me achar. Mas, por favor,
insisto, quem é você?
O homem abriu um sorriso a meio mastro; Júlio César
começava a falar a sua linguagem. Sob forte inspiração ele se
revelou. Em pé, observando o horizonte onde o sol se punha, abriu
um pouco as pernas, levantou os braços e comentou com
segurança:
— Sou um vendedor de sonhos!
A mente do intelectual ficou mais obscura ainda. Parecia que
o estranho deixava seu estado de lucidez e mergulhava num estado
de insanidade. Para Júlio César, a identificação do estranho não
representava nada, a não ser assombro, mas para ele ela queria
dizer quase tudo.
Lá embaixo, Bartolomeu não parava de gritar e incomodar as
pessoas:
— Olhem o chefe dos E.T.s. Está de braços abertos e mudou
de cor.
Dessa vez não era uma alucinação, mas um erro de
interpretação. Ou não! Era difícil saber. Após se declarar, o
vendedor de sonhos compenetrou-se, olhou para a multidão e teve
uma reação estranha. Compadeceu-se dela.
Júlio César esfregou as mãos no rosto. Não acreditava na
definição que tocava seus ouvidos.
— Vendedor de sonhos? Como assim? O que é isso? —
perguntou, completamente perdido em sua racionalidade.
O estranho parecia tão inteligente! Revelara maturidade
intelectual, estilhaçara seus paradigmas, ajudara a organizar sua
confusão mental e, quando o céu estava azul-celeste, fez desaguar
uma súbita tempestade. Jamais Júlio César ouvira alguém se
auto-intitular desse modo.
O psiquiatra, a vinte e cinco metros de distância, ao ouvir a
expressão, fez uma análise rápida. Sem margem de insegurança,
assegurou para o chefe dos bombeiros e da polícia: — Eu sabia.
São da mesma laia.
Não bastasse a estranheza do título, o forasteiro, ao se
identificar, olhou para o lado direito e viu uma pessoa num edifício
vizinho, a cerca de cento e cinqüenta metros, apontando uma arma
para ele. Estava com silenciador. Numa reação magistral,
empurrou Júlio César para o chão e ambos caíram. Júlio César
não entendeu o que acontecera, apenas ficou atônito. Para não
assustá-lo ainda mais, o vendedor de sonhos disse:
— Se essa queda o perturbou, imagine o que aconteceria
quando você tocasse o solo desse edifício.
A multidão pensou que o homem havia contido o suicida.
Todos estavam sem entender os fatos. Ambos se levantaram. O
vendedor de sonhos olhou para o horizonte e viu que o atirador
havia saído de cena. Será que ele estava tendo alucinações? Quem
desejaria a morte de alguém tão simples? Em seguida, ambos
apareceram de pé, livres, no parapeito do edifício.
Júlio César olhou para o estranho e este reafirmou, sem
margem de insegurança:
— Sim, sou vendedor de sonhos.
Confuso, Júlio César, por alguns momentos, pensou que o
homem que estava diante de si fosse um vendedor ambulante. Ou
um vendedor de ações da bolsa. Mas, com aquelas idéias, parecia
impossível. Curioso, questionou-o:
— Como assim? Que produtos você vende?
— Eu procuro vender coragem para os inseguros, ousadia
para os fóbicos, alegria para os que perderam o encanto pela vida,
sensatez para os incautos, críticas para os pensadores.
Júlio César, num rompante de orgulho, lembrando-se do
tempo em que se sentia um deus por ter vasta cultura acadêmica,
disse consigo: ”Não é possível! Estou tendo um pesadelo. Acho que
já morri e não percebi. Num momento eu queria tirar minha vida
porque estava preso no novelo dos meus conflitos. Noutro, estou
mais perturbado ainda porque estou diante de alguém que me
resgatou e diz que vende o que é invendável. Vende o que todos
procuram mas não existe nos mercados”. E, para sua surpresa, o
estranho completou:
— E para os que pensam em pôr um ponto final na vida,
procuro vender uma vírgula, apenas uma vírgula.
— Uma vírgula? — perguntou, confuso, o sociólogo.
— Sim, uma vírgula. Uma pequena vírgula, para que eles
continuem a escrever sua história.
Júlio César começou a transpirar. De repente, sob um estado
de iluminação interior, caiu em si. O irreverente homem acabara
de vender para ele uma vírgula, e ele a comprara sem perceber.
Não houve preço, não houve pressão, não houve chantagem, não
houve apelos. Ele a comprara para retornar às raízes da essência
humana. O intelectual tornara-se aluno do maltrapilho. Fora
irrigado por uma suave solidariedade. Colocou as mãos na cabeça
para ver se tudo o que se passava com ele era real.
O ilustre professor de sociologia começou a ter insights.
Olhou para baixo e viu a multidão esperando sua reação. No
fundo, aquelas pessoas estavam tão perdidas quanto ele. Eram
livres para ir e vir, mas se sentiam pesadas, controladas, sem
suavidade. Faltava-lhes liberdade para arejar a própria
personalidade.
O professor parecia penetrar nas entranhas de um filme cujas
cenas eram surreais e ao mesmo tempo concretas. ”Esse sujeito é
real ou tudo o que estou vendo é uma armadilha da minha
mente?”, indagou para si mesmo, sob uma aura de fascínio e
insegurança. Nunca ninguém o encantara como o incompreensível
peregrino.
Em seguida, o misterioso homem fez um convite que o abalou
ao máximo.
— Venha e siga-me, e eu o farei um vendedor de sonhos. O
chamamento provocou um burburinho em milhões de neurônios
do intelectual. Ele não conseguiu reagir. Sua voz se embargou.
Estava fisicamente paralisado, mas pensativo. ”Que proposta é
essa? Como posso seguir um homem que conheci há cerca de uma
hora?”, pensou, transtornado. Mas ao mesmo tempo sentiu uma
atração irresistível pelo enigmático chamamento.
Estava cansado dos debates acadêmicos. Ele era um dos mais
eloqüentes intelectuais entre seus pares, mas muitos dos colegas,
inclusive ele mesmo, viviam no lodo do ciúme e das vaidades
intermináveis. Sentia que faltava, no templo do conhecimento, na
universidade, tolerância, estímulo à rebeldia do pensamento e uma
dose de loucura para libertar a criatividade. Alguns templos do
conhecimento tinham se tornado tão rígidos como as mais rígidas
religiões. Os professores, cientistas e pensadores não tinham
liberdade. Tinham de seguir a cartilha dos departamentos.
Agora Júlio César estava diante de um homem malvestido,
cabelos desarrumados, sem glamour social, mas instigante,
aventureiro, rebelde ao pensamento vigente, crítico, arrebatador,
livre, e que, para completar, lhe fazia a mais maluca e excitante
das propostas: vender sonhos. ”Como? Para quem? Com que
objetivo? Será que serei alvo de deboche ou de aplausos?”, refletia
o intelectual. Ao mesmo tempo que se perturbava com o
chamamento, vinha à sua mente que todo pensador deve andar
por ares nunca antes percorridos.
Embora tivesse grave transtorno emocional e fosse saturado
de orgulho, Júlio César sempre fora ponderado, jamais havia dado
vexame em público. A primeira vez foi no edifício San Pablo. Sabia
que dessa vez dera o maior de todos os escândalos. Não fizera
teatro, estava realmente pensando em pôr um fim em sua vida.
Como tinha medo de usar armas ou tomar remédios, fora ao topo
do edifício.
O convite continuava ecoando em sua mente como uma
granada que se estilhaça em mil pedaços, rompendo seus
paradigmas. Um longo minuto se passara. Em conflito, pensou:
”Tentei viver sob o teto do júbilo e dos alicerces da segurança, mas
me afundei. Tentei estimular meus alunos a pensar, mas formei
muitos repetidores de informações. Tentei contribuir para a
sociedade, mas era uma ilha de soberba. Se conseguir vender um
pouco de sonhos para algumas pessoas, tal qual esse misterioso
homem me vendeu, talvez minha vida tenha mais sentido do que
teve até aqui”.
Então resolvi segui-lo. Eu, o narrador desta história, sou
Júlio César, o primeiro dos discípulos desse homem extraordinário
e inquietante.
Ele se tornou meu mestre. Fui o primeiro que arriscou seguir
uma jornada sem destino, sem agenda, completamente
imprevisível. Loucura? Talvez, mas não menos do que aquela que
vivi.

O primeiro passo

Logo que saímos de cena fomos barrados por um dos
personagens que nos observavam atentamente no topo do edifício,
o chefe da polícia. Era um homem alto, de um metro e noventa,
com leve sobrepeso, farda impecável, cabelos grisalhos, faces sem
rugas e com ar de quem amava o poder.
Conteve-nos, e não se importou comigo. Estava acostumado a
lidar com suicidas; considerava-os frágeis e não seres humanos
complexos. Para ele, eu era mais uma estatística da sua profissão.
Não gostei. Senti o gosto amargo do preconceito. Afinal de contas,
eu era muito mais culto do que esse portador de armas. Minhas
armas são as idéias, mais poderosas, mais penetrantes. Mas não
tinha força para me defender. Não precisava. Tinha um torpedo ao
meu lado, o homem que me resgatara.
O real interesse do policial era interrogar o homem que me
resgatara. Queria saber quem era o amotinador. O comportamento
dele não estava na sua estatística. Não conseguira ouvir muito do
que falávamos, mas o pouco que conseguiu escutar o deixara
também assombrado. Olhou de cima a baixo o vendedor de
sonhos, observou sua aparência, e não acreditava na imagem que
contemplava. O forasteiro parecia fora do contexto social. Inquieto,
começou a fazer seu interrogatório. Pressenti que, tal como eu, o
policial entraria no vespeiro. E entrou.
— Qual o seu nome? — perguntou, num tom arrogante. O
homem que estava ao meu lado fitou furtivamente seus olhos,
mudou de assunto e chocou-o com estas palavras:
— Você não está alegre por essa pessoa ter corrigido sua
rota? Não entrou num estado de júbilo pelo fato de ela ter
resgatado sua vida? — E apontou o olhar para mim.
O frio policial caiu do pináculo do poder. Perdeu o rebolado.
Não esperava que sua insensibilidade fosse desnudada em poucos
segundos. Constrangido, disse formalmente:
— Sim, claro que estou feliz por ele.
Todas as pessoas que respondiam estupidamente para o
mestre engoliam sua insensatez. Eram estimuladas a enxergar seu
superficialismo e a cheirar o odor das próprias tolices. Ele
continuou a torpedeá-lo:
— Se você está feliz, por que não exterioriza sua felicidade?
Por que não pergunta seu nome e lhe dá os parabéns? Afinal de
contas, a vida de um ser humano não vale mais do que o edifício
que nos sustenta?
O chefe da polícia ficou nu mais rápido do que eu. E achei
ótimo, saí do estado de vergonha para os patamares nobres da
auto-estima. O homem que ele impactou era arguto, um
especialista em instigar a inteligência. Enquanto ele constrangia o
chefe da polícia, comecei a ter insights. Percebi que não é possível
seguir um líder sem admirá-lo. A admiração é mais forte que o
poder. O carisma é mais intenso que as pressões. Eu começara a
admirar muito o carismático homem que me chamou.
Enquanto refletia sobre isso, veio à minha mente a relação
com meus alunos. Eu era um depósito de informações.
Nunca entendera que o carisma é fundamental para assimilar
o conhecimento. Primeiro vem o carisma do mestre, depois o
conhecimento que ele detém. Eu tinha a doença da maioria dos
intelectuais: chatice. Era um sujeito sem sabor, crítico, cobrador.
Nem eu me suportava.
Embaraçado com os surpreendentes pensamentos que
ouvira, o chefe da policia olhou rapidamente para mim e disse,
mais constrangido ainda, como se fosse uma criança recebendo
orientações:
— Parabéns, senhor. — No momento seguinte, num tom mais
brando, ele pediu os documentos para o vendedor de sonhos.
Com singeleza, este respondeu:
— Não tenho documentos.
— Como assim? Todo mundo tem documentos na sociedade!
Sem documentos o senhor não tem identidade.
— Minha identidade é o que sou — enfatizou.
— O senhor poderá ser preso se não se identificar. Poderá ser
considerado um terrorista, um perturbador da ordem social, um
psicopata. Quem é o senhor? — perguntou o policial, voltando a ter
um tom agressivo.
Nesse momento, franzi a testa. Pressenti que o policial
entraria mais uma vez numa fria. O personagem que agitara meu
cérebro lhe retrucou:
— Respondo-lhe se me responder primeiro. Com que
autoridade o senhor quer penetrar nos espaços mais íntimos do
meu ser? Quais são suas credenciais para invadir as entranhas da
minha psique? — expressou, com segurança.
O policial aceitou o desafio. Elevou o tom de voz. Não sabia
que seria preso na própria astúcia.
— Sou Pedro Alcântara, chefe da polícia deste distrito —
disse, soltando o ar, orgulhoso e autoconfiante.
Indignado, meu mestre o questionou:
— Não perguntei sua profissão, seu status social, suas
atividades. Quero saber qual é sua essência. Quem é o ser humano
que está por detrás dessa farda?
Revelando um tique nervoso, o policial cocou rapidamente as
sobrancelhas com a mão direita, e não soube responder.
Diminuindo o tom de voz, novamente o mestre perguntou:
— Qual é seu grande sonho?
— Meu grande sonho? Bom, eu, eu... — gaguejou, e
novamente não soube responder.
Nunca alguém com tão poucas palavras havia confrontado o
autoritário chefe da polícia. Ele portava um revólver, mas ficou
sem ação. Pude olhar nos olhos daquele que me resgatara e sentir
um pouco o que ele pensava. O chefe da polícia cuidava da
segurança dos ”normais”, mas era inseguro; procurava proteger a
sociedade, mas não tinha proteção emocional.
Enquanto eu o julgava, de repente comecei a me ver nele. E o
que vi me incomodou. Como poderia uma pessoa sem sonhos
proteger a sociedade, a não ser que fosse um robô ou uma
máquina de prender? Como um professor sem sonhos pode formar
cidadãos que sonham em ser livres e solidários? Em seguida, o
enigmático mestre acrescentou: — Cuidado! O senhor luta pela
segurança social, mas o medo e a solidão são ladrões que furtam a
emoção mais do que perigosos delinqüentes. Seu filho não precisa
de um chefe de polícia, mas de um ombro onde chorar, um ser
humano a quem possa segredar sentimentos e que o ensine a
pensar. Viva esse sonho!
O chefe da polícia ficou pasmado. Fora treinado para lidar
com marginais, para prendê-los, e nunca ouvira falar dos ladrões
que invadem a psique. Não sabia o que fazer sem sua arma e seu
distintivo. Como a maioria dos ”normais”, inclusive eu, era um
profissional austero, e quando entrava pelo portão de casa não
sabia ser pai, continuava sendo um profissional. Não sabia separar
os papéis. Ganhava medalhas de honra ao mérito, mas estava
morrendo como ser humano.
Quando o ouvi derrotar a arrogância do policial, deu-me uma
vontade imensa de perguntar se ele realmente tinha um filho ou se
o mestre havia chutado. Mas vi o chefe da polícia compenetrado;
parecia algemado em seu intelecto, tentando sair de uma prisão
em que há anos se metera.
O psiquiatra não se agüentou. Vendo o chefe da polícia
completamente perdido, procurou constranger o forasteiro.
Certamente pensava que suas idéias puxariam o tapete dele,
revelariam sua insegurança. Com astúcia psicológica, afirmou:
— Quem não revela a identidade esconde sua fragilidade.
— Você acha que sou frágil? — indagou o mestre.
— Não sei — reagiu o psiquiatra, titubeando.
— Pois você está correto. Sou frágil. Tenho aprendido que
ninguém é digno de ser uma autoridade, inclusive científica, se
não reconhece seus limites e suas fragilidades. Você é frágil? —
metralhou.
— Bem...
Vendo-o hesitar, continuou a indagar-lhe:
— Qual a linha terapêutica que você segue?
O homem que me cativara me surpreendeu com essa
pergunta. Não entendi o motivo dela. Parecia não ter conexão com
o assunto. Mas o psiquiatra, que também era psicoterapeuta,
disse, assoberbado:
— Sou freudiano.
— Muito bem. Então me responda: o que é mais complexo,
uma teoria psicológica, seja ela qual for, ou a mente de um ser
humano?
O psiquiatra, temendo uma armadilha, ficou sem responder
por um momento. Em seguida, não respondeu diretamente:
— Usamos as teorias para decifrar a mente humana.
— Por favor, deixe-me propor mais uma questão: você pode
mapear uma teoria, esgotar sua leitura, mas poderá esgotar a
compreensão da mente humana?
— Não. Mas eu não estou aqui para ser indagado por você
disse com desdém, sem entender aonde o estranho queria chegar.
— E muito menos eu, que sou um perito em mente humana.
Vendo sua arrogância, o outro lhe deu o golpe fatal:
— Os profissionais de saúde mental são poetas da existência,
têm uma missão esplêndida, mas jamais podem colocar um
paciente dentro de um texto teórico, e sim um texto dentro do
paciente. Não enquadre excessivamente seus pacientes dentro dos
muros de uma teoria, caso contrário reduzirá suas dimensões.
Cada doença pertence a um doente. Cada doente tem uma mente.
Cada mente é um universo infinito.
Entendi o recado que passara para o psiquiatra, pois senti na
própria pele o que queria dizer. Quando o psiquiatra me abordou,
usou técnicas e interpretações. Eu as rechacei imediatamente.
Tratou do ato suicida, mas não do ser humano dilacerado que
estava em mim. Sua teoria poderia ser útil em situações
previsíveis, em especial quando o paciente procura ajuda
espontânea, mas não em situações em que é resistente ou perdeu
a esperança. Eu estava resistente, precisava primeiro do ser
humano psiquiatra e depois do profissional psiquiatra. Como ele
me abordara diretamente, eu o senti como invasor, me recolhi
dentro de mim, entrei num cofre.
O vendedor de sonhos fez o caminho inverso. Começou pelo
sanduíche: invadiu minha psique com penetrantes
questionamentos, como num nutriente que invade a corrente
sangüínea e estimula as células. No segundo momento, tratou do
ato suicida. Percebeu que eu era um doutor em resistência e
obstinação. Quebrou a espinha-dorsal da minha auto-suficiência.
O psiquiatra, embora tenha sido chamado de poeta da
existência, não gostou de ser questionado por um desconhecido
malvestido e sem currículo. Não demonstrou que estava feliz
porque eu havia retirado da cabeça a idéia de suicídio. Desgraça de
ciúme! Fiquei mordido de raiva ao enxergar isso, mas me lembrei
que no templo da universidade havia cometido esse crime por
diversas vezes.
Nessa altura, o mestre tocou o ombro direito do jovem chefe
dos bombeiros com a mão esquerda e disse-lhe:
— Parabéns, meu filho, pelos riscos que tem corrido por
pessoas que desconhece. Você é um vendedor de sonhos.
Após essas palavras, deu alguns passos na direção da porta
para pegar o elevador. Lá vou eu seguindo o intrigante homem.
Mas as surpresas ainda não tinham acabado. O psiquiatra olhou
para o chefe da polícia e deixou ganhar sonoridade um
pensamento, sem que, obviamente, o vendedor de sonhos e eu
ouvíssemos. Mas, para a minha surpresa, o homem que eu
acompanhava voltou-se para eles e repetiu o pensamento
simultaneamente com o psiquiatra.
— Os loucos se entendem!
O psiquiatra ficou vermelho com sua reação. Assim como eu,
certamente deve ter perguntado para si mesmo: ”Como esse
estranho conseguiu repetir ao mesmo tempo o pensamento que
proferi?”.
Vendo-o embasbacado, ainda teve tempo para dar-nos a
última e inesquecível lição no topo do edifício. Comentou com o
psiquiatra:
— Uns têm uma loucura visível e outros, oculta. Que tipo de
loucura você tem?
— Eu não. Eu sou normal! — reagiu impulsivamente o
profissional de saúde mental. Enquanto isso, o vendedor de
sonhos admitiu:
— Pois a minha é visível.
Em seguida, deu as costas e começou a caminhar com as
mãos nos meus ombros. Três passos adiante, olhou para o alto e
expressou:
— Deus, livra-me dos ”normais”!

Tirando o gesso da mente

Descemos mudos do elevador. Eu, pensativo; o vendedor de
sonhos, tranqüilo. Assoviava com um olhar fixo, concentrado em si
mesmo. Parecia percorrer com exultação as avenidas da própria
mente. Passamos pelo imenso saguão ricamente decorado com
lustres e móveis antigos e uma imensa mesa de mármore negro da
recepção. Só agora me dava conta de que eram belos, mas para
mim eram horríveis. Via o mundo pelas janelas da minha emoção.
Lá fora as luzes brilhavam, alumiando a multidão ansiosa por
notícias. Notícias que eu faria questão de não dar. Sinceramente,
queria me esconder, esquecer esse escândalo, virar a página, não
pensar um segundo mais na minha dor. Cônscio de que chamara a
atenção porque queria desistir da vida, chafurdei na lama da
vergonha. Mas não podia me teletransportar, tinha de enfrentar os
olhares da platéia. Por instantes, tive raiva de mim mesmo. Pensei:
”Existiam distintas alternativas para enfrentar minha crise, por
que não as escolhi?”. Mas a dor nos cega e a frustração nos
emburrece.
Quando saímos do Edifício San Pablo e rompemos o cordão
de isolamento, eu queria tampar o rosto e sair rapidamente do
ambiente, mas era impossível, a aglomeração era enorme, não
havia espaço para correr. A imprensa estava presente e queria
informações. Transitei pela minha via-crúcis, cabisbaixo.
O vendedor de sonhos, para não me constranger, evitava dar
informações. Ninguém sabia o que realmente acontecera no alto do
edifício, o rico embate que tive com esse misterioso homem ficou
alojado somente na minha mente.
À medida que escapamos dos meios de comunicação e
começamos a andar no meio da multidão, assustei-me. Fomos
tratados como celebridades. Tornei-me famoso pelos motivos que
menos queria.
Para o homem que seguia, o culto à celebridade era um dos
sintomas mais notáveis de que havíamos construído um grande
manicômio global. Ao longo da caminhada, ele nos questionava.
— Afinal de contas, quem merece mais aplausos, um lixeiro
anônimo ou um ator de Hollywood? Quem é mais complexo em sua
psique? Quem é mais indecifrável em sua história? Não há
diferença. Ambos. Mas os ”normais” acham isso uma heresia.
Vendo-me constrangido pela multidão que, excitada, nos
enchia de perguntas, querendo explicações sobre o que ocorrera no
alto do edifício, aquele homem inteligente mudou o foco das
pessoas. Em vez de tentar sair discretamente do aperto, levantou
as mãos naquela algazarra e pediu silêncio, que só veio depois de
um prolongado momento.
Pensei: ”Lá vem mais um discurso perturbador”. Mas o
forasteiro era mais excêntrico do que eu imaginava. Sem dar
explicações, pediu que todos fizessem uma grande roda, o que foi
difícil, pois as pessoas se apinhavam. E para a surpresa de todos,
entrou no centro dela e começou a dançar uma dança irlandesa.
Ele se agachava, jogando os pés para o alto, e se levantava, pouco
a pouco, fazendo o mesmo movimento. Ao mesmo tempo emitia
sons eufóricos.
Não consegui deixar de pensar: ”Um intelectual não teria essa
reação, e se tivesse vontade, não teria coragem de fazê-lo”. Maldito
preconceito. Pouco tempo antes eu quase me matara, mas os
preconceitos ainda estavam vivíssimos. Era um ”normal”
enrustido.
Ninguém entendeu muito bem as reações do vendedor de
sonhos, muito menos eu, mas algumas pessoas começaram a
participar. Ficaram boquiabertas, pois tinham saído de um
espetáculo de terror para entrar num espetáculo de júbilo. A
alegria é contagiante. Haviam sido contagiados pela sua euforia
despretensiosa.
A roda se abriu mais. Os que sabiam a tal dança ou os que se
arriscavam a dançá-la sem conhecê-la começaram a enfiar o braço
direito no esquerdo uns dos outros e dançavam em círculos. Os
que margeavam a roda também mergulharam no clima, e
começaram a bater palmas no ritmo da dança. Mas muitos ficaram
mais distantes, dentre os quais se destacavam alguns executivos
muito bem-trajados. Não quiseram se aproximar do bando de
loucos. Preferiram ocultar sua loucura, como eu.
Dentro do círculo dos que dançavam sempre entrava e saía
uma pessoa, revelando seu desempenho. E saía sob aplausos.
Enquanto eu estava de fora, tudo bem, me protegia, mas de
repente o vendedor de sonhos pegou nos meus braços e, exultante,
colocou-me no centro do círculo.
Eu não sabia onde enfiar a cara. Fiquei de pé. Sabia dar
aulas teóricas, mas não tinha flexibilidade, não tinha ginga.
Recitava O capital, de Marx, para alunos e professores com
maestria, era uni ardente defensor da liberdade de expressão, uma
liberdade que pouco existia no recôndito da minha alma. As
pessoas continuavam dançando ao meu redor e me incentivando,
mas eu estava paralisado. Há alguns minutos era alvo da atenção
da multidão, mas agora torcia para que ninguém me reconhecesse.
Torcia para que nenhum professor ou aluno da minha
universidade estivesse presente. Não me importava em morrer,
mas me incomodava o vexame. Que loucura! Descobri que sou
mais doente do que imaginava.
Era discreto, contido, sereno, tinha voz dosada, pelo menos
quando não era contrariado. Não manifestava júbilo em público.
Não sabia improvisar, estava infectado com o vírus dos
intelectuais: o formalismo. Tudo certo, tudo fétido. A multidão me
olhava, esperando que eu me soltasse, mas estava enraizado em
minha timidez. Subitamente, mais uma surpresa me envolveu. O
bêbado miserável que apontava os dedos para o alto apareceu.
Enfiou seu braço esquerdo no meu direito e me empurrou para
dançar.
Além de ter um bafo insuportável, o miserável dançava mal,
quase caía, e eu ainda tinha que segurá-lo. Vendo-me engessado
no meio da bagunça, ele parou de dançar, olhou para mim, me deu
um beijo na face esquerda e balbuciou:
— Se solta, cara! O chefe dos E.T.s te salvou. Esta festa é pra
você!
Fui alvejado no centro do meu orgulho. Raramente vi ou ouvi
tanta vivacidade e espontaneidade em frases tão curtas. Nesse
momento tive um grande insight. Veio à minha mente o texto da
parábola de Cristo a respeito da ovelha perdida. Eu a havia lido e
interpretado como sociólogo e achava um absurdo ele deixar
noventa e nove ovelhas para ir atrás de apenas uma. Os socialistas
sacrificaram milhões de pessoas em torno de um ideal, mas esse
Cristo quase enlouqueceu por um ínfimo ser humano, e ”endoidou”
de tanta alegria quando o achou.
Criticava seu romantismo exagerado, mas agora o vendedor
de sonhos manifestava a mesma alegria. Só depois que o
cambaleante alcoólatra me beijou, percebi que estava festejando
por mim. O bêbado estava mais sóbrio que eu. Estava
embasbacado, nunca pensei que fosse possível que um estranho
desse tanta importância para um desconhecido. Eu estava perdido
e fui achado, estava ”morto” e fui resgatado. O que mais poderia
querer? Não deveria eu comemorar? Mandei às favas meu
formalismo, joguei para o alto meu status de intelectual.
Eu era ”normal” e, como muitos normais, minha loucura era
oculta, disfarçada; precisava ser espontâneo. Soltei-me. O mestre
havia enfatizado que o coração não reclama motivos para pulsar. O
maior sentido para continuar vivo é estar vivo, é a insondável
existência. Na universidade, havia esquecido que os grandes
filósofos discorreram sobre o sentido da vida, a política do prazer e
a arte do belo. Considerava tais pensamentos filosóficos
desprezíveis frases de auto-ajuda. Era preconceituoso. Percebi,
agora, que precisava bebê-los. Foi a primeira vez em que dancei
sem ter uísque na cabeça. Precisava de uma vírgula para
continuar respirando. Raramente me senti tão bem.
Os ”normais” eram tão famintos de alegria que, quando
encontravam um maluco que lhes tirasse o gesso da emoção,
relaxavam e brincavam como crianças. Homens de gravata
dançavam, bem como mulheres de longo e de minissaia. Crianças
e adolescentes também caíram na gandaia.
Nesse momento, apareceu uma velhinha dançando feliz da
vida com sua bengala. Era a senhora em cima da qual Bartolomeu
caíra. Seu nome era Jurema. Tinha oitenta anos bem vividos.
Quem imaginasse que ela estava capengando pelos ditosos anos se
enganara. Estava em melhor forma que eu. Saúde ótima, a não ser
por leves sintomas do mal de Parkinson. Sabia dançar como raras
pessoas. O vendedor de sonhos se encantou com ela. Dançaram
juntos. Eu esfregava os olhos para ver se tudo era real.
De repente, ela se desfez dos braços do mestre e topou com
Bartolomeu no centro da roda. Deu-lhe uma bengalada na cabeça,
mas com suavidade, e novamente lhe disse: — Seu tarado. — Não
me agüentei. Morri de ri. Ela fez o que eu gostaria de ter feito
quando ele me deu um ósculo malcheiroso no rosto.
O mestre voltou-se para a velhinha e, em vez de repreendê-la,
gritou:
— Você é linda! — E, tomando-a agora pela cintura,
rodopiou-a. A velhinha recebeu uma carga de adrenalina que a fez
se sentir com vinte anos.
Por instantes achei que o vendedor de sonhos estava sendo
falso. Mas refleti: quem disse que ela não era maravilhosa? O que é
ser bonita? Enquanto ponderava, o alcoólatra, esperto que era,
vendo que o elogio funcionava, chegou perto da sua agressora e
bradou exageros:
— Linda! Maravilhosa! Delirante amável! Admirável!
Pensando estar abafando, recebeu outra bengalada da velhota.
— Tarado inveterado! Conquistador barato! Cachorro
compulsivo! - disse ela, aparentando raiva. Bartolomeu enfiou o
rabo entre as pernas. Mas em seguida percebeu que ela estava
brincando. Derreteu-se. Fazia cinqüenta anos que não a
chamavam de linda nem utilizavam com ela adjetivos superlativos.
Animadíssima, tomou o bêbado pelos braços e saiu dançando com
ele, feliz da vida. Fiquei impressionado; conhecia o poder da
crítica, mas desconhecia o poder do elogio. Será que os que usam
esse poder corrigem mais, vivem mais e melhor? Estava confuso.
Nunca vira tanta maluquice num só dia.
Ao longo da caminhada, o homem que eu seguira ensinou
que os pequenos gestos podem ter tanto ou mais impacto que os
grandes discursos. Em suas aulas ao ar livre, constatei que suas
reações e seu silêncio penetravam mais do que as técnicas
multimídia. Intuitivamente sabíamos que ele guardava grandes
segredos. Não ousávamos perguntar, pois ele nos tirava a roupa
com seu método socrático. Transformou-se num especialista em
fazer da vida uma festa, até quando havia motivos para se
contorcer de raiva ou se autopunir.
Ele nos dizia continuamente:
— Felizes os que dão risada das suas tolices, pois deles é a
fonte do relaxamento.
Eu detestava pessoas tolas, que davam respostas superficiais,
mas no fundo era uma pessoa saturada de tolices. Tinha muito
que aprender para dar risada de mim mesmo. Tinha muito que
aprender sobre a arte de desanuviar a cabeça, uma arte
desconhecida no templo acadêmico.
A universidade que eu ajudei a promover formava alunos que
não sabiam olhar para si mesmos, detectar sua estupidez, se
soltar, chorar, amar, correr riscos, sair do cárcere da rotina e
muito menos sonhar. Eu era o mais temido dos professores, uma
máquina de criticar. Entulhava meus alunos de crítica e mais
crítica social, mas jamais ensinara algum deles a curtir a vida.
Claro! Ninguém pode dar o que não tem. A minha vida era uma
droga.
Tinha orgulho da minha ética e honestidade, mas começava a
descobrir que era antiético e desonesto comigo mesmo. Felizmente
estava começando a aprender a expelir os ”demônios” que
engessavam a minha mente e me transformavam num sujeito
quase insuportável.

Chamando complicados

Depois de vinte minutos de dança no sopé do Edifício San
Pablo, o vendedor de sonhos pediu novamente silêncio para a
multidão remanescente. Eufóricas, as pessoas pouco a pouco se
aquietaram. Para o espanto de todos, ele proclamou um verso em
voz alta, como se estivesse no alto de um monte:
Muitos dançam sobre o solo,
Mas não na pista do autoconhecimento.
São deuses que não reconhecem seus limites.
Como poderão se achar se nunca se perderam?
Como serão humanos se não se aproximam de si?
Quem são vocês? Sim, digam-me, quem são?
As pessoas ficaram com os olhos regalados. Elas haviam
acabado de dançar numa pista improvisada, mas agora o promotor
da festa introduzia uma outra pista e as questionava se eram
humanas ou divinas. Vários homens bem-trajados, em especial
aqueles que não haviam dançado e estavam na posição de críticos,
ficaram atordoados. Diariamente estavam vidrados na cotação do
dólar, nas cotações da bolsa de valores, em técnicas de liderança
empresariais, em carros, hotéis, mas muitos jamais haviam
dançado na pista do autoconhecimento, jamais haviam sido
caminhantes no território psíquico.
Viviam vazios, entediados, ansiosos, inundados de
tranqüilizantes. Não se humanizavam. Eram deuses que morriam
um pouco a cada momento, eram deuses que negavam seus
conflitos.
Vendo a multidão silenciada, ele expandiu seu discurso:
— Sem filosofar a vida, viverão na superfície. Não perceberão
que a existência é como os raios solares que despontam
solenemente na mais bela aurora e se despedem fatalmente no
ocaso. — Alguns o aplaudiram sem entender a dimensão do seu
raciocínio e sem perceber que estavam próximos do entardecer.
Momentos depois, para minha surpresa, ele saiu
cumprimentando pessoa por pessoa, indagando:
— Quem é você? Qual é o seu grande sonho?
Muitos ficavam constrangidos no primeiro momento. Não
sabiam responder quem eram nem qual era seu grande sonho.
Outros, mais desinibidos e sinceros, diziam: ”Não tenho sonhos”, e
justificavam: ”Minha vida está uma merda!”. Outros comentavam:
”Vivo num atoleiro de dívidas. Como posso sonhar?”, e ainda
outros comentavam: ”Meu trabalho é uma fonte de estresse. Tenho
dores em todo o corpo. Esqueci de mim mesmo, só sei trabalhar”.
Fiquei impressionado com as respostas. Percebi que a platéia que
estava assistindo ao meu ”suicídio” não estava distante de minha
miséria. A platéia e os atores viviam o mesmo drama.
O mestre não tinha soluções mágicas para elas, queria
instigá-las a se interiorizar e se repensar. Observando o deserto
psíquico em que se encontravam, bradou:
— Sem sonhos, os monstros que nos assediam, estejam eles
alojados em nossa mente ou no terreno social, nos controlarão. O
objetivo fundamental dos sonhos não é o sucesso, mas nos livrar
do fantasma do conformismo.
Uma jovem obesa, de cento e trinta quilos e um metro e
oitenta de altura, ficou comovida com essas palavras. Sentia-se
programada para ser rejeitada e infeliz. O fantasma do
conformismo a dominava. Há anos tomava antidepressivos. Era
pessimista e excessivamente crítica consigo mesma. Sempre se
diminuía perante outras mulheres. Constrangida, aproximou-se do
vendedor de sonhos e teve a coragem de se abrir num tom de voz
que só alguns de nós ouvimos:
— Sou um poço de tristeza e solidão. Pode alguém não
atraente um dia ser amado? Pode alguém não cortejado ter chance
de encontrar um grande amor? — Ela sonhava em ser beijada,
abraçada, querida, admirada, mas sua reação indicava que
provavelmente fora ridicularizada, rechaçada, chamada por
apelidos que só se dariam a animais. Sua auto-estima fora
assassinada na sua infância, como a minha.
Bartolomeu ouviu suas palavras. Carente e esbaforindo
álcool, balbuciou aos gritos:
— Apetitosa! Belíssima! Maravilhosa! Se você procura um
príncipe, o encontrou. Quer namorar comigo? - E abriu os braços.
Para ele não cair, tive que apoiar o miserável. Ela sorriu, mas
o bêbado desavergonhado era o último homem com o qual ela se
envolveria.
O mestre olhou nos olhos dela. Condoído, respondeu-lhe:
— É possível encontrar um grande amor. Só não se esqueça
jamais que você poderá ter o melhor parceiro ao seu lado, mas será
infeliz se não tiver um romance com a própria vida. — E orientoua:
— Contudo, para alcançá-lo, terá de deixar de ser escrava.
— Escrava do quê? — indagou surpresa.
— Dos padrões de beleza do sistema — afirmou. Algumas
pessoas que o ouviram se animaram com suas palavras e
comentaram que sonhavam superar sua timidez, solidão, fobias.
Outras almejavam fazer amigos, mudar de trabalho, porque com o
dinheiro que ganhavam as contas não fechavam no final do mês.
Outras ainda diziam que sonhavam em fazer um curso superior,
mas não tinha recursos para isso.
Elas esperavam um milagre, mas o vendedor de sonhos era
um vendedor de idéias, um mercador de conhecimento. O
conhecimento era melhor do que o ouro e a prata, encantava mais
que diamantes e pérolas. Por isso, não estimulava o êxito pelo
êxito. Para ele, não havia trajetórias sem percalços, nem oceanos
sem tormentas. Fitando as pessoas, falou com segurança:
— Se seus sonhos forem desejos e não projetos de vida,
certamente vocês levarão para a sepultura seus conflitos. Sonhos
sem projetos produzem pessoas frustradas, servas do sistema.
E não deu explicações sobre esses pensamentos, pois queria
que as pessoas dançassem na pista das idéias. Fiquei reflexivo.
Vivemos numa sociedade consumista, numa sociedade de desejos,
e não de projetos existenciais. Ninguém planeja ter amigos,
ninguém planeja ser tolerante, superar fobias, ter um grande
amor.
— Se o acaso for nosso deus e os acidentes, nossos demônios,
seremos infantis.
Espantei-me ao olhar ao meu redor e perceber que o sistema
social havia feito um estrago irreparável em quase todos nós. Não
poucas pessoas consumiam muito, mas eram autômatas,
robotizadas, viviam sem propósitos, sem significado, sem metas,
como especialistas em obedecer a ordens e não em pensar, o que
fazia aumentar o índice de transtornos psíquicos.
Questionei-me também como educador: o que eu havia
formado na universidade? Servos ou líderes? Autômatos ou
pensadores? Mas antes de responder a essas perguntas me
inquietei com minha própria situação. Perguntei-me: ser crítico
libertou-me da servidão? Concluí que não! Eu era servo do meu
pessimismo e da minha pseudo-independência. Estava levando
para o túmulo meus conflitos. Interrompendo meus pensamentos,
o mestre comentou para sua platéia extasiada:
— Conquistas sem riscos são sonhos sem méritos. Ninguém é
digno dos sonhos se não usar suas derrotas para cultivá-los.
Por estudar a história das riquezas das nações, entendi o
significado sociológico desse último pensamento. Entendi que
muitos dos que recebiam herança ou eram presenteados
gratuitamente com fortunas haviam tido conquistas sem méritos,
não valorizavam as batalhas dos seus pais, dissipavam seus bens
como se fossem eternos. A herança se tornava um laço para uma
vida dissoluta e superficial. Eles eram imediatistas, queriam sorver
o máximo prazer do presente, sem prever futuras tempestades.
Enquanto eu criticava as pessoas como vítimas do sistema e
não como autoras da sua história, num ímpeto voltei-me para mim
e percebi que não era diferente delas. Não entendia por que
pensamentos tão simples eram tão penetrantes. Estudei complexas
idéias do socialismo, mas elas não penetravam nas áreas ocultas
da minha psique. Sonhei em ser uma pessoa feliz, mas tornei-me
um miserável. Sonhei em viver uma vida melhor que a que meu pai
viveu, mas reproduzi o que mais detestava nele. Sonhei em ser
mais sociável que minha mãe, mas cultivava sua sisudez e
amargura.
Não usei minhas perdas para cultivar meus sonhos. Não fui
digno deles. Detestava riscos, queria controlar tudo ao meu redor,
pois não poderia comprometer minha brilhante reputação
acadêmica. Tornei-me estéril por dentro, não engravidava de novas
idéias. Esqueci que os grandes pensadores eram malucos que
assumiam os riscos. Não poucos foram execrados, taxados de
lunáticos, tidos como heréticos, transformados em espetáculo de
vergonha social. Enfim, serviram de carne fresca para aves de
rapina de plantão. Creio que eu era uma dessas aves predadoras.
Até nas teses de mestrado e doutorado os riscos eram quase
eliminados. Alguns dos meus colegas lutavam contra esse
formalismo, mas eu os freava. Somente após seguir esse
imprevisível vendedor de sonhos fui compreender que as grandes
descobertas da ciência foram produzidas na juventude, no calor da
rebeldia, e não na maturidade dos cientistas. Os formais recebem
diplomas e aplausos, os desvairados produzem as idéias que eles
utilizam.

O inusitado sonho de Bartolomeu

Um homem branco, de cerca de trinta e cinco anos, portando
camisa pólo bege, de cabelo preto bem aparado, com um rosto
fechado, quebrou o clima de harmonia e disse agressivamente para
o mestre:
— Meu grande sonho é estrangular minha esposa. — Ele não
estava brincando. Parecia que estava realmente prestes a cometer
um assassinato. O mestre não deu resposta, apenas esperou que o
agressor continuasse expurgando sua violência. Ele continuou: —
O que merece uma mulher que trai o marido?
Em vez de abrandar a ira do agressor, parece que colocou
mais combustível:
— Você também é um traidor?
O agressor não teve dúvida. Deu-lhe um soco que o jogou
longe e lhe causou sangramento no lado esquerdo do lábio.
Quando muitos tentavam linchar o agressor, o mestre
conteve a violência da multidão:
— Não, não machuquem esse homem. Levantou-se,
aproximou-se dele e explicou:
— Podemos não trair com os órgãos sexuais, mas traímos no
pensamento, nas intenções. Se não traímos quem amamos,
traímos a nós mesmos. Traímos nossa saúde, nossos sonhos,
nossa tranqüilidade. Você nunca traiu ou se traiu?
O agressor ficou mudo, apenas meneou a cabeça,
confirmando que também era traidor. Diariamente se traía com
milhares de pensamentos mórbidos. Sua agressividade era a ponta
do iceberg de um traidor. Quando abaixou a guarda, o mestre o
bombardeou mais intensamente:
— Por acaso sua esposa é sua propriedade? Se não é, por que
quer destruí-la ou se destruir por causa dela? Quem disse que, por
traí-lo, ela diminuiu sua condição de ser humano, que teve uma
história, chorou, amou, irou-se, frustrou-se? Se não é capaz de
perdoá-la e reconquistá-la, por que não diz simplesmente ”Sinto
muito, você me perdeu”?
O homem saiu de cena completamente atordoado. Era difícil
saber se ele conseguiria conquistar sua esposa ou deixar-se
conquistar por ela, mas não mais a assassinaria. Fiquei
impressionado com sua reação. Será que ele provocara o agressor
para que ele o esmurrasse e, assim, abrisse uma janela na sua
mente homicida e pensasse em outras alternativas? Não é possível!
As pessoas que estavam próximas o fitavam como se estivessem
assistindo a um emocionante filme de ação.
Não bastasse esse incidente, chegou a vez de o mestre
perguntar a Bartolomeu qual seu grande sonho. Creio que não era
o momento nem uma boa idéia fazer tal pergunta. Boquinha de
Mel tinha uma irresistível atração pela irreverência.
Olhou para ele e falou entusiasmadamente, quase caindo ao
chão:
— Meu grande sonho, chefinho? Vodca russa! E... e... e tomar
banho... — Quando todos pareciam felizes com o banho que
desejava tomar, desapontou-os: — Tomar banho num... tonel de
uísque escocês. — Nesse momento, caiu sentado. Vivia duro, e
estava em estado de êxtase ao pensar nesse incomum banho.
Não me agüentei. Comecei a dar risada do miserável e da cara
do sábio que eu começara a seguir. Mas fiquei surpreso com meu
sarcasmo. Nunca imaginei que na minha mente houvesse uni
prazer sublimado pela desgraça alheia. Pensei comigo: ”Dessa vez
ele embarcou num bote que estava indo a pique”.
Antes que ele desse alguma resposta, dona Jurema apareceu
e ameaçou dar outra bengalada em Bartolomeu. Ela também ouviu
qual era seu grande sonho e ficou indignada. Agora, não o chamou
de tarado, mas de outros adjetivos:
— Prepotente! Presunçoso! Alcoólatra inveterado! Estrume
social!
O Boca de Mel, que aparentemente não tinha cultura
acadêmica, gostou dos adjetivos. Emendou:
— Obrigado pelos elogios. Mas serve também um barril de
cachaça brasileira ou de tequila mexicana.
O cara era incorrigível. Bebia há mais de vinte anos sem
controle. Há dez anos andava de bar em bar, de rua em rua, no
puro alcoolismo. Eu tinha a convicção de que o vendedor de
sonhos jamais conseguiria dar uma lição a esse miserável fedido.
Até porque nenhum pensamento lúcido entraria na sua mente
infestada de extraterrestres. Talvez meu mestre optasse por dar lhe
uma bronca sem grandes pretensões educacionais, apenas para
vomitar sua raiva, ou então o enviasse para algum grupo dos
Alcoólatras Anônimos, e se livrasse dele rapidamente. Mas para
meu espanto, ele elogiou a sinceridade do moribundo:
— Muito bem! Parabéns pela sua honestidade.
Tentei mexer nos ouvidos para ver se estava ouvindo direito.
Não era possível que ele tivesse enchido a bola do bêbado. O álcool
na cabeça, somado ao elogio que recebeu, multiplicaram a euforia
do miserável. Revestido de um estado de auto-estima que fazia
anos não sentia, olhou orgulhosamente para algumas pessoas que
há pouco o tinham empurrado. Soltou um estridente grito de
guerra: ”Hurruuu!”. E teve a ousadia de dizer:
— Preservo a natureza. Sou movido a álcool. — Em seguida,
esfregou o dedo indicador direito no esquerdo e completou: — Sou
assim com o homem. Esse é o cara. Posso dar um passeio na sua
aeronave, chefinho? — Após se convidar para um vôo
extraterrestre, tropeçou em duas pessoas e quase caiu.
Eu, que sempre fui intolerante, pensei: ”Mande esse cara
para um manicômio”. O mestre olhou para mim. Pensei que
estivesse lendo meu pensamento e seguindo minha recomendação.
Mas, para meu assombro, disse algo que quase me fez desmaiar.
Tocou o ombro esquerdo do moribundo e disse-lhe com uma voz
firme:
— Venha e siga-me! E eu o farei embriagar-se com uma
bebida que você não conhece.
Fiquei atônito. Tentava mexer com a cabeça para ver se tinha
entendido direito o que havia ouvido. O bêbado, que estava fraco
tanto porque havia dançado como porque há anos era turbinado
pelo álcool, mergulhou no seu tonel de uísque sem beber.
Imediatamente retrucou:
— Bebida que não conheço? Duvido! É vodca das bravas?
Fiquei constrangido com a santa irreverência do alcoólatra.
Mas o vendedor de sonhos achou graça, sorriu. Conseguia relaxar
em situações tensas. Olhou para mim e parecia querer dizer: não
se preocupe, eu vim para os complicados.
Meus neurônios entraram em estado de choque. Pensei em
debandar. Seguir uma pessoa excêntrica, um estranho no ninho
social ainda vai, mas seguir lado a lado de um bêbado gozador era
demais. Riscos inimagináveis se sucederiam.

Minha casa é o mundo

O mestre, eu e Bartolomeu saímos do meio da multidão.
Enquanto saíamos, a multidão nos aplaudiu. Algumas pessoas
tiravam fotos. Eu virava o rosto, procurava a discrição, mas o
infeliz do Boquinha de Mel fazia poses. Como o mestre não agia, eu
tentava puxá-lo para não dar bandeira. A última coisa que merecia
era ser babá de um bêbado. Alguns jornalistas estavam presentes
e tomavam nota dos eventos.
Três quadras à frente, os conflitos começaram. Comecei a
pensar: ”O que estou fazendo aqui? Para onde vamos?”, mas meu
companheiro não pensava. Estava feliz em fazer parte do pequeno
bando; eu, apreensivo.
Olhava para cima e tentava me relaxar. Ele olhava para mim
com um meio sorriso; parecia que ouvia minhas dúvidas.
Imaginava que iríamos para os seus humildes aposentos. Pelas
roupas, parecia ser muito pobre, mas devia ter uma casa ou
apartamento alugado. Talvez sua residência não tivesse muitos
quartos, mas pela veemência do seu convite certamente seria um
bom anfitrião, teria pelo menos um quarto para mim e um para o
Bartolomeu. Até porque dormir no mesmo quarto com esse bêbado
seria uma afronta ao bom senso.
Talvez o quarto em que me ele hospedaria fosse simples mas
confortável. Talvez a cama não fosse de molas, mas tivesse espuma
com uma densidade que não arrebentaria as costas. Talvez não
tivesse lençóis novos, mas pelo menos seriam limpos. Talvez sua
geladeira não tivesse alimentos caros, mas teria alguma coisa
saudável para comer; afinal de contas, eu estava faminto e
extenuado. Talvez, talvez, talvez, pensava, mas nenhuma certeza
havia.
No trajeto, ele abanava as mãos para as crianças,
cumprimentava os adultos nas ruas, ajudava algumas pessoas a
carregar sacolas pesadas. Bartolomeu embarcou nas saudações.
Abanava as mãos para todo mundo, até para as árvores e postes.
Eu resisti, mas, para não ficar chato, acenava as mãos sem
exageros quando elas me cumprimentavam.
A grande maioria das pessoas respondia com um sorriso. Eu
ficava imaginando: de onde o vendedor de sonhos conhece tantas
pessoas? Não conhecia. Ele era assim. Qualquer estranho era um
ser humano, e qualquer ser humano era seu semelhante, e
qualquer semelhante não era um desconhecido. Saudava-os pelo
prazer de saudar. Jamais vi uma pessoa tão animada, bem
humorada e sociável. Não apenas vendia sonhos, vivia-os.
Andamos muitas quadras, caminhamos alguns quilômetros,
mas sua residência não chegava. Tempos depois, quando eu já não
conseguia mais caminhar, ele parou num cruzamento. Eu respirei.
Ufa! Chegamos, pensei comigo. Para meu alívio, confirmou que
havíamos chegado.
Olhei para o lado esquerdo. Vi um conjunto de casas
populares iguais, pintadas de cor branca, com uma pequeníssima
varanda. Cocei a cabeça e imaginei: ”As casas são pequenas. Não
devem ter três quartos”.
Mas o homem que me fez o chamado felizmente olhou para o
lado direito da rua. Levantou levemente a cabeça e, seguindo seu
olhar, vi um enorme edifício atrás de um viaduto. Parece que havia
oito apartamentos por andar. Parecia um pombal. Aparentemente
os apartamentos tinham menos espaço do que as casas populares.
Estava apinhado de gente.
Lembrando-me dos meus alunos, disse para mim mesmo:
”Não vou segurar essa onda. Vai ser uma noite muito difícil”. O
mestre se adiantou e disse mais uma vez:
— Não se preocupe. Há muito espaço.
Tentando disfarçar minha ansiedade, perguntei gentilmente:
— Em que andar é seu apartamento?
— Meu apartamento? Meu apartamento é o mundo — disse
com tranqüilidade.
— Very good, gostei desse apartamento — disse Bartolomeu,
que amava gastar seu péssimo inglês.
Assustado, indaguei:
— Como assim, mestre?
Ele explicou:
— As raposas têm seus covis, as aves do céu têm seu ninho,
mas o vendedor de sonhos não tem residência fixa onde reclinar a
cabeça.
Não acreditava no que ouvia. Fiquei paralisado. Ele citou a
famosa frase de Cristo. Será que esse homem está pensando que é
Cristo? Não é possível! Será que ele está tendo um surto psicótico?
Ou poderia vir a ter? Mas ele parece intelectualmente superdotado,
inteligente. Fala de Deus de forma não-religiosa. Quem é esse
homem? Onde estou enfiando minha vida? Mas antes que minha
cabeça fervesse de dúvida, ele jogou água fria na minha mente,
pelo menos por enquanto. Disse-me:
— Não se preocupe. Eu não o sou. Só procuro entendê-lo.
— Não é quem? — indaguei sem entendê-lo.
— Não sou o Mestre dos Mestres. Sou o menor dos que
tentam entendê-lo — reagiu calmamente.
Aliviei-me por alguns instantes.
— Mas quem é você? — rebati ansiosamente, querendo mais
explicações, explicações que nunca vinham.
Ele falou enfaticamente:
— Já lhe disse quem sou. Não crê em mim? Bartolomeu
deveria ter ficado quieto naquele momento, mas era impossível
silenciá-lo. Tentou corrigir-me dizendo:
— Você não crê que ele é o chefe dos E.T.s.
Dessa vez não agüentei, fui ríspido com ele. Gritei:
— Cale-se, Boca de Lixo!
Retrucando, ele me ameaçou:
— Boca de Lixo não! Boquinha de Mel. Não me rebaixe, seu
intelectual de segunda. — E fez uma pose de briga, imitando um
especialista em artes marciais. Esse foi o primeiro dos vários
atritos que surgiram entre seus discípulos.
O mestre dirigiu-se a mim e corrigiu-me com delicadeza. Não
invadia a privacidade. Expunha nossa nudez sem punir. Suas
atitudes machucavam mais do que uma punição:
— Júlio César, você é tão inteligente, por isso sabe que
nenhum artista é dono da sua obra, mas sim o interpretador.
Aquele que interpreta lhe dá cores e sabores. Se Bartolomeu acha
que sou o chefe dos E.T.s, por que você se angustia? Generosidade
quero, e não obediência. Seja generoso consigo mesmo!
Quando me corrigiu, pensei que sua última frase, ”seja
generoso consigo mesmo!”, fora elaborada erradamente. Pensei que
deveria ter dito ”seja generoso com o Bartolomeu”. Mas durante a
caminhada fui descobrir que quem não é generoso consigo mesmo
jamais o será com os outros. Quem cobra muito de si mesmo é um
carrasco dos outros.
A generosidade era um dos maiores sonhos que ele desejava
difundir no grande hospício social. Os normais viviam em seus
currais, ilhados em seu mundo, tinham perdido o sabor
indecifrável de se doar, abraçar, dar uma nova chance.
Generosidade era uma palavra que habitava os dicionários, mas
raramente o coração psíquico. Eu sabia competir, mas não sabia
ser generoso. Sabia apontar as falhas e ignorâncias dos meus
colegas, mas não sabia acolher. A desgraça dos outros me excitava
mais do que seus sucessos. Não era diferente dos políticos da
oposição, que torciam pela autodestruição de partidos que
governavam.
Após a lição delicada me aquietei. Mas onde estava o
apartamento e a casa em que iríamos nos acomodar? De repente,
ele apontou para debaixo do viaduto que estava à nossa frente e
que eu não enxergara e nos disse:
—Eis nosso lar.
Tive vertigens. Comecei a ter saudade do Edifício San Pablo.
Havia uns colchonetes velhos e rasgados. Não havia lençol, mas
panos envelhecidos e também rasgados para nos cobrir. Um
garrafão de água era a nossa bebida. Tínhamos que tomar no bico.
Nunca vi alguém tão pobre. ”Mas é esse o homem que me livrou do
suicídio?”, pensei.
A coisa era tão ruim, que até o Bartolomeu refugou. Comecei
a gostar do sujeito. Cocou a cabeça, esfregou as mãos nos olhos
para constatar que não estava tendo alucinações e expressou:
— Chefinho, tem certeza que essa é a sua casa? Bartolomeu
começara a cair na realidade. Começara a ter a intuição de que
entrara numa aeronave errada. Dormia em lugares melhores.
Dormia em edículas de amigos, no fundo de bares e até em
albergues municipais, mas debaixo de um viaduto era a primeira
vez.
— Sim, Bartolomeu, essa é a minha casa! E teremos uma
longa noite pela frente.
Como tudo o que o mestre dizia tinha significado, a longa
noite não se referia a dormir mal, arrebentar as costas sobre o
colchonete, mas ao clima de terror que a noite prometia.
Para jantar havia uns pães amanhecidos e uns biscoitos com
data vencida, mas não embolorados. Eu detestava hambúrgueres,
mas comecei a pensar que eles seriam o paraíso diante da comida
disponível. Após dar umas poucas mordidas nas bolachas, resolvi
deitar. Quem sabe no outro dia acordaria e descobriria que tudo
não passara de um pesadelo. Coloquei a cabeça no colchonete,
enrolei uma folha de papelão como travesseiro e repousei a cabeça,
mas não a mente. Ela virou um caldeirão de ansiedade.
Procurando relaxar, dizia para mim mesmo: ”Fique tranqüilo.
Acalme-se. Você não gosta de estudar grupos excêntricos? Agora
você faz parte de um deles. Vai ser bom para sua carreira
acadêmica. No mínimo, terá uma experiência sociológica
interessante. Lembre-se de que sonhos sem riscos produzem
conquistas sem méritos”.
Não imaginava onde estava entrando. Só sabia que saíra do
microcosmo da sala de aula para um cosmo do submundo social,
um ambiente completamente desconhecido. Era um sociólogo
teórico. Não consegui dormir.
Momentos depois, procurei outra técnica. Comecei a recordar
as lições que aprendera, a rememorar cada experiência. Tentava
pensar em tudo o que acontecera horas antes. A experiência de
seguir esse estranho homem era tão forte que eu pensava menos
no topo do edifício e mais na casa debaixo da ponte, menos no
suicídio e mais na caminhada.
Então uma luz brilhou mais uma vez; tive mais um insight.
Pensei que todas as pessoas deveriam sair por aí sem rumo, pelo
menos por um dia, para poder achar o elo perdido em seu interior.
Pensar desse modo me relaxou. A inquietude que estava à flor da
pele cedeu um pouco, o que me levou, afinal, a diminuir a agitação
cerebral.
Relaxei; o sono começou a vir. Entendi que quem determina a
maciez da cama é o nível de ansiedade da nossa mente. Só dorme
bem quem aprende primeiramente a repousar dentro de si. Estava
começando a filosofar como o mestre. Não sabia o terror que estava
por vir. O colchonete se tornou o melhor de todos os colchões.

Um bando de malucos

Eram quatro horas da madrugada. Estava frio e ventava
muito. De repente, acordei com gritos desesperados.
— A ponte vai cair! Vai cair! — gritava Bartolomeu. Estava
ofegante e assustadíssimo.
Meu coração palpitava. Jamais senti tanto medo. Levantei
num sobressalto, querendo afastar-me do grande viaduto. O
mestre segurou-me pelo braço e me pediu calma.
— Como, calma?! Podemos morrer! — disse eu, observando
as construções e vendo antigas rachaduras, no meio da escuridão,
como se fossem novas.
Calmamente ele me disse:
— Bartolomeu está tendo a síndrome de abstinência do
álcool.
O instinto de vida pulsava em mim, embora poucas horas
antes eu quisesse findar a vida. Meu companheiro bêbado e
atabalhoado levou-me a uma das maiores descobertas da minha
vida: os suicidas, mesmo os que planejam a morte, não querem se
matar, mas matar a sua dor. Respirei fundo, tentei relaxar, mas
ainda estava taquicárdico e apreensivo. Olhei para Bartolomeu, e
ele continuava num clima de terror.
Estava tendo delirium tremens. Por ser ele dependente, a falta
do álcool na corrente sangüínea levou seu organismo a um estado
sofrível caracterizado por falta de ar, aumento da freqüência
cardíaca, suor excessivo, entre outras coisas. O pior era que sua
mente, que já estava confusa, entrou em colapso, começou a ter
alucinações e visões irreais, mas que ele jurava que eram
verdadeiras.
Depois do desespero pela queda da ponte, ele começou a ter
outras alucinações. Viu aranhas e ratos gigantes, do tamanho de
automóveis, caminhando pelo teto e ameaçando comê-lo. Seu rosto
pingava de suor, tremiam-lhe as mãos. Seu corpo estava quente,
parecia febril. Como o mestre sempre dizia, é possível fugir dos
monstros de fora, mas não dos de dentro. E é incrível como a
mente humana tem facilidade em criar fantasmas para assombrála.
Em plena era digital, os sentimentos primitivos continuavam
vivos.
Bartolomeu tentava lutar contra as feras que queriam devorálo.
Gritava, agoniado:
— Chefinho, me ajude! Socorro!
Tentávamos acalmá-lo e fazê-lo sentar num caixote de
madeira que outrora armazenara tomates. Mas em seguida ele se
levantava e tinha novas crises. Teve um momento em que se
levantou e saiu correndo pelas ruas. Havia cinco milhões de
alcoólatras no país. Nunca imaginei que a turma movida a álcool
sofresse tanto. Pareciam bêbados felizes. Temendo que ele fosse
atropelado, o mestre sugeriu levá-lo a um hospital público a três
quarteirões do viaduto. Estava preocupado com sua integridade. E
assim o fizemos.
Comecei, então, a dar um pouco da minha energia para os
outros sem pedir nada em troca. Claro, sempre há interesses em
tudo o que fazemos, mas, como o mestre dizia, há interesses
legítimos que extrapolam o ganho financeiro, o reconhecimento
público, tais como os que estão ligados ao prazer de contribuir
para o bem-estar e a saúde do outro. Era um sistema de troca não
previsto no capitalismo nem no socialismo. Era um mundo
estranho à academia.
Comecei a entender que os egoístas vivem no calabouço das
suas angústias, mas os que atuam na dor dos outros aliviam a
própria dor. Não sei se me arrependerei de tomar esse caminho,
não sei o que me aguarda, mas vender sonhos, ainda que tenha
seus riscos, talvez seja um excelente ”negócio” no mercado da
emoção. A angústia de meu companheiro era tão grande, que
diminuiu, pelo menos por enquanto, a percepção que eu tinha da
minha miséria psíquica e das inúmeras coisas não resolvidas em
minha vida.
Imaginei o esforço tremendo que o vendedor de sonhos fizera
para me resgatar. Não me pedira dinheiro, reconhecimento nem
aplausos, mas recebeu muito, recebeu doses elevadas de prazer.
Ficou tão feliz que dançou em público. Que ”mercado” fantástico! A
única coisa que me pediu foi convidar-me para fazer o mesmo.
Ajudar Bartolomeu era a minha primeira experiência de
contribuir despretensiosamente para o benefício de alguém. Uma
tarefa difícil para um intelectual egocêntrico. Foi uma batalha para
interná-lo. Tivemos de convencer a equipe de plantão de que nosso
amigo estava correndo risco de morrer. Não bastavam os
escândalos aflitivos que ele dava. Os hospitais gerais estavam
despreparados para lidar com acidentes da mente humana.
Sabiam lidar com o corpo, mas desconheciam ou negavam o
mundo intangível da psique. Eram uma casta de engessados.
Quando conseguimos a internação, Bartolomeu estava menos
agitado. Deram-lhe um sossega-leão e o levaram dormindo para o
quarto.
Fomos visitá-lo à tarde. Bartolomeu estava bem melhor. Já
não tinha alucinações. Teve alta. Pediu que lhe contássemos tudo
o que tinha acontecido e como nos havíamos conhecido. Sua
memória estava turva. O mestre passou o bastão para mim. Tentei
explicar o incompreensível. Quando iniciei minha fala, ele saiu de
cena. Não gostava de ser exaltado.
Falei sobre o vendedor de sonhos, como o encontrara, como
me ajudou, como me chamou, como o encontramos no sopé do
edifício, a dança, a pergunta sobre o grande sonho, como o
chamou, o viaduto, o terror noturno, enfim, tudo. Bartolomeu
prestava muitíssima atenção e meneava a cabeça, balbuciando
”Hum!”. Tudo parecia tão irreal que eu me sentia um tolo
explicando o que nem estava entendendo. O miserável era bemhumorado
como o mestre. Tentando diminuir minha tensão, disse:
— Você não sabe o nome dele nem quem ele é. Hum! Cara, só
tomando umas para entender essa confusão. — Mas quando eu
pensava que ele iria desistir do caminho, completou: — Eu sempre
quis seguir alguém mais biruta do que eu.
Bom, comecei então a andar com os dois malucos. A
experiência sociológica ganhava corpo. Só esperava não encontrar
conhecidos nas ruas. Melhor que os professores e meus alunos
pensassem que eu morrera ou mudara de país. Bartolomeu
assoviava despreocupadamente. O mestre andava ao nosso lado
com incontido júbilo. De repente, começou a cantar uma bela e
instigante canção que ele mesmo havia composto, cuja letra
retratava sua bandeira de vida. Tal canção se tornou pouco a
pouco o tema central de nossa história.
Sou apenas um caminhante
Que perdeu o medo de se perder
Estou seguro de que sou imperfeito
Podem me chamar de louco
Podem zombar das minhas idéias
Não importa!
O que importa é que sou um caminhante
Que vende sonhos para os passantes
Não tenho bússola nem agenda
Não tenho nada, mas tenho tudo
Sou apenas um caminhante
A procura de mim mesmo.
Durante a caminhada para a nossa casa, ou melhor, para
nosso viaduto, deparamo-nos com mais uma figura raríssima. Seu
nome era Dimas de Melo, apelidado de ”Mão de Anjo”. Seu apelido
deveria ser ”mão do Diabo”, mas apelido nem sempre é sinônimo.
Nesse caso era um antônimo do seu comportamento. O sujeito era
um velhaco. Tinha vinte e oito anos, cabelos loiros com franja,
nariz comprido e achatado, traços orientais.
Mão de Anjo foi pego numa loja de departamentos roubando
um DVD portátil. Já havia roubado inúmeras outras coisas, mais
valiosas, e nunca tinha sido pego. Mas agora uma câmera o
filmara com a boca na botija. Claro, o espertalhão tinha analisado
todas as câmeras quando colocava o aparelho em sua larga bolsa,
mas não percebeu que havia uma oculta. Foi preso.
Na delegacia, pediu para chamar um advogado. Antes de o
delegado iniciar o inquérito policial, chamou seu advogado à parte
e lhe disse que não tinha dinheiro para pagar a futura fiança. O
advogado lhe afirmou: ”Sem dinheiro, xadrez. Você ficará preso”. O
malandro, quando pressionado, não articulava direito as palavras,
tinha uma leve gagueira. Argumentou: ”Agüenta as pontas... que...
que... vou sair dessa sem pá... pagar nada. Só me segue...”. O
advogado ficou sem entender o que ele aprontaria. Ambos
entraram na sala do impaciente e autoritário delegado.
O delegado perguntou o nome do réu. Dimas, com ar de bobo,
passou o dedo indicador direito próximo aos lábios com um
assovio e em seguida deu três tapinhas na testa. O delegado
bronqueou com ele e indagou-lhe novamente o nome. Ele repetiu o
gesto.
— Você está brincando comigo, rapaz! Coloco-o em cana por
desacato à autoridade.
Perguntou endereço e profissão, mas o Mão de Anjo, com a
maior naturalidade do mundo, repetiu o mesmo ritual, passou o
dedo próximos aos lábios assoviando e deu três tapas na testa.
Queria passar a imagem de que era um psicótico, mentalmente
incapaz, que não sabia onde estava, o que estava acontecendo, e
não tinha noção do roubo que cometera. Foram dez perguntas
insistentes sem respostas. O delegado xingou, bateu na mesa,
ameaçou, mas nada. O sujeito era um artista, no pior sentido da
palavra. O advogado curtia a astúcia do seu cliente.
— Não é possível! Esse sujeito é maluco! — gritou o delegado.
O advogado tomou a frente e disse-lhe:
— Doutor, eu não disse que meu cliente era mentalmente
incapaz porque o senhor não acreditaria em mim. O senhor está
vendo que ele não tem consciência dos seus atos.
Não querendo perder mais tempo, o delegado dispensou o
salafrário. Lá fora o advogado cumprimentou o Mão de Anjo e
elogiou sua malandrice.
— Você é terrível. Parabéns! Nunca vi um trapaceiro tão
esperto. — E rapidamente cobrou seus honorários, pois tinha
outros compromissos.
Mão de Anjo olhou bem na menina-dos-olhos do advogado e,
com a maior naturalidade do mundo, passou as mãos na boca,
assoviando, e bateu três vezes na testa. O advogado deu risada,
mas disse que não tinha tempo para brincadeiras. Dimas repetiu o
mesmo gesto. Nós estávamos do outro lado da calçada, observando
a cena.
— Vamos acertar! — esbravejou o advogado.
Mão de Anjo repetiu mais uma vez o ritual. O advogado se
irritou. Diante da irritação, Dimas reproduziu o mesmo
comportamento. Nada dissuadia o malandro. O advogado o
ameaçou de todas as formas. Ameaçou até de denunciá-lo
novamente. Mas como podia fazê-lo? Ele afirmara ao delegado que
seu cliente era um doente mental; se desmentisse isso poderia se
complicar. Foi a primeira vez na história do direito que um
espertalhão deu um tombo num delegado e num advogado de
defesa em quinze minutos.
Após o advogado ir embora, bufando de raiva, Mão de Anjo
disse para o alto:
— Mais um trouxa.
O mestre prestava atenção detalhadamente no vigarista. Eu
não entendia direito seu interesse pelo velhaco. Mas pensei que
talvez quisesse vender o sonho da honestidade para ele. Talvez
quisesse lhe dar uma bronca, lhe passar um sermão. Talvez
desejasse nos recomendar que não andássemos com um sujeito
dessa estirpe, pois poderia estragar nosso projeto.
Ele atravessou a calçada e se aproximou do sujeito. Nós,
apreensivos, o seguimos. Temíamos que o malandro estivesse
armado. Dimas o notou e ficou intrigado com sua presença e com o
olhar furtivo. Para nosso espanto, o mestre falou com uma voz
segura:
— Você tem um sonho de ficar rico, e não se importa com os
meios para atingi-lo.
Gostei do que ouvi, e achei ousada a introdução do mestre.
Mas em seguida me abalou, e pirou até Bartolomeu, já sem vodca
na cabeça. Ele disse para o Mão de Anjo:
— Os que furtam são péssimos administradores. Fogem da
miséria, mas ela sempre os alcança.
O vigarista levou um susto. Não sabia aplicar o que furtava.
Vivia na dureza. Detestava a miséria, suplicava que ela partisse,
mas, como companheira fiel, ela insistia em ficar. Momentos
depois, fez desabar o mundo do golpista:
— O pior esperto não é o que engana os outros, mas o que
engana a si mesmo.
O vigarista deu dois passos para trás. Não era muito de
pensar, mas o que ouviu tumultuou sua mente. Começou a se
questionar: ”Será que sou o pior esperto? Sou especialista em
ludibriar os outros, mas será que tenho enganado a mim mesmo?
Quem é esse sujeito que furta minha paz?”.
Em seguida o mestre provocou um terremoto no solo em que
estávamos.
— Venha e siga-me, que eu o farei descobrir um tesouro,
chamado conhecimento, muito mais valioso do que o ouro e a
prata.
As suas idéias eram incisivas, determinantes, sedutoras. O
sujeito olhou de cima a baixo o homem que o perturbara, analisou
suas vestes, viu seus bolsos vazios, deu uma fungada no nariz.
Pensou no tal de tesouro do conhecimento e não entendeu nada.
Truncando as palavras, indagou:
— O que... significa esse te... tesouro? Onde está essa... gra...
grana? — replicou desconfiado.
Sem dar explicação, o mestre apenas comentou com
segurança:
— Você saberá!
E saiu sem dar maiores explicações. O malandro nos seguiu.
Seguiu-o inicialmente mais por curiosidade. Talvez pensasse que o
mestre era um milionário excêntrico. O fato é que o vendedor de
idéias era um pólo de atração fascinante, atraía em particular as
peças raras da sociedade, ainda que elas inicialmente tivessem
intenções escusas.
Bartolomeu, há muitos anos, quando tinha algum dinheiro,
fizera tratamentos psicoterapêuticos, mas nenhum deles
funcionara. Aliás, funcionara às avessas. Ele deixou malucos
alguns dos seus terapeutas, pois tiveram que se tratar depois que
começaram a atendê-lo. O sujeito era irremediável, mas esperto.
Descobriu que o orgulho era minha especialidade. Quando fizemos
a primeira caminhada em direção ao viaduto, após a dança no San
Pablo, me apelidou de Superego, pois percebeu que eu era um
poço de orgulho, tinha um ego doentiamente inflado. O ignorante
usou errado o termo da teoria de Freud. Vendo o chamamento do
trapaceiro, me chamou de lado e cochichou aos meus ouvidos:
— Superego, agüentar você é difícil, mas esse vigarista é
impossível.
— Vê se se enxerga, seu... — comecei a retrucar, mas, antes
que proferisse meu xingamento, ponderei que ele poderia estar
certo. O novo membro da família poderia ser um perigo. Jamais
imaginei estar associado a um criminoso, um embusteiro.
Tirei a forra dizendo baixinho para Bartolomeu:
— Suportar um alcoólatra pirado como você é complicado,
mas esse malandro não dá. Estou fora!
Pensei em debandar pela segunda vez da experiência
sociológica. Mas subitamente um filme passou novamente pela
minha mente. Recordei que estava perdido e fui achado. Olhei para
o calmo semblante do mestre e resolvi resistir um pouco mais. A
curiosidade para ver no que ia dar essa experiência me animava.
Certamente poderia ser tema de muitas teses.
O novo discípulo tinha voz mansa, mas era um perito em dar
tombo nos outros e levar vantagem em tudo. Sabia ludibriar as
pessoas, vender bilhetes de loteria falsamente premiados. Furtava
cartão de crédito das mulheres, batia carteira de senhoras idosas
depois de ajudá-las gentilmente a atravessar as ruas. O problema é
que todo esperto tem excesso de autoconfiança. Achava que nunca
cairia numa armadilha, até que encontrou alguém mais esperto do
que ele. Não sabia que ao andar com o mestre entraria na maior
emboscada da sua vida.
Sentamos numa praça para descansar. O mestre sugeriu que
eu e Bartolomeu explicássemos o projeto para o Dimas. Tarefa
difícil. O sujeito parecia que tinha baixa escolaridade. Mas era um
bom momento para excluí-lo do grupo. Bartolomeu dava um tom
superlativo a tudo que acontecera.
— Cara, o chefinho é um gemo. Acho que ele é de outro
mundo. Ele hipnotiza as pessoas. Ele nos chamou para incendiar a
humanidade com sonhos.
Bartolomeu, bêbado, tinha alucinações com monstros; sóbrio,
tinha delírios de grandeza. Mas infelizmente Dimas gostava de
ouvi-lo, falavam a mesma linguagem. Os desajustados sabem se
comunicar. Caindo em mim, pensei: ”Sou um desajustado
solitário. Levei uma vida pior que esses miseráveis”.
Sabia que toda explicação que estávamos dando a Dimas não
o saciaria, pois estávamos tão confusos quanto ele. Mas para quem
está no deserto, a alucinação do oásis é refrescante. Torci para que
o salafrário desistisse, mas, infelizmente, ele não desanimou de
seguir-nos. Assim, o bando de malucos se construía.

As pequenas andorinhas

Momentos depois, passamos por uma banca de revistas que
estava na praça e vimos nossa foto estampada na primeira página
de um grande jornal, com a seguinte manchete: ”Um pequeno
bando de malucos agita o centro da cidade”. Meu mestre estava em
primeiro plano; eu e Bartolomeu estávamos ao seu lado. Comprei o
jornal com as poucas moedas que tinha no bolso.
Fiquei abalado, perplexo. Sabia que tinha dado um escândalo
quando quisera morrer, mas esperava que ficasse soterrado, queria
esquecer esse assunto, voltar à minha discrição de professor
universitário. Agora estava na boca do povo. A reportagem
descrevia minha tentativa de suicídio e meu estranho resgate por
um estranho do qual ninguém sabia o nome.
Dimas e Bartolomeu viram um intelectual descontrolado e
desconsolado ao ler o jornal. Estavam acostumados à difamação,
eu não. Minha imagem social era meticulosamente preservada.
”Serei ridicularizado publicamente pelos meus opositores na
universidade, virarei pasto na roda dos escarnecedores”, pensei
comigo.
Fui um tolo; queria morrer sem chamar a atenção, mas fiz
tudo errado. Tornei-me uma celebridade às avessas. Ferido, queria
sair pegando todos os jornais e queimando. Queria protestar
contra minha foto publicada sem autorização. Queria processar o
jornalista por essa reportagem caluniosa. A matéria me diminuía,
dizia que eu era um depressivo que procurava sensacionalismo.
Também dizia que o psiquiatra que estava no topo do edifício
classificara o homem que me resgatou como um psicótico perigoso,
que poderia colocar em risco a sociedade. Eu não fora salvo por
um herói. Vivera um filme de Hollywood ao contrário.
O mestre se sentou num banco ao lado, junto com seus
outros seguidores. Respeitando minha dor, apenas me observava.
Esperava que a temperatura da minha angústia diminuísse para
intervir. Mas não diminuía. Minha mente fugia ao meu controle.
Imaginei todos os meus colegas professores e alunos lendo a
matéria. Eu era o chefe de um departamento de sociologia, e
nunca abaixara a cabeça para nenhum professor ou aluno. Parecia
imbatível, detestava mentes estúpidas, mas não olhava para minha
estupidez. Sempre fora ótimo em cultivar inimigos e péssimo em
fazer amigos.
”E agora, o que pensarão de mim? O que pensarão de um
suicida salvo por um homem excêntrico? E, o que é pior, o que
pensarão de um suicida que depois de resgatado dançou
alegremente no meio da multidão desconhecida? Certamente dirão
que fiquei maluco ao quadrado. Dirão que me pós-graduei em
doidice.”
Era tudo o que Mario Vargas, Antônio Freitas e outros
desafetos sonhavam, surrupiar a minha imagem. Sem perceber,
acabei por vender o sonho que eles mais desejavam, o sonho de
pisotear minha imagem. Abatido, concluí que estava acabado para
o mundo acadêmico, estava terminado para a universidade. Nunca
mais teria o mesmo silêncio quando tecesse crítica social nem o
respeito quando debatesse idéias ou corrigisse alguém. O mal-estar
da civilização penetrara as entranhas do meu cérebro.
Comecei a ter raiva do jornalista que fizera a matéria. Num
ataque de cólera, pensei: ”Por que os jornalistas, na sua formação,
não fazem um laboratório em que simulem a execração pública de
seu nome? Talvez aprendessem a se colocar no lugar dos outros e
investigassem muitos mais fatos antes de jogar no lixo o nome dos
outros”.
Para o jornalista, era mais uma matéria, para mim era minha
história, era tudo o que tenho e sou, ainda que fosse uma história
doente, complicada, saturada de sobressaltos. Poucos minutos
mudam uma história. Como retornar às minhas atividades? Se
retornar, nunca mais serei o mesmo para os outros. Só tenho à
minha frente um homem que propôs um projeto revolucionário
sem a mínima base de segurança intelectual, social, financeira. E,
ainda por cima, chama para esse projeto pessoas que jamais
passariam pelo filtro da minha inteligência, parceiros que eu
jamais escolheria para fazer qualquer tarefa juntos.
Eu ficara muitos anos protegido na universidade; a primeira
vez em que deixava a proteção dos meus notáveis títulos e me
tornava um simples mortal, recebia bordoadas. Estava indignado.
De repente, enquanto me atolava na lama da angústia, minha
mente começou a se iluminar, e tive outro insight.
Olhei de relance para o mestre e descobri que a vírgula que
ele me vendera estava funcionando, embora segui-lo fosse um
preço muito alto. Percebi que todo o corpo de idéias pessimistas
causadas pela matéria tinha por trás algo muito positivo. Os vivos
sentem frustrações, os mortos, não sei. Eu estava vivo.
Quase me arrebentara saltando do topo do edifício. Devia
estar festejando a vida, porém os conflitos alojados em meu
inconsciente estavam combalidos, mas não mortos. Queria ser
simples, viver suavemente, despreocupar-me com a paranóia da
imagem social, mas era um ser humano pesado, rígido, controlado
pela ansiedade.
Agora entendo por que o pai de um colega professor, um
senhor de setenta anos, arrogante, agressivo, discriminador, que
ficara seqüestrado por seis meses, não mudara de personalidade
depois de seu longo seqüestro. Quando foi libertado, todos
pensavam que se tornaria um homem dócil, generoso, altruísta,
mas depois de resgatado ficou sendo mais intragável ainda.
Meu autoritarismo sempre ficara escondido debaixo do manto
da minha intelectualidade. Não foi extirpado nem depois do
vendaval que me levou à idéia do suicídio. Angustiado, senti que
essa história de vender sonhos não mudaria facilmente um sujeito
egocêntrico como eu. Não é a dor que nos muda, como há milhares
de anos pensamos, mas a utilização inteligente dessa dor que
fazemos ao longo da vida. Percebi que se não a utilizasse,
continuaria sendo um ser humano doente: um gigante na cultura e
um menino na emoção.
Quando refletia sobre isso, senti a presença do mestre ao
meu lado. Ele parecia ter entrado no torvelinho das minhas idéias.
Sua face revelava preocupação. Parecia ler o invisível. Procurando
apaziguar as águas da minha emoção, disse-me:
— Não tema a difamação exterior. Tema seus próprios
pensamentos, pois somente eles podem penetrar em sua essência e
destruí-la.
Fiquei pensativo, e ele continuou:
— Alguém pode rasgar-lhe a pele sem que você permita, mas
jamais poderá invadir sua mente se você não permitir. Não se
permita ser invadido. Somos o que somos. — Em seguida me
desafiou mais do que poderia imaginar com estas palavras:
— O preço para vender sonhos é alto, mas você não é
obrigado a pagá-lo. Tem liberdade de partir.
Eu fora arrastado para uma encruzilhada. Tinha a
oportunidade de virar as costas e ir para qualquer lugar do
mundo. Eu, cair fora? Sempre fui teimoso, obstinado, lutei pelo
que queria. Nesse momento, minha mente começou a ser invadida
por um questionamento sobre o qual jamais havia refletido.
Comecei a recordar o estudo sociológico que havia sobre as
relações entre Jesus e seus discípulos, que muito influenciou a
sociedade ocidental. Comecei a entender fenômenos psíquicos e
sociais que nunca havia analisado.
Comecei a pensar no poder indecifrável das suas palavras e
gestos do homem Jesus para convencer jovens judeus, na flor da
idade, malucos por aventuras, com famílias nucleares organizadas
e negócios estabelecidos, a abandonar tudo para segui-lo. Que
loucura! Seguiram no escuro um homem sem poder político
notório e sem identidade visível. Deixaram barcos, amigos, casas e
o seguiram sem direção. Ele não lhes deu dinheiro, não lhes deu
conforto, não lhes prometeu nem mesmo um reino terreno. Que
experiência arriscada! Que conflitos! Que vexames! Que
perturbações viveram!
Perderam tudo, por fim perderam o homem que os ensinou a
amar crucificado numa trave de madeira. Morreu sem heroísmo,
morreu em silêncio, encerrou seu fôlego amando, faleceu
perdoando. Após sua morte, o grupo poderia ter se dissipado, mas
uma força incompreensível os invadiu. Tornaram-se mais fortes
depois do caos. Difundiram para o mundo a mensagem que
tinham ouvido.
Deram as lágrimas, a saúde, seu tempo, enfim, tudo o que
tinham para a humanidade. Amaram desconhecidos e se
entregaram por eles. Sob a mensagem difundida por esses jovens
toscos e sem cultura clássica, as sociedades européias e depois
inúmeras outras nas Américas, na África e na Ásia foram
construídas. As bases dos direitos humanos e dos valores sociais
foram estabelecidas.
Séculos se passaram, e tudo se tornou comum. As igrejas se
tornaram uma fonte excelente de conformismo. Na atualidade,
centenas de milhões de pessoas comemoram confortavelmente em
seus templos o Natal, a Paixão e outras datas, sem nunca terem
imaginado o que é dormir ao relento, o que é receber a pecha de
louco, qual o sabor de ter sua imagem social estilhaçada. Perderam
a sensibilidade, não entenderam o estresse dramático que esses
jovens viveram ao seguirem o enigmático Mestre dos Mestres.
Vieram-me à mente as desconfortáveis camas de palha nas
quais dormiam ao relento. Fiquei refletindo na angústia que
sofreram ao tentar explicar o inexplicável para seus pais e amigos
da Galiléia. Não poderiam falar que tinham aprendido a amar um
homem, pois seriam apedrejados. Não poderiam dizer que estavam
envolvidos num grande projeto, porque esse projeto não era
palpável. Não podiam comentar que seguiam um homem poderoso,
o Messias, pois ele amava o anonimato. Que coragem para chamar
e que coragem para seguir o chamado!
Após essa reflexão, Bartolomeu me fez voltar como um raio
para nossa realidade. Provocou-me. Não sei se me elogiou ou me
ofendeu.
— Superego, se você for um banana e cair fora, vamos
respeitá-lo. Mas você é importante no time.
Respirei profundamente. Pensei no homem que evitara meu
suicídio e me levara a dormir debaixo do viaduto. Ele não é Cristo,
não tem vocação messiânica. Não faz milagres. Não promete o
reino dos céus, nem promete um reino terreno e sequer nos dá
segurança social. Não tem onde morar, é pobre, não tem carro, não
possui plano de saúde. Mas nos magnetiza. Vive a arte da
solidariedade, sonha em abrir a mente das pessoas, em combater o
vírus do sistema, em confrontar o egocentrismo.
Não seria menos perigoso deixar a sociedade continuar sendo
uma fábrica de loucura? Não seria melhor deixar as pessoas se
lambuzarem com o individualismo, não seria mais confortável
deixá-las serem mentes obtusas que não pensam nos mistérios da
existência, mas nos superficiais mistérios dos produtos dos
shoppings, dos computadores, da moda? Somos pequenos demais
para fazer alguma coisa contra o poderoso sistema. Poderemos ser
presos, feridos e mais caluniados ainda.
Enquanto o circo pegava fogo na minha mente, o mestre
ainda estava no picadeiro realizando belíssimas performances. A
paciência era sua virtude número um. Vendo-me aflito, chamou
Boquinha de Mel e Mão de Anjo, e depois de um longo minuto de
silêncio contou-nos uma parábola simples, quase ingênua, mas
que tocou as entranhas dos meus medos:
— Certa vez houve uma inundação numa imensa floresta. O
choro das nuvens que deveriam promover a vida dessa vez
anunciou a morte. Os grandes animais bateram em retirada
fugindo do afogamento, deixando até os filhos para trás.
Devastavam tudo o que estava à frente. Os animais menores
seguiam seus rastros. De repente uma pequena andorinha, toda
ensopada, apareceu na contramão procurando a quem salvar.
”As hienas viram a atitude da andorinha e ficaram
admiradíssimas. Disseram: ’Você é louca! O que poderá fazer com
um corpo tão frágil?’. Os abutres bradaram: ’Utópica! Veja se
enxerga a sua pequenez!’. Por onde a frágil andorinha passava, era
ridicularizada. Mas, atenta, procurava alguém que pudesse
resgatar. Suas asas batiam fatigadas, quando viu um filhote de
beija-flor debatendo-se na água, quase se entregando. Apesar de
nunca ter aprendido a mergulhar, ela se atirou na água e com
muito esforço pegou o diminuto pássaro pela asa esquerda. E
bateu em retirada, carregando o filhote no bico.
”Ao retornar, encontrou outras hienas, que não tardaram a
declarar: ’Maluca! Está querendo ser heroína!’. Mas não parou;
muito fatigada, só descansou após deixar o pequeno beija-flor em
local seguro. Horas depois, encontrou as hienas embaixo de uma
sombra. Fitando-as nos olhos, deu a sua resposta: ’Só me sinto
digna das minhas asas se eu as utilizar para fazer os outros
voarem’.”
No momento seguinte, após uma inspiração profunda e
penetrante, o vendedor de sonhos disse a mim e a meus amigos:
— Há muitas hienas e abutres na sociedade. Não esperem
muito dos grandes animais. Esperem deles, sim, incompreensões,
rejeições, calúnias e necessidade doentia de poder. Não os chamo
para serem grandes heróis, para terem seus feitos descritos nos
anais da história, mas para serem pequenas andorinhas que
sobrevoam anonimamente a sociedade amando desconhecidos e
fazendo por eles o que está ao seu alcance. Sejam dignos das suas
asas. É na insignificância que se conquistam os grandes
significados, é na pequenez que se realizam os grandes atos.
Essa história, ao mesmo tempo em que animou minha
emoção, feriu meu intelecto. Pensei comigo: ”Tenho de admitir que
agi como hiena e abutre em muitos momentos da minha vida;
agora preciso aprender a agir como uma insignificante e brava
andorinha”.

Os espaços mais manicômio social

Os ”normais” levantavam sempre do mesmo jeito.
Reclamavam da mesma maneira. Irritavam-se do mesmo modo.
Xingavam com as mesmas palavras. Cumprimentavam os íntimos
da mesma forma. Davam as mesmas respostas para os mesmos
problemas. Expressavam o mesmo humor em casa e no trabalho.
Tinham as mesmas reações diante das mesmas circunstâncias.
Davam presentes nas mesmas datas. Enfim, tinham uma rotina
estafante e previsível, que se tornava uma fonte excelente para a
ansiedade, a angústia, o vazio, o enfado.
O sistema havia enfartado a imaginação das pessoas,
corroera a sua criatividade. Elas raramente surpreendiam.
Raramente davam presentes em dias inesperados. Raramente
reagiam de modo distinto em situações tensas. Raramente
libertavam o intelecto para enxergar os fenômenos sociais por
outros ângulos. Eram prisioneiras e não sabiam.
Os pais ”normais”, quando iam corrigir ou aconselhar os
filhos, eram interrompidos no meio do caminho. Os filhos não
agüentavam mais os mesmos argumentos. Diziam: ”Eu já sei...”. E
já sabiam mesmo. Os ”normais” não sabiam encantar.
Não sabiam contar suas próprias experiências para estimular
as idéias dos outros.
Sempre fui previsível ao me relacionar com meus alunos, e só
descobri isso quando comecei a andar com meu mestre. Dava aula
no mesmo tom de voz. Fazia críticas e dava broncas da mesma
maneira. Variava os verbos e substantivos, mas não a forma e o
conteúdo. Os alunos estavam com o saco cheio de um professor
que parecia mais uma múmia do Egito do que um ser humano
versátil. Não agüentavam mais ouvir que seriam derrotados na
vida se não estudassem.
O vendedor de idéias vendia continuamente o sonho do
encantamento. Como pode alguém que não tem nada
exteriormente cativar tanto? Como pode um homem sem teoria
pedagógica bombear nossa imaginação? Andar com ele era um
convite à inovação. Navegávamos sem destino traçado. Ele via por
ângulos distintos situações ordinárias. Não sabíamos qual seria a
resposta. Mas, no fundo, ele sabia muito bem o que queria e aonde
queria chegar. Estava nos treinando a encontrar uma liberdade
inimaginável. Cada dia era um canteiro de surpresas, umas
agradabilíssimas, outras causticantes.
Na manhã seguinte, depois de um período de mitigação
silenciosa das suas preocupações, o mestre se levantou, aspirou
algumas vezes longamente o ar poluído do viaduto e agradeceu a
Deus de um modo inusitado.
— Deus, você caminha nas reentrâncias do tempo, está
infinitamente distante e infinitamente próximo, mas sei que seus
olhos me espreitam. Permita-me captar seus sentimentos.
Obrigado por mais um show nessa surpreendente existência.
Boca de Mel, que era vidrado em shows country, disse:
— Que show nós iremos ver, chefinho? — E expressou um
entusiasmo matutino que raramente vivenciava.
O vendedor de sonhos reagiu, deslumbrado:
— Show? Cada dia é um show, cada dia um espetáculo. Só
não o descobre quem está mortalmente ferido pelo tédio. O drama
e a comédia estão em nosso cérebro. Basta despertá-los.
Bartolomeu precisava estar alcoolizado para libertar-se da
sua angústia, para esvaziar-se do seu tédio. Agora tanto ele como
eu e Dimas estávamos descobrindo um outro mundo, um outro
palco. O mestre saiu, e começamos a seguir seus passos. Subimos
uma ladeira. Andamos três quadras, viramos à direita, depois
quatro quadras à esquerda. Entreolhávamo-nos, indagando uns
aos outros, querendo descobrir para onde ele estaria indo.
Depois de quarenta minutos de caminhada, Dimas, que ainda
não havia ficado atônito o suficiente com as palavras do mestre,
perguntou:
— Para onde vamos?
O mestre interrompeu os passos, fitou seus olhos e lhe disse:
— Os que vendem sonhos são como o vento: você ouve a sua
voz, mas não sabe de onde ele vem e nem para onde vai. O
importante não é o mapa, mas a caminhada.
Dimas não entendeu quase nada, mas ficou pensativo, e
começou a exercitar a mente enferrujada. E continuamos a
caminhar. Quinze minutos depois, o mestre parou diante de uma
aglomeração e foi em sua direção. Reduzimos os passos, e ele
avançou uns seis metros à nossa frente. Dimas olhou para mim e
disse, apreensivo:
— Esse lugar é uma fria. Não dá. Reagindo, confirmei:
— Concordo. Acho que o mestre não sabe onde está entrando.
Era um velório. O único lugar onde desconhecidos não têm
clima nem desejo de entrar. Mas o irreverente Boquinha de Mel,
procurando manter a pose, me provocou, dizendo:
— Superego, desce do céu. Vamos pró velório.
Tive vontade de lhe dar um sopapo. Não sei se ele o bajulava
ou se o seguia de coração. Mas como estávamos próximos do
velório, um lugar de respeito, contive a ira. O ambiente estava
saturado de dor. Havia uma multidão velando um homem morto
por um câncer de rapidíssima evolução e que deixara um único
filho de doze anos.
O espaço onde se velavam os mortos era pomposo, construído
com vários arcos arredondados revestidos de mármore em
arabescos e iluminado por lustres com dúzias de lâmpadas. Era
um lugar fisicamente belo para conter tanta tristeza. O medo de
um escândalo num lugar que primava pelo silêncio desacelerou
ainda mais nossos passos. Distanciamo-nos do mestre. Estávamos
a doze metros dele. Olhando para trás, ele percebeu nossa
ansiedade, e aproximando-se dos seus tímidos discípulos indagou:
— Qual é o espaço mais sóbrio do grande manicômio social?
Serão os fóruns? Ou as redações dos jornais? Ou a tribuna dos
políticos? As universidades?
Tentei tapar a bocarra do Boca de Mel, mas não deu tempo.
Ele disse:
— Os botecos, chefinho. — Mas corrigiu em seguida: —
Brincadeira.
Como não sabíamos a resposta, o homem que seguíamos
afirmou:
— São os velórios. São eles os espaços mais lúcidos da
sociedade. Neles nos desarmamos, nos despimos das vaidades,
retiramos a maquiagem. Nesse espaço, somos o que somos. Se
assim não for, seremos mais doentes do que imaginamos. Para
uma minoria, composta dos íntimos, o velório é uma fonte de
desespero. Para uma maioria, composta dos mais distantes, uma
fonte de reflexão. Para ambos, a verdade é crua: tombamos no
silêncio de um túmulo não como doutores, intelectuais, líderes
políticos, celebridades, mas como frágeis mortais.
Essas palavras me fizeram ver que era nos velórios que
deixávamos de ser deuses e entrávamos em contato com nossa
humanidade, deparávamos com nossas loucuras e enxergávamos
nosso anti-heroísmo. Nos velórios, nós, os normais, fazíamos
intuitivamente uma socioterapia.
Uns diziam: ”Coitado! Morreu tão novo!”. Esses se projetavam
no falecido e começavam a ter um pouco de compaixão de si
mesmos, e sentiam que deviam viver a vida com mais suavidade.
Outros falavam: ”A vida é uma fonte de riscos. Basta estar vivo
para morrer”. Esses viam a urgência de relaxar, diminuir o ritmo.
Outros ainda comentavam: ”Lutou tanto e, quando ia desfrutar
das suas conquistas, morreu!”. Esses descobriam que a vida passa
como a sombra, que em vão se inquietavam e conquistavam
fortunas, mas outros, que nem sempre as mereciam, é que se
deleitavam nelas. Precisavam mudar seu insano estilo de vida.
Os participantes dos velórios tentavam desesperadamente
comprar sonhos, mas o rolo compressor do sistema os furtava em
poucas horas ou dias. Tudo voltava ao ”normal”. Não entendiam
que os sonhos só poderiam ter durabilidade e penetrabilidade se
fossem tecidos como linho fino nos lugares secretos do intelecto.
Eu, em particular, sempre me fixara na argila do continuísmo. A
miséria dos outros era um filme, uma ficção que insistia em criar
raízes em minha psique, mas esta não passava de um solo
impermeável.
Após falar sobre o espaço sóbrio dos velórios, ele acrescentou:
— Não esperem contemplar flores onde as sementes não
morreram. Não se inquietem, vamos. — E sorriu.
Para ele, essas palavras foram satisfatórias; para nós,
diminuíram apenas dez graus na fervura da ansiedade em que nos
encontrávamos. A morte é perturbadora, mas a vida também o é. A
primeira extingue o fôlego humano, a segunda pode asfixiá-lo. O
que ele poderia falar num ambiente em que mortos e vivos
silenciam a voz? O que poderia discorrer num terreno em que
todos os discursos esfacelam seu impacto? O que poderia dizer
num momento em que as pessoas não estão inclinadas a ouvir,
apenas a beber o cálice da angústia diante da perda? Que palavras
as aliviariam? Ainda mais vindas de um estranho.
Sabíamos que o mestre não se comportaria como mais um
número no meio da multidão. Esse era o problema. Sabíamos que
não se calaria. E esse era um problema maior ainda.

Uma solene homenagem

Os ”normais” levantavam sempre do mesmo jeito.
Reclamavam da mesma maneira. Irritavam-se do mesmo modo.
Xingavam com as mesmas palavras. Cumprimentavam os íntimos
da mesma forma. Davam as mesmas respostas para os mesmos
problemas. Expressavam o mesmo humor em casa e no trabalho.
Tinham as mesmas reações diante das mesmas circunstâncias.
Davam presentes nas mesmas datas. Enfim, tinham uma rotina
estafante e previsível, que se tornava uma fonte excelente para a
ansiedade, a angústia, o vazio, o enfado.
O sistema havia enfartado a imaginação das pessoas,
corroera a sua criatividade. Elas raramente surpreendiam.
Raramente davam presentes em dias inesperados. Raramente
reagiam de modo distinto em situações tensas. Raramente
libertavam o intelecto para enxergar os fenômenos sociais por
outros ângulos. Eram prisioneiras e não sabiam.
Os pais ”normais”, quando iam corrigir ou aconselhar os
filhos, eram interrompidos no meio do caminho. Os filhos não
agüentavam mais os mesmos argumentos. Diziam: ”Eu já sei...”. E
já sabiam mesmo. Os ”normais” não sabiam encantar.
Não sabiam contar suas próprias experiências para estimular
as idéias dos outros.
Sempre fui previsível ao me relacionar com meus alunos, e só
descobri isso quando comecei a andar com meu mestre. Dava aula
no mesmo tom de voz. Fazia críticas e dava broncas da mesma
maneira. Variava os verbos e substantivos, mas não a forma e o
conteúdo. Os alunos estavam com o saco cheio de um professor
que parecia mais uma múmia do Egito do que um ser humano
versátil. Não agüentavam mais ouvir que seriam derrotados na
vida se não estudassem.
O vendedor de idéias vendia continuamente o sonho do
encantamento. Como pode alguém que não tem nada
exteriormente cativar tanto? Como pode um homem sem teoria
pedagógica bombear nossa imaginação? Andar com ele era um
convite à inovação. Navegávamos sem destino traçado. Ele via por
ângulos distintos situações ordinárias. Não sabíamos qual seria a
resposta. Mas, no fundo, ele sabia muito bem o que queria e aonde
queria chegar. Estava nos treinando a encontrar uma liberdade
inimaginável. Cada dia era um canteiro de surpresas, umas
agradabilíssimas, outras causticantes.
Na manhã seguinte, depois de um período de mitigação
silenciosa das suas preocupações, o mestre se levantou, aspirou
algumas vezes longamente o ar poluído do viaduto e agradeceu a
Deus de um modo inusitado.
— Deus, você caminha nas reentrâncias do tempo, está
infinitamente distante e infinitamente próximo, mas sei que seus
olhos me espreitam. Permita-me captar seus sentimentos.
Obrigado por mais um show nessa surpreendente existência.
Boca de Mel, que era vidrado em shows country, disse:
— Que show nós iremos ver, chefinho? — E expressou um
entusiasmo matutino que raramente vivenciava.
O vendedor de sonhos reagiu, deslumbrado:
— Show? Cada dia é um show, cada dia um espetáculo. Só
não o descobre quem está mortalmente ferido pelo tédio. O drama
e a comédia estão em nosso cérebro. Basta despertá-los.
Bartolomeu precisava estar alcoolizado para libertar-se da
sua angústia, para esvaziar-se do seu tédio. Agora tanto ele como
eu e Dimas estávamos descobrindo um outro mundo, um outro
palco. O mestre saiu, e começamos a seguir seus passos. Subimos
uma ladeira. Andamos três quadras, viramos à direita, depois
quatro quadras à esquerda. Entreolhávamo-nos, indagando uns
aos outros, querendo descobrir para onde ele estaria indo.
Depois de quarenta minutos de caminhada, Dimas, que ainda
não havia ficado atônito o suficiente com as palavras do mestre,
perguntou:
— Para onde vamos?
O mestre interrompeu os passos, fitou seus olhos e lhe disse:
— Os que vendem sonhos são como o vento: você ouve a sua
voz, mas não sabe de onde ele vem e nem para onde vai. O
importante não é o mapa, mas a caminhada.
Dimas não entendeu quase nada, mas ficou pensativo, e
começou a exercitar a mente enferrujada. E continuamos a
caminhar. Quinze minutos depois, o mestre parou diante de uma
aglomeração e foi em sua direção. Reduzimos os passos, e ele
avançou uns seis metros à nossa frente. Dimas olhou para mim e
disse, apreensivo:
— Esse lugar é uma fria. Não dá. Reagindo, confirmei:
— Concordo. Acho que o mestre não sabe onde está entrando.
Era um velório. O único lugar onde desconhecidos não têm
clima nem desejo de entrar. Mas o irreverente Boquinha de Mel,
procurando manter a pose, me provocou, dizendo:
— Superego, desce do céu. Vamos pró velório.
Tive vontade de lhe dar um sopapo. Não sei se ele o bajulava
ou se o seguia de coração. Mas como estávamos próximos do
velório, um lugar de respeito, contive a ira. O ambiente estava
saturado de dor. Havia uma multidão velando um homem morto
por um câncer de rapidíssima evolução e que deixara um único
filho de doze anos.
O espaço onde se velavam os mortos era pomposo, construído
com vários arcos arredondados revestidos de mármore em
arabescos e iluminado por lustres com dúzias de lâmpadas. Era
um lugar fisicamente belo para conter tanta tristeza. O medo de
um escândalo num lugar que primava pelo silêncio desacelerou
ainda mais nossos passos. Distanciamo-nos do mestre. Estávamos
a doze metros dele. Olhando para trás, ele percebeu nossa
ansiedade, e aproximando-se dos seus tímidos discípulos indagou:
— Qual é o espaço mais sóbrio do grande manicômio social?
Serão os fóruns? Ou as redações dos jornais? Ou a tribuna dos
políticos? As universidades?
Tentei tapar a bocarra do Boca de Mel, mas não deu tempo.
Ele disse:
— Os botecos, chefinho. — Mas corrigiu em seguida: —
Brincadeira.
Como não sabíamos a resposta, o homem que seguíamos
afirmou:
— São os velórios. São eles os espaços mais lúcidos da
sociedade. Neles nos desarmamos, nos despimos das vaidades,
retiramos a maquiagem. Nesse espaço, somos o que somos. Se
assim não for, seremos mais doentes do que imaginamos. Para
uma minoria, composta dos íntimos, o velório é uma fonte de
desespero. Para uma maioria, composta dos mais distantes, uma
fonte de reflexão. Para ambos, a verdade é crua: tombamos no
silêncio de um túmulo não como doutores, intelectuais, líderes
políticos, celebridades, mas como frágeis mortais.
Essas palavras me fizeram ver que era nos velórios que
deixávamos de ser deuses e entrávamos em contato com nossa
humanidade, deparávamos com nossas loucuras e enxergávamos
nosso anti-heroísmo. Nos velórios, nós, os normais, fazíamos
intuitivamente uma socioterapia.
Uns diziam: ”Coitado! Morreu tão novo!”. Esses se projetavam
no falecido e começavam a ter um pouco de compaixão de si
mesmos, e sentiam que deviam viver a vida com mais suavidade.
Outros falavam: ”A vida é uma fonte de riscos. Basta estar vivo
para morrer”. Esses viam a urgência de relaxar, diminuir o ritmo.
Outros ainda comentavam: ”Lutou tanto e, quando ia desfrutar
das suas conquistas, morreu!”. Esses descobriam que a vida passa
como a sombra, que em vão se inquietavam e conquistavam
fortunas, mas outros, que nem sempre as mereciam, é que se
deleitavam nelas. Precisavam mudar seu insano estilo de vida.
Os participantes dos velórios tentavam desesperadamente
comprar sonhos, mas o rolo compressor do sistema os furtava em
poucas horas ou dias. Tudo voltava ao ”normal”. Não entendiam
que os sonhos só poderiam ter durabilidade e penetrabilidade se
fossem tecidos como linho fino nos lugares secretos do intelecto.
Eu, em particular, sempre me fixara na argila do continuísmo. A
miséria dos outros era um filme, uma ficção que insistia em criar
raízes em minha psique, mas esta não passava de um solo
impermeável.
Após falar sobre o espaço sóbrio dos velórios, ele acrescentou:
— Não esperem contemplar flores onde as sementes não
morreram. Não se inquietem, vamos. — E sorriu.
Para ele, essas palavras foram satisfatórias; para nós,
diminuíram apenas dez graus na fervura da ansiedade em que nos
encontrávamos. A morte é perturbadora, mas a vida também o é. A
primeira extingue o fôlego humano, a segunda pode asfixiá-lo. O
que ele poderia falar num ambiente em que mortos e vivos
silenciam a voz? O que poderia discorrer num terreno em que
todos os discursos esfacelam seu impacto? O que poderia dizer
num momento em que as pessoas não estão inclinadas a ouvir,
apenas a beber o cálice da angústia diante da perda? Que palavras
as aliviariam? Ainda mais vindas de um estranho.
Sabíamos que o mestre não se comportaria como mais um
número no meio da multidão. Esse era o problema. Sabíamos que
não se calaria. E esse era um problema maior ainda.

Uma solene homenagem

Eu passei esse drama quando perdi minha mãe. Os pêsames
não me aliviavam, nem, muito menos, os conselhos pré-fabricados.
Todas as palavras de conforto apenas faziam ranhura nas barras
de aço que me encarceravam. Teria preferido o silêncio dos abraços
ou apenas algumas lágrimas que chorassem comigo.
O mestre foi pedindo espaço para a multidão. Nós seguíamos
seus passos. À medida que nos aproximávamos do caixão, as
pessoas pareciam sofrer mais. Até que vimos um homem jovem, de
cerca de quarenta anos, cabelos pretos mas ralos, face emagrecida
e sofrida, inerte no caixão.
A esposa estava inconsolável. Os parentes e amigos próximos
estavam todos enxugando as próprias lágrimas. O filho estava
desesperado. Eu me vi nele, senti mais do que meus companheiros
a sua dor. Ele mal começara a vida, e começara perdendo muito.
Eu mal entendia a vida e meu pai encerrava a dele, e minha mãe,
posteriormente, fechara os olhos. Jantava com a solidão e dormia
em meu mundo fechado, repleto de dúvidas que nunca foram
respondidas. Deus não se importava comigo, pensava. Tive mágoas
dele na adolescência. Por fim, na vida adulta, ele se tornou uma
miragem, e tornei-me ateu. Devia estar brincando, mas me tornara
um especialista em idéias pessimistas. Percebendo o vácuo na
história desse jovem, não pude conter as lágrimas.
O mestre, ao ver o desespero do garoto, deu-lhe um abraço e
perguntou o nome dele e de seu pai. Então, para nosso espanto,
olhou para os presentes e, com sua voz grave, proferiu algumas
palavras que lhes tirou o chão. Palavras que poderiam precipitar
um tumulto.
— Por que vocês estão desesperados? O senhor Marco Aurélio
não está morto.
Imediatamente eu, Bartolomeu e Dimas procuramos ficar um
pouco mais distantes. Era recomendável não sermos reconhecidos
como seus discípulos. As pessoas tiveram reações distintas diante
da sua atitude ousada. Umas saíram das lágrimas para o deboche,
se bem que contido. Deram risadas disfarçadas do maluco. Outras
estavam imersas num clima de curiosidade. Pensavam tratar-se de
um excêntrico líder espiritual, convidado para celebrar o funeral.
Outros tiveram vontade de expulsá-lo da cena com elevada dose de
raiva pela invasão de privacidade, pelo desrespeito aos sentimentos
alheios. Dentre esses, alguns o pegaram pelos braços para tentar
sufocar rapidamente o escândalo.
Mas o mestre não se perturbou. Começou a indagar com voz
alta e firme:
— Não lhes peço que silenciem sua dor, mas que silenciem o
desespero. Não espero que estanquem suas lágrimas, mas
estanquem os altos níveis de angústia. A saudade nunca é
resolvida, mas o desespero deve ser aquietado, pois não honra
quem partiu.
As pessoas soltaram seus braços e começaram a perceber que
o homem de vestes estranhas e barba proeminente podia ser
excêntrico, mas era inteligente. O filho do morto, Antônio, e a
esposa, Sofia, fixaram-se nele.
Em seguida, com ar de serenidade difícil de definir,
adicionou:
— Marco Aurélio viveu momentos incríveis, chorou, amou, se
encantou, perdeu, conquistou. Vocês estão aqui tristes com sua
ausência, mergulhados num sentimento de vácuo existencial,
porque o estão deixando morrer no único lugar em que ele tem de
continuar vivo. Dentro de vocês.
Vendo as pessoas mais interiorizadas, usou novamente seu
penetrante método socrático:
— Que cicatrizes Marco Aurélio deixou em suas emoções?
Onde ele influenciou seus caminhos? Que reações marcaram sua
maneira de ver a vida? Que palavras e gestos perfumaram seu
intelecto? Onde este homem silencioso ainda grita nos recônditos
de suas histórias?
Após proferir essas perguntas seqüencialmente, o vendedor
de idéias deu um choque de lucidez em todos os que ouviam sua
voz, inclusive em nós, que o seguíamos. Mais uma vez ficamos
envergonhados pela nossa falta de sabedoria e sensibilidade. Ele
refez a pergunta inicial que abalara os ouvintes:
— Este homem está vivo ou morto dentro de vocês?
As pessoas disseram que estava vivo. Imediatamente ele fez
um comentário que tirou as pessoas do desespero e abrandou os
ânimos:
— Pouco antes de Jesus ser morto, uma mulher, de nome
Maria, amando-o, derramou sobre ele o mais caro dos perfumes.
Era tudo o que ela tinha. Ao ungi-lo com seu perfume, ela queria
elogiá-lo por tudo o que ele fez e viveu, e ele ficou tão emocionado
que a elogiou por seu gesto magnânimo, enquanto os discípulos a
repreendiam porque desperdiçara um perfume valiosíssimo, que
poderia ter outras finalidades. Censurando os discípulos, ele lhes
disse que os estava preparando para sua morte, e que onde a sua
mensagem fosse propagada o gesto dela seria contado como um
memorial eterno.
As pessoas estavam concentradas nas suas palavras. Os que
não ouviam direito tentavam se espremer junto aos que estavam
mais próximos. A seguir, ele arrematou:
— O Mestre dos Mestres quis demonstrar que o velório pode
ser um ambiente de lágrimas, mas deve ser acima de tudo um
ambiente saturado de elogios e recordações solenes. O luto deve
ser um ambiente perfumado, uma homenagem para quem partiu.
Um ambiente para contar seus gestos, declarar suas reações,
comentar suas palavras. A maioria dos seres humanos tem algo
para ser declarado. Por favor, contem-me os feitos desse homem!
Declarem o significado dele na vida de vocês. Seu silêncio deve
alçar vôo de nossa voz.
Num primeiro momento, as pessoas olharam umas para as
outras, sem reação. Num segundo momento, foi incrível o que
sucedeu. Muitos começaram a contar passagens únicas que
tinham vivido com ele. Falaram do legado que ele deixara. Alguns
comentaram sobre sua gentileza. Outros declararam sua
afetividade. Outros discorreram sobre sua bondade e
companheirismo. Outros apontaram sua lealdade. Outros
elogiaram sua capacidade de lidar com fracassos. Outros, mais
relaxados, falaram sobre seus maneirismos. Houve quem dissesse
que era apaixonado pela natureza. Um amigo disse:
— Jamais vi alguém tão teimoso e obstinado. — As pessoas
sorriram num ambiente em que ninguém sorri, inclusive Antônio e
a esposa, pois sabiam que ele era realmente um grande teimoso. E
o amigo acrescentou: — Mas ele me ensinou que nunca devemos
desistir daquilo que amamos.
Foram incríveis vinte minutos de homenagens. As pessoas
não sabiam descrever a fascinante experiência emocional que
haviam tido. Marco Aurélio estava vivo, pelo menos dentro das
pessoas que o velavam. Nesse momento, o mestre olhou para nós,
seus discípulos, e brincou, ou nos disse uma verdade, não sei.
Comentou:
— Quando eu morrer, não se desesperem. Homenageiem-me.
Falem dos meus sonhos, falem das minhas loucuras.
Algumas pessoas deram risada do estranho e divertido
homem que as arrebatara do vale do desespero e as introduzira no
topo da serenidade. Por incrível que pareça, até o jovem Antônio
sorriu. Em seguida, nesse ambiente perfumado pela homenagem
póstuma, o mestre vendeu mais esse sonho para o jovem que
perdera o pai. Foi um fenômeno sociológico que eu jamais imaginei
estar vivo para ver.
— Antônio, veja como seu pai foi um ser humano brilhante,
apesar dos defeitos dele. Não refreie as lágrimas; chore tantas
vezes quantas desejar, mas não lamente desesperadamente sua
perda. Ao contrário, honre-o vivendo com maturidade. Honre-o
enfrentando seus temores. Elogie-o sendo generoso, criativo,
afetivo, sincero. Viva com sabedoria. Creio que, se seu pai pudesse
usar minha voz neste momento para lhe falar algo, ele daria gritos
para encorajá-lo a viver: ”Filho, vá em frente! Não tenha medo do
caminho, tenha medo de não caminhar!”
Antônio ficou profundamente aliviado. Era tudo o que ele
precisava ouvir. Ainda choraria muito, a saudade lhe bateria no
peito sem dó, mas saberia colocar vírgulas na sua história ao
encontrar a solidão, ao se deparar com a angústia. Sua vida
ganharia outros contornos.
O vendedor de sonhos preparava-se para sair, mas antes
deixou a platéia perplexa com seus questionamentos finais, os
mesmos questionamentos que me haviam abalado no topo do
Edifício San Pablo:
— Somos átomos vivos que se desintegram para nunca mais
voltarem a ser o que eram? O que é a existência ou inexistência?
Que mortal o sabe? Quem dissecou as entranhas da morte para
expor sua essência? A morte é o fim ou o começo?
Extasiadas, as pessoas se encostavam em mim e
perguntavam: ”Quem é o cara? De onde procede o sujeito?”. O que
eu poderia responder? Também não sabia. Aproximaram-se do
Bartolomeu e infelizmente fizeram a mesma indagação. Boquinha
de Mel gostava de tecer teses sobre o que não conhecia. Estufando
o peito, respondeu:
— Quem é meu chefinho? Ele é de outro mundo. E, se
precisar de alguma coisa, sou assessor dele para assuntos
internacionais.
Dimas, o mais novo da turma, que estava atordoado com
tudo que ouvira, respondeu com honestidade:
— Não sei quem ele é. Só sei que se veste como um miserável,
mas parece ser muito rico, ter muita grana.
Sofia, mãe de Antônio, profundamente agradecida, assim
como eu, explodia de curiosidade. Ao vê-lo virar as costas para
partir sem mais nada dizer, perguntou:
— Quem é o senhor? De que religião procede? Que corrente
de pensamento o alimenta?
Ele olhou para ela e calmamente respondeu:
— Eu não sou religioso, não sou teólogo, não sou filósofo. Sou
um caminhante que procura entender quem é. Sou um
caminhante que outrora colocou Deus debaixo da planta dos pés,
mas depois de atravessar um grande deserto descobriu que Ele é o
artesão da existência.
Ao ouvi-lo, mais uma vez fiquei reflexivo. Não sabia que o
mestre fora ateu como eu. Mas algo fizera mudar sua mente. Sua
relação com Deus me perturbava; não era religiosa, formalista,
coitadista, mas carregada de uma amizade incompreensível. Quem
é ele, então? Que deserto atravessara? Teria ele chorado mais do
que todas as pessoas desse velório? Onde vivera, onde nascera?
Antes que borbulhassem mais perguntas no cerne da minha
mente, ele foi saindo. Sofia estendeu-lhe as duas mãos e declarou
seu agradecimento sem dizer palavras. Antônio não se conteve.
Deu-lhe um abraço prolongado que comoveu a todos.
E perguntou:
— Onde posso encontrá-lo novamente? Onde você mora?
Ele respondeu:
— Minha casa é o mundo. Você poderá me encontrar em
alguma avenida da existência.
E saiu, deixando todos boquiabertos. Eu e meus dois amigos
estávamos sem fala com suas reações. Ele nos cativou muitíssimo
e aquietou, pelo menos momentaneamente, nossas inseguranças.
Começávamos a acreditar que valia a pena segui-lo, sem saber das
tempestades que ainda nos sobreviriam.
Passamos lentamente pela multidão. As pessoas queriam
conhecê-lo, falar com ele, abrir alguns capítulos da vida delas, mas
ele passava por elas como um passante comum. Não amava o
assédio. Nós começávamos a nos sentir importantes. Dimas e
Bartolomeu, que sempre haviam vivido à margem da sociedade,
começaram a inflar o próprio ego, atingidos por um vírus que eu
conhecia muito bem.

Um milagreiro que amava seu ego

O dia pareceria perfeito se não fosse mais uma surpresa que
nos abarcaria. O velório central era grande. Havia várias salas
enormes, separadas uma das outras para que as pessoas
pudessem velar com privacidade vários mortos ao mesmo tempo.
Quando saímos da sala do velório do senhor Marco Aurélio,
passamos por outro velório, o de uma senhora de setenta e cinco
anos.
O mestre, em vez de continuar se retirando, se fixou em uma
pessoa desconhecida que acabara de passar por ele. Era um jovem
de uns trinta anos, cabelo enrolado, curto, paletó azul-marinho,
calça da mesma cor, camisa branca. O sujeito era bem-apessoado,
impostado, imponente. O vendedor de idéias seguiu sutilmente
seus passos.
O jovem aproximou-se do caixão da senhora com segurança.
Era um pregador. Parecia bem sóbrio, pelo menos aos meus olhos,
embora não o parecesse aos olhos do vendedor de sonhos. O jovem
se posicionou aos pés da falecida e fez um gesto de reverência. E
pouco a pouco revelou sua face. Ficamos impressionados com suas
reais intenções.
Seu nome era Edson, e seu apelido era ”o Milagreiro”. O
apelido de Edson se justificava porque ele tinha uma atração fatal
por ”fazer” milagres. Queria ajudar os outros, mas sempre existia
uma intenção subjacente: amava se autopromover. Edson não era
o líder espiritual oficial encarregado de proferir palavras de consolo
no funeral. Estava lá por interesse próprio.
Por incrível que pareça, o Milagreiro desejava ressuscitar a
velhota. Queria dar um deslumbrante espetáculo capaz de fazer as
pessoas se dobrarem aos seus pés; ambicionava despertar a
senhora da morte para ser reconhecido como portador de um dom
sobrenatural. Assim como o imperador Calígula queria ser
reconhecido como deus e usou seu poder para isso, Edson usava
textos bíblicos e o poder que acreditava ter para ser reconhecido
como um semideus, embora nunca admitisse isso.
Como sociólogo, eu já havia estudado que nenhum poder é
tão penetrante como o poder religioso. Ditadores, políticos,
intelectuais, psiquiatras e psicólogos não conseguem penetrar nos
espaços psíquicos dos outros como determinados líderes
espirituais. Por representarem a divindade, esses homens podem
conquistar no inconsciente coletivo da sua comunidade um status
jamais atingido por Napoleão, Hitler, Kennedy, Freud, Karl Marx,
Max Weber, Einstein.
Ao longo da caminhada, o mestre nos alertava que os líderes
espirituais que representavam um Deus altruísta, solidário,
generoso, contribuíam para o bem da humanidade, mas os que
representavam um deus centralizador, controlador, castrador,
enfim, um deus criado à imagem e semelhança deles, causavam
desastres, destruíam a liberdade e controlavam as pessoas. O
mestre sempre nos alertava dizendo que, devido à fertilidade do
nosso imaginário, é muito fácil construir um deus em nosso
psiquismo, um deus manipulador. Parece que queria nos vacinar,
nos humanizar.
O sujeito que encontramos no velório tinha uma mistura de
intenções. Em determinados momentos, queria contribuir para o
bem das pessoas, era sincero e afetivo. Em outros, tinha
rompantes de soberba. Desejava ser entronizado em glória
imarcescível, como um deus.
Nosso Milagreiro de plantão era ambicioso, mas não era tolo.
Queria dar um espetáculo, mas não um escândalo. Queria
ressuscitar a velhota, mas se preservava para não dar vexame.
Muitos pensamentos turvavam sua mente: ”Vai que a velha não
ressuscita? Vai que lhe peço para se levantar e ela continua
esticada. Minha reputação vai para o ralo”.
O mestre o focalizava como se fosse um leopardo espreitando
as cenas da paisagem. Sabíamos que ele tinha prazer em lidar com
pessoas complicadíssimas, mas não entendíamos suas reais
intenções nesse cenário. Pouco a pouco, vislumbramos o show que
o Milagreiro esperto queria dar.
Após um momento de reverência, o Milagreiro chegou para a
defunta e disse-lhe num tom quase inaudível:
— Ressuscita! — O motivo de falar baixinho era para se
garantir da possível falha da sua fé.
A velhota não deu sinal de vida. Insistente, ele disse em voz
baixa novamente:
— Ressuscita! — Se a senhora manifestasse algum
movimento, Edson elevaria o tom de voz, declarando que era o
autor do feito extraordinário. Seria seu dia de glória. Inúmeras
pessoas famintas de atos sobre-humanos o seguiriam.
Mas nada. A falecida permanecia inerte. Eu, Bartolomeu e
Dimas, que não éramos flores que se cheirassem, ficamos
indignados com a artimanha do Milagreiro. Que sujeito petulante!,
pensamos.
E o sujeito não desistia. Estufou os pulmões e, com uma voz
mais impostada, mas falando entre dentes para ninguém entender
muito bem o que dizia, declarou:
— Ressuscita, mulher, eu te ordeno!
Nesse meio tempo, o improvável aconteceu. A mulher se
mexeu, mas por outros motivos. Apareceu um senhor curtido no
álcool, como Bartolomeu no dia em que o encontrei. O Milagreiro,
concentrado em seu ego e nos movimentos da senhora, não
percebeu a aproximação desse sobrinho.
Trançando as pernas, o velho chegou até a cabeceira do
caixão, do lado oposto do Milagreiro. Não conseguindo controlar
seus movimentos, deu um esbarrão no caixão. Abalou-o e fez
tremular vigorosamente o corpo da senhora, fazendo com que suas
mãos, sobrepostas suavemente uma na outra, saíssem dessa
posição.
A emoção do Milagreiro foi para as nuvens. Sentiu que era
seu grande dia. Excitadíssimo, dominado por um êxtase
incontrolável, pensou que finalmente seus poderes sobrenaturais
tinham funcionado. Para que todos soubessem que ele era o autor
da façanha, imediatamente alçou a voz e, altissonante, proferiu
estas palavras para toda a platéia:
— Ressuscita, mulher! Eu te ordeno!
Dessa vez, todos ouviram, e ficaram assustados com seus
brados. Da senhora, ele esperava que ficasse sentada no caixão, e
da multidão, esperava reverência pelo seu tremendo poder. Mas a
velhota não deu mais sinais de vida.
Abalado, achou que faltava um pouco mais de fé para fazer o
caixão tremer. Dessa vez, deu a ordem ao corpo, mas olhando
subliminarmente a multidão:
— Levanta, mulher! — suplicou ao corpo, que não respondia
ao seu notório apelo.
À medida que a mulher permanecia inerte, suas pernas foram
bambeando, e ele começou a suar frio, a ficar com a boca seca e a
ter taquicardia. Atordoado, viu o bêbado tentando se equilibrar
apoiando-se no caixão. Percebeu que cometera a maior gafe da sua
vida. Sentiu-se uma frágil presa diante de predadores. Mas o
sujeito era espertíssimo. Num malabarismo surpreendente, fez
mais do que um milagre. Levantou novamente a voz e disse com
firmeza:
— Mulher! Se não queres levantar para viver neste mundo
mau, descansa em paz!
Muitos normais disseram em coro:
— Amém!
Após suas últimas palavras, o Milagreiro pegou um lenço e
começou a ”chorar” e a dizer:
— Coitada! Era uma mulher tão boa!

Um discípulo ora lá de complicado

Tudo indicava que esse era apenas um dos eventos em que o
Milagreiro usava sua ”espiritualidade” para se aproveitar da
ingenuidade das pessoas. Os normais têm uma forte tendência de
ouvir líderes sem questioná-los. Cá com meus botões, ao observar
as reações do Milagreiro, olhei para Dimas e pensei: ”Nem o Mão
de Anjo seria tão safado”. Por sua vez, o Mão de Anjo, conhecendo
um pouco minha natureza por meio do Bartolomeu, pensou: ”Nem
este arrogante intelectual manipularia tanto os outros”.
Bartolomeu, mais honesto que nós dois, verbalizou:
— Só com duas garrafas de vodca na cabeça cheguei a ter
tantas alucinações como esse cara.
Logo que eu e meus amigos fizemos essa crítica ao Milagreiro,
trememos nas pernas. Olhamos uns para os outros e tivemos o
mesmo pensamento: ”Por que nosso mestre está observando esse
sujeito? Será que tem interesse em chamá-lo para o time?” Esse
pensamento nos incomodou tanto que nos fez dizer
simultaneamente estas palavras:
— Eu deserto!
Ficamos aflitos por um momento. Observamos os passos do
mestre. Torcíamos para ele lhe dar as costas, mas ele foi se
aproximando do homem que cativara sua retina. Nosso coração
palpitava. O Milagreiro encontrou o olhar do mestre e, para o bem
geral do grupo, não falou nada, apenas meneou a cabeça,
desaprovando-o.
O vendedor de sonhos admitia erros e mais erros, mas nunca
admitia o erro de controlar as pessoas. Para ele, a consciência de
uma pessoa era inviolável. A liberdade de escolha não deveria
sofrer um arranhão. Sua maior crítica contra o sistema social era
que ele vendia sorrateiramente uma liberdade inexistente, uma
liberdade que estava nas páginas da democracia, mas não nas
páginas da história dos seres humanos. Havia muitos escravos
algemados pelos seus pensamentos perturbadores e suas
preocupações.
Após desaprová-lo silenciosamente, sem expô-lo
publicamente, o mestre lhe fez duas afirmações e lhe apresentou
duas conclusões chocantes:
— Milagres não convencem. Se convencessem, Judas não
trairia Jesus. Milagres podem mudar o corpo, mas não mudam a
psique. Se mudassem, Jesus impediria Pedro de negá-lo.
Edson ficou mudo. Não sabia o que responder, pois nunca
tinha pensado nisso. Então veio uma conclusão bombástica que
me abalou como professor. O mestre lhe disse:
— O homem que você diz seguir jamais usou seu poder para
controlar as pessoas. O homem de Nazaré jamais usou seu poder
para seduzir platéias e conquistar seguidores. Por isso,
contrariando o marketing político, dizia aos que ajudava: não conte
para ninguém! Se não o seguissem pela loucura espontânea de um
amor insondável, não queria seguidores. Pois não queria servos,
mas amigos.
Essas palavras me induziram a um passeio reflexivo pela
história. Lembrei-me de que os europeus, nos séculos passados,
cometeram atrocidades em nome de Cristo: mataram, torturaram,
guerrearam, dominaram, feriram, excluíram. Jogaram no lixo a
doçura do homem que não controlava ninguém, que não admitia
servos. Foram séculos de lutas infernais, milhões de mortes, em
nome de alguém que inventaram. Foram séculos de rancor e
inimizades contra mulçumanos, uma animosidade cujas raízes até
hoje teima em se perpetuar. Ao andar com o mestre, eu começara
a desconfiar que não era um ateu convicto como imaginava. No
fundo, eu tinha asco da religiosidade atroz.
O Milagreiro ficou impassível; jamais alguém o corrigira sem
criticá-lo. Após esse breve diálogo, o mestre saiu de cena, deixando
várias pessoas emudecidas, sem saber direito o que acontecera.
Ficamos por demais aliviados. Até quando? Não sabíamos.
No dia seguinte, saiu uma matéria sobre os últimos fatos no
jornal Informação Urgente, com a seguinte manchete: ”Um estranho
transforma um velório num jardim”. Uma foto tirada às
escondidas, quando saíamos do velório, estava estampada na
primeira página de um dos cadernos. A reportagem não era
caluniosa, continha fatos interessantes. Dizia que um homem
desconhecido e audacioso queria mudar a dinâmica dos velórios,
queria transformá-los de patrimônio histórico do desespero em
patrimônio da homenagem.
O jornalista entrevistara pessoas que o tinham ouvido.
Algumas disseram que iriam escrever urna carta aos seus
familiares dizendo que, quando elas morressem, não fizessem um
cortejo fúnebre pautado pelo desespero, pela penúria e pelo
coitadismo, mas contassem seus feitos. Lembrassem seus atos de
amor, suas palavras, seus gestos, seus sonhos, suas amizades,
bem como sua estupidez. Queriam que, no meio da dor, uma aura
de alegria pudesse pautar a mente dos que delas se despediam.
A matéria comentava que o personagem era o mesmo que
causara uma balbúrdia nos arredores do Edifício San Pablo. E
terminava com duas perguntas: estamos diante um dos maiores
ateus de que se tem notícia ou do portador de uma
incompreensível espiritualidade? Estamos diante de um profeta do
mundo moderno ou de um maluco?
Na manhã seguinte, logo que despertamos, vimos o mestre
isolado, conversando consigo mesmo. Era a segunda vez que o
víamos tendo um autodiálogo. Fazia gestos como se estivesse tendo
alucinações ou como se questionasse suas próprias razões. Dez
minutos depois ele se aproximou, relaxado; parecia que havia
lavado sua psique do lixo que se acumulara no dia-a-dia.
O tempo estava fechado, ameaçava cair chuva pesada.
Relampeava muito. Dimas não tinha medo de policiais, não temia
passar alguns dias na cadeia, mas tinha verdadeiro pavor de
trovões. Estávamos andando por uma larga avenida quando os
trovões abalaram a estrutura do nosso esperto amigo.
Tentando acalmá-lo, eu lhe afirmava que quando ouvimos o
ribombar dos trovões o perigo já passara, o raio já se dissipara.
Porém a mente é cheia de artimanhas; ele entendia minhas
palavras, mas sua emoção ilógica não se abrandava. Eu não podia
criticá-lo, pois não era diferente dele. Sempre valorizei a lógica da
ciência, mas nunca deixei de sofrer pelo que não existe, em
especial pelo meu passado. Ele me perseguia.
A chuva não tardou a chegar. Rapidamente procuramos
abrigo. Entramos num grande shopping. No saguão de entrada
havia uma grande loja de departamentos. Enquanto entrávamos
na loja, ouvimos um grande estrondo. Dimas entrou debaixo da
primeira mesa que encontrou. Parecia um menino diante de um
fantasma. Pensei comigo: ”O mestre está certo. Não há heróis Todo
gigante encontra obstáculos que o transformam em criança. Basta
esperar”.
O estrondo deveu-se à queda de um raio. O pára-raios do
shopping não suportou a sobrecarga. Havia dois pintores mudando
a pintura da loja. Ambos eram primos. Um deles, que tinha uma
gagueira mais intensa que a de Dimas, pintava as paredes.
Quando estava nervoso, bloqueava o aparelho fonador e não
conseguia articular uma palavra. O outro estava no topo de uma
escada de dois metros retocando as janelas de ferro alegremente.
O raio, ao cair abruptamente, correu pelas paredes e resvalou
na janela, atingindo aquele que estava retocando pintura. O
barulho foi ensurdecedor. O pintor caiu da escada e se contorcia
de dor. Seu primo, aterrorizado, foi socorrê-lo. Tentamos nos
aproximar do local. Mas, antes que chegássemos, apareceu alguém
com ar de heroísmo querendo socorrê-lo. Não sei de onde saiu
aquele homem, mas parecia alguém que conhecíamos. Era o
Milagreiro que havíamos encontrado no velório no dia anterior.
Edson viu o pintor deitado, gemendo de dor e com as mãos
no tornozelo direito. Viu que o pé do pintor estava deformado.
Concluiu imediatamente que fora a descarga elétrica. Sem perder
tempo, disse para o outro pintor, que assistia o ferido:
— Deixe-o, eu cuido dele. Sou especialista nisso. Juntou-se
ao homem caído e tentou endireitar o pé dele, mas não conseguiu.
Sentou sobre a perna dele e passou a dar-lhe ordens, tentando
exercitar seus dons sobrenaturais.
— Conserta! Endireita! Alinha os ossos!
Mas o tornozelo não endireitava. O pintor, agoniado, gemia
mais. O Milagreiro fazia mais força ainda. Não era possível deixar
de resolver um caso tão simples. Não era possível que seu moral
com Deus estivesse tão baixo, deve ter pensado. O pintor urrava de
dor. A platéia foi aumentando, e isso excitava o Milagreiro
”samaritano”, estimulando-o a mostrar sua benevolência
sobrenatural.
Muitos dos que viam a valentia e os préstimos do Milagreiro
pensavam que ele fosse um médico que estava fazendo algum
procedimento para aliviar as dores do pobre pintor. O primo gago
emitia grunhidos incompreensíveis, parecia querer dizer algo a
Edson, mas este sentia que o desespero dele atrapalhava sua
concentração. Perdendo a paciência, disse para o pintor que estava
em pé:
— Fique calmo! Eu endireitarei a perna deste homem!
E endireitou mesmo. Dois longos minutos depois, o milagreiro
cumpriu sua missão. Limpando o suor da testa, disse para a
platéia:
— O tornozelo está bom novamente — embora a dor do pintor
estivesse pior.
Este olhava para seu tornozelo e parecia mais desesperado.
Pensávamos que ainda estava em estado de choque.
Quando a platéia ensaiava as primeiras palmas a Edson pelo
socorro à vítima, a língua do pintor gago se soltou. Querendo dar
uma bofetada no Milagreiro, ele bradou:
— Miserável! Cachorro! Açougueiro!
Ninguém entendeu nada, nem meu mestre. Parecia que o
pintor gago estava sendo ingrato. Em seguida, explicou,
gaguejando:
— Meu primo é manquitola... Tem um defeito no tornozelo há
trinta anos, mas nunca o corrigiu por medo da cirurgia. Agora vem
esse desgraçado e o conserta... e sem anestesia.
As pessoas ficaram condoídas do pintor. Poucos segundos
antes estavam animadas para aplaudir o Milagreiro, mas agora
mudavam de ânimo: tinham vontade de enchê-lo de bolachas,
desejavam executar a vontade do pintor gago, mas foram
impedidas pelo mestre. Com uma pergunta memorável, ele conteve
a revolta da platéia e resgatou o homem que amava o poder:
— Esperem! Por que vocês querem feri-lo? O que vale mais: o
sentido literal da reação ou a intenção do agente?
Fisgadas em seus pensamentos, as pessoas diminuíram a
temperatura da emoção e começaram a se dispersar. Bartolomeu,
um pouco constrangido, falou:
— Chefinho, explica o pensamento, please!
Nosso bêbado recentemente ”regenerado” e sujeito a recaídas
gostava de esnobar, proferindo algumas palavras em inglês.
Calmamente e na presença do Milagreiro, o mestre explicoulhe:
— Os gestos exteriores de um ser humano podem ser
condenáveis, suas reações literais podem ser criticadas, mas o que
deve ser analisado em primeiro lugar são seus reais desejos.
Edson pela primeira vez fazia um ”milagre”, e quase fora
linchado. Condenávamos outra vez suas atitudes, olhávamos para
a reação exterior. Não víamos, como o mestre, nenhuma intenção
altruísta em seus gestos. Queríamos que ele estivesse a
quilômetros de distância de nosso projeto. Mas, sem dar tempo
para que respirássemos, o mestre acabou fazendo o que mais
temíamos. Olhou para o Milagreiro e, com naturalidade, disse-lhe:
— Venha e siga-me, que lhe mostrarei milagres que
desconhece, aqueles que talvez tenham alguma possibilidade de
iluminar um pouco este asfixiante sistema social.
Quando ouvimos o seu chamado, eu e meus dois amigos nos
abraçamos. Alguns pensavam que estávamos emocionados, mas
estávamos decepcionados. Ah, como é fácil contrair o vírus do
preconceito! Tínhamos feito uma pequena panelinha. Aceitávamos
no time malandros, bêbados e pessoas estupidamente orgulhosas,
mas discriminávamos religiosos, ainda mais milagreiros. Tivemos
de assimilar a sua vontade com elevada dose de paciência e
tolerância. O grupo ganhou um colorido que não queríamos.
Edson ficou animadíssimo com o chamado. Não o
compreendeu, mas entendeu que o homem que o chamara, embora
exótico, tinha alto poder de persuasão. Se aprendesse as técnicas
de sua oratória, poderia ir longe, pensou ele. Não sabia em que
barco estava entrando. Não imaginava que passaria por um
amargo processo de desintoxicação da compulsão pelo poder. No
fundo, era um viciado, tal como o Boquinha de Mel no álcool, eu
em meu ego e o Mão de Anjo em malandrice. Éramos todos
drogados.

Um obsessivo no ninho

Não defendíamos uma seita, facção ou partido político. Não
fazíamos parte de uma fundação nem constituíamos uma
organização oficial. Não tínhamos assistência social, não sabíamos
onde dormiríamos nem o que comeríamos. Dependíamos das
dádivas espontâneas das pessoas, e às vezes tomávamos banho em
albergues coletivos. Éramos um bando de sonhadores que queriam
mudar o mundo, pelo menos o nosso mundo. Todavia, não
tínhamos nenhuma garantia se mudaríamos alguma coisa ou se
causaríamos mais confusão. Mas eu estava começando a achar a
vida adorável, uma experiência sociológica agradável, embora
saturada de incógnitas.
Algumas pessoas começavam a reconhecer o mestre por meio
do noticiário da mídia. Elas interrompiam sua caminhada e
sentiam necessidade de contar-lhe seus problemas. Ele as ouvia
com prazer. Depois de minutos ou horas escutando-as,
encorajava-as e animava-as a fazer escolhas, e entender que toda
escolha traz frustrações e não apenas ganhos.
Aos poucos, foi acrescentando mais discípulos. Cada
personagem era mais interessante que o outro. As andorinhas
estavam aprendendo a bailar num sistema que queria tosar suas
asas. Mas aprendíamos a não fazer grandes planos para o futuro.
O futuro não nos pertencia. A vida era uma festa, embora o vinho
sempre acabasse.
Aprendíamos a beijar pessoas idosas e sentir as marcas do
tempo. Aprendíamos a prestar atenção nas crianças e nos deliciar
com sua ingenuidade. Aprendíamos a conversar com mendigos e
percorrer seus incríveis mundos. Padres, freiras, pastores,
islamitas, budistas, suicidas, depressivos, fóbicos, havia tantas
pessoas belas e interessantes ao nosso redor, mas elas estavam
apenas nas estatísticas sociológicas.
Uma sensibilidade que nunca fora trabalhada em minha
personalidade começava a me invadir, embora meu egoísmo
dormitasse, mas não estivesse morto. Lembrei-me dos filmes de
ação a que assistira. Neles sempre morriam inúmeros anônimos,
míseros figurantes, pelas armas dos policiais, sem que nos
déssemos conta de que cada anônimo na vida real possui um
mundo indecifrável, com temores e amores, ousadias e covardias.
Para o mestre, não havia figurantes na sociedade real. Ele exaltava
os miseráveis, chamava-os para serem seus amigos íntimos. Os
que viviam à margem do sistema ganharam notoriedade.
Quando pensava que minha sensibilidade estava em alta, um
”figurante” passou por minha vida e me fez ver que ela era ainda
incipiente, precisava de muito combustível. Estávamos na Avenida
Presidente Kennedy e de repente vimos um jovem de pouco mais
de vinte anos, um metro e oitenta de altura, cabelo crespo, pele
escura. Seu nome era Salomão Salles. Tinha gestos estranhos,
capaz de cativar a atenção até das crianças. Mexia o pescoço
agitadamente, flexionando os músculos trapézios para o lado
esquerdo e para o alto. Piscava o olho várias vezes. Antes de entrar
por uma porta, dava três pulos, pois se não o fizesse acreditava
que alguém da sua família morreria. Era portador de um grave
TOC (transtorno obsessivo-compulsivo).
Além de todos esses bizarros rituais compulsivos, o mais
engraçado e mais estranho é que Salomão não podia ver um
buraco, uma saliência, fosse nas paredes, muros, solo, móveis, que
tinha o desejo de enfiar neles o dedo indicador direito. No exato
momento em que o observamos, estava agachado, colocando o
dedo em vários pequenos orifícios da calçada.
Os passantes debochavam dele. Sinceramente, não nos
contivemos também. Tentávamos disfarçar nossas risadas.
Pensávamos ter encontrado alguém com mais transtorno que todos
nós. Mas o mestre não gostou da nossa reação. Virando a face, ele
nos questionou:
— Esse jovem é mais frágil ou mais forte que nós? Qual o
preço que paga por expressar seus rituais em público? É um fraco
ou é dotado de notável coragem? Não sei quanto a vocês, mas sem
dúvida ele é mais forte que eu.
Calamo-nos, mas ele continuou:
— Quantas vezes vocês acham que esse jovem se sentiu no
centro de um circo que não construiu, como agora? Quantas noites
de insônia não teve, pensando nas gargalhadas dos andantes? Em
quantas situações não foi aprisionado nos currais inumanos do
preconceito? — E para nos fazer sentir ainda mais o odor fétido da
nossa discriminação, concluiu: — A crítica fere uma pessoa, o
preconceito anula-a.
Sempre que analisava a psique dos outros, tirava nossa
roupa, deixava-nos ”nus”. Descobri que mesmo pessoas como eu,
que sempre defenderam os direitos humanos, são grosseiramente
preconceituosas em algumas áreas, ainda que essa barbárie se
manifeste sutilmente, num sorriso disfarçado ou numa silenciosa
reação de indiferença. Somos piores que os vampiros. Matamos
sem extrair o sangue.
— Se quiserem vender o sonho da solidariedade, terão de
aprender a enxergar as lágrimas nunca choradas, as angústias
nunca verbalizadas, os temores que nunca contraíram os
músculos da face. Os que não desenvolvem tal característica terão
traços de psicopatia ainda que vivam em ambientes insuspeitos,
como os templos das universidades, ou os templos empresariais,
políticos e religiosos. Pressionarão, ferirão, constrangerão, sem
sentir a dor dos outros. Vocês fazem parte dessa estirpe? — nos
indagou.
Tentei puxar o ar profundamente para ver se oxigenava meu
intelecto. Teria eu traços de psicopatia? Os psicopatas clássicos
são facilmente perceptíveis, mas os que têm traços sutis de
psicopatia podem disfarçar sua insensibilidade até por trás de seus
títulos acadêmicos, sua ética ou sua espiritualidade. Eu
disfarçava.
Nunca procurei meu filho e lhe perguntei quais eram seus
temores ou suas mais marcantes frustrações. Impus regras para
João Marcos, lhe apontei erros, mas jamais vendi sonhos de que
sou um ser humano que precisa conhecê-lo e precisa ser amado
por ele. Nunca procurei um aluno que expressasse um ar de
tristeza, irritabilidade ou indiferença. Jamais dei o ombro para um
professor desabafar. Para mim, os professores eram técnicos e não
pessoas. Eles tiravam licença médica, e eu nunca os procurava.
Meu débil estilo de vida se voltou contra mim como um
bumerangue.
Quando eu pensava em desistir da vida, meu cálice emocional
também se tornou invisível para meus colegas e alunos. Um
intelectual como eu não podia declarar sua dor. Para eles,
depressão era coisa de gente frágil. Ninguém enxergou a minha
angústia desenhada clandestinamente no quadro de pintura do
meu rosto. Estariam eles cegos ou era eu que não sabia
demonstrar sentimentos? Não sei.
Como o mestre sempre nos alertou, ninguém é cem por cento
vilão nem cem por cento vítima. Eu era insensível e estava rodeado
de pessoas com baixo nível de sensibilidade. Não precisava de
aplausos, louvor acadêmico, congratulações, precisava apenas de
um ombro onde chorar, apenas sentir o cheiro de gente ao meu
lado que me dissesse: ”Estou aqui. Conte comigo”.
Quando o mestre nos levou a enxergar a coragem e grandeza
do jovem com TOC, ele nos fez um desafio.
— Vão vender sonhos para aquele jovem? — disse isso e se
calou, esperando nossa reação.
Ficamos emudecidos. Depois de eternos segundos com um nó
na garganta, sentíamos que estávamos perdidos. Era uma reação
estranha para um bando de pessoas supostamente experientes.
Não sabíamos o que dizer. Não sabíamos o que ele pensaria de nós.
Havia alguns minutos nós o taxáramos de maluco, agora tínhamos
medo de ser taxados de malucos por ele. Não é isso insanidade?
Balançamos nos extremos com incrível freqüência.
O mestre continuou calado. Seu silêncio nos desassossegava.
Sabíamos debochar da desgraça dos outros, mas não aliviá-la.
Éramos criativos em excluir, mas inábeis em incluir. Se alguém
pedisse para o Milagreiro fazer uma longa e bombástica oração
para o jovem, seria uma tarefa fácil, mas pedir para lhe vender
sonhos o deixara sem ação. Se Bartolomeu estivesse alcoolizado e
lhe pedissem para fazer amizade com o estranho, seria tranqüilo,
mas sóbrio era complicado. Se alguém pedisse para o Mão de Anjo
bater sua carteira e depois devolvê-la para causar-lhe admiração,
não haveria nenhuma dificuldade, mas cativá-lo com suas
palavras era uma tarefa quase impossível.
Se me pedissem para dar uma aula a ele para mostrar minha
cultura, eu não teria grande trabalho, mas conquistar um
estranho, que é meu semelhante, sem usar o poder da informação,
era-me uma tarefa dantesca. Eu sabia falar para grandes platéias,
mas não sabia encantar um ser humano com o que sou. Fora
treinado para falar de Kant, Hegel, Auguste Comte, Marx, mas não
sobre mim. O sistema havia achincalhado nossa humanidade. E
eu o alimentara.
Como não havia manual sobre a melhor maneira de vender
sonhos para um obsessivo e como o mestre se recusou a dar
orientações, lá fomos nós, inibidos. Eu, o mais culto da equipe, era
o mais engessado. O Boquinha de Mel, mais surrado pela vida,
agachou-se também e tentou enfiar as mãos nos buracos para
tentar o primeiro contato. O sujeito deu risada dele. Bartolomeu se
sentiu um tolo, e o jovem continuou seu ritual.
Edson não se agüentou, virou-se de costas e pôs as mãos na
boca, fazendo um esforço tremendo para sufocar as gargalhadas.
De repente, o obsessivo se levantou e viu o orifício no centro da
orelha de abano direita do Milagreiro. Num ímpeto ansioso, enfiou
o dedo no ouvido dele. A reação do outro foi imediata. Deu um
grito estridente, dizendo:
— Sai, demônio, que este corpo não te pertence!
Suas palavras assombraram Salomão. A indelicadeza foi
grande. Caindo em si, pôs as mãos na cabeça e percebeu que mais
uma vez mostrava sua viciada atitude de partir para o lado
sobrenatural. Dessa vez, porém, ele fora longe demais. Queria
expulsar do cérebro do jovem uma doença psíquica que estava
incrustada no inconsciente e no metabolismo cerebral.
Salomão, consternado, disse com sensibilidade para a platéia
de insensíveis:
— Já fui chamado de louco, psicótico, doido, demente,
insano, maluco, pirado, mas de endemoninhado é a primeira vez.
Vendo que machucara o jovem com a mais alta ofensa,
percebendo que no fundo não aceitava os diferentes e que
escondendo pesadelos e não sonhos, Edson olhou para ele e disselhe,
sem meias palavras:
— Desculpe-me. Realmente, desculpe-me. Fui profundamente
indelicado, injusto, tolo e superficial. Acho que você é muito mais
forte do que eu. Suporta o deboche público, enquanto eu procuro
os aplausos.
Ficamos fascinados com as palavras honestas e corajosas do
Edson. Enfim, começara a realizar um dos mais difíceis milagres, o
da humildade. Eu, como ele, jamais pedira desculpas para alguém,
fosse quem fosse. Éramos pequenos deuses, eu no templo do
conhecimento, ele no templo da espiritualidade. Começávamos a
entender que, quando somos frágeis, aí é que nos tornamos fortes.
A partir desse momento nos desinibimos, nos apresentamos
ao jovem e começamos a entrar nos capítulos da sua vida. Ele
tentara cursar psicologia, mas teve de desistir, pois seus
professores disseram que um obsessivo não poderia tratar de
doentes mentais. Tentara a faculdade de direito, mas teve de
desistir, pois seus professores disseram que um obsessivo com
rituais tão histriônicos não poderia ser levado a sério por seus
clientes, e muito menos fazer debates nos tribunais.
Não durava um trimestre em cada emprego. Ninguém queria
dar oportunidade para alguém que parecia não controlar seu
comportamento. Não conseguia namorar. Ninguém se interessava
por um homem que era uma fonte de deboche. A exclusão tecia as
vestes da sua existência. Todavia, era um ser humano fortíssimo,
como o mestre previa. Apesar de enfrentar todo esse colar de
dificuldades inexprimíveis, não se deprimia e muito menos pensara
em tirar a própria vida, como eu. Tinha importantes conflitos, mas,
excetuando os momentos em que se angustiava pelo sentimento de
rejeição, aprendera a viver com alegria, curtia a vida. Vivia melhor
que os discípulos. Nós é que precisávamos comprar seus sonhos, e
ele sabia disso.
Entrar no mundo desse jovem foi uma viagem maravilhosa.
Descobrimos um ser humano fantástico por trás de alguém
socialmente ridicularizado. Após nossa viagem de descobrimento
desse fascinante continente chamado Salomão, o mestre o chamou
para vender sonhos.
Em seguida nos conduziu para um lugar aberto. Não era uma
praça, mas tinha algumas árvores; o ar ali era menos poluído.
Nesse lugar nos falou de outro Salomão, o grande rei de Israel.
Comentou que ele fora um jovem que tivera um excelente início de
vida. Não queria ouro, prata nem poder político; queria o mais
excelente tesouro, a sabedoria. Diariamente bebia e respirava
sabedoria, e seu reino progrediu sobremaneira, tornando-se um
dos primeiros impérios antigos. E a relação com as nações vizinhas
era regada de paz.
Mas o tempo passou, e o poder o embriagou. Ele abandonou
a sabedoria e começou a se envolver em inumeráveis atividades.
Além disso, de tudo o que seus olhos pediam ele se fartava, mas
não se saciava. Por fim, deprimiu-se intensamente e teve a
honestidade de dizer que tudo havia se tornado para ele uma fonte
de tédio. Tudo era vaidade, nada nessa deslumbrante existência o
animava. Após esse relato, o mestre completou seu ensinamento:
— O grande rei teve centenas de mulheres, carros, palácios,
serviçais, exércitos, vestes de ouro, honras e vitórias como
raramente algum outro rei o fez, mas se esqueceu de amar uma
mulher, e de prestar atenção nos pequenos lírios dos campos, que
representam a amizade e tantas outras coisas fundamentais.
Quando ia discorrer sobre a última lição, entrou meu
imprevisível companheiro e mais uma vez fez todo mundo se
esborrachar de rir.
— Chefinho, dá licença? — disse Boquinha de Mel.
— Diga, Bartolomeu — falou ele pacientemente.
— Será que Salomão não se deprimiu porque teve centenas
de sogras?
Rindo da espontaneidade de Bartolomeu, o mestre respondeu
dando-lhe uma fina espetada:
— Não sei, mas sei que há sogras mais amáveis que muitas
mães. — E arrematou com esta lição: — O sucesso é mais difícil de
trabalhar que o fracasso. Como ocorreu com Salomão, o risco do
sucesso é a pessoa se tornar uma máquina de atividades, esquecer
o sabor das diminutas coisas e abandonar aquilo que só os sonhos
podem alcançar. A paisagem de uma fazenda, de um jardim, de
um quadro, pode excitar mais a emoção de observador do que a de
seu proprietário. Deus democratizou o acesso aos melhores
prazeres da existência. Ricos são os que procuram esse tesouro,
miseráveis são os que pensavam possuí-lo.
E colocando as mãos em Salomão, o mais novo discípulo, ele
o exaltou:
— Os grandes seres humanos estão à margem da sociedade.
Aqui está alguém que tem muito pouco, mas tem tudo. Obrigado
por nos vender seus sonhos.

Colocando de pernas para o ar um asilo

No outro dia, o sol despontava no horizonte, incidia sobre
nossa cama improvisada e nos convidava a despertar. Mais uma
jornada, mais um dia excitante, mais descobertas. Como sempre,
Bartolomeu era o último a se levantar. Imagino que, se repousasse
numa cama confortável, vararia o dia dormindo.
Antes de sairmos sem direção na geografia social, o mestre
nos fez um convite incomum, mas que ao longo da caminhada se
tornou parte integrante de nossa história. Convidou-nos para uma
das mais importantes tarefas da psique: não fazer nada, apenas
vivenciar a arte de observar.
Levou-nos para uma avenida movimentada, com árvores
enfileiradas. Lá nos entregou uma folha de papel em branco
amassada, deu-nos uma caneta simples e nos pediu para observar
e anotar todos os sons e imagens do ambiente que nos excitassem.
Não valia anotar nada que fosse construído pelo homem. O som do
trânsito era ensurdecedor, o ar estava poluído, a agitação era
intensa. O que poderia nos excitar a não ser o colorido das lojas, o
estilo dos carros, a anatomia dos viandantes?
E o que tem isso a ver com mudar o pensamento humano? O
que a arte de observar tem a ver com vender sonhos? Para mim,
esse exercício parecia banal, sem apelo intelectual. Não tardou
muito para o mestre nos provocar.
— Quem não desenvolve a arte de observar tem uma
inteligência superficial e uma humanidade rasteira. Pode vir a ser
um depósito de informações, mas nunca construirá grandes idéias.
Lembrei-me de que no dia anterior eu não enxergara o
complexo ser humano que estava por trás dos rituais de Salomão.
Meu senso de observação estava empobrecido. Via o que todo
”normal” acusava. Edson e Dimas também não sabiam o que fazer
com o papel. Bartolomeu cantarolava para conseguir inspiração,
mas nada. Olhava para cima e para os lados, e continuava inerte.
Os minutos se passavam, e não observávamos nada de
interessante. Salomão era a única exceção. Diminuiu sua
ansiedade obsessiva e começou a escrever sem parar. Estava
entusiasmado. Dizia freqüentemente:
— Hum! Hum! Que especial! Fantástico!
Enquanto ele escrevia, eu estava bloqueado, O vendedor de
sonhos me deu um empurrão.
— Só desenvolverão a arte de observar se aprenderem a mais
difícil arte do intelecto humano. — E não deu a resposta.
”Qual?”, pensei eu. Momentos depois, ele comentou:
— A arte de aquietar a mente. Mentes que outrora foram
brilhantes viveram uma vida medíocre porque não aquietaram
seus pensamentos. Grandes escritores, notáveis cientistas,
magníficos artistas plásticos dilaceraram sua inspiração porque
tiveram uma mente agitada. Os pensamentos, as imagens mentais
e as fantasias que podem alçar vôo da criatividade também podem,
quando excessivos, lhe cortar as asas, furtar a intuição e a
engenhosidade.
”Esse é o meu problema”, imaginei. Minha mente era um
trevo de agitação. Pensar, inclusive bobagens, era a minha
especialidade. Sempre fui inimigo do silêncio. Mas sob sua palavra
tentei me silenciar. Não foi fácil, pois era inundado por imagens
que me cruzavam a mente numa velocidade mais rápida do que os
carros transitavam na avenida em que estávamos. A poluição
intelectual era o meu algoz.
Meus amigos também estavam perdidos. Mas, pouco a pouco,
entramos no infinito mundo do silêncio. A partir desse momento,
nossa perceptividade se aguçou. Comecei a distinguir os sons
agudos de um pássaro. Ele repicava uma belíssima melodia com
inacreditável fôlego. Anotei-a. Em seguida, outro pássaro cantou
uma chorosa melodia. Momentos depois, um pombo macho fazia
um ritual de cortejo para uma fêmea.
Observei mais de dez cantos extraordinários de pássaros.
Eles não tinham muitos motivos para se animar nesse frio canteiro
de concreto, mas, diferentemente de mim, festejavam. Observei e
anotei a valentia dos troncos carcomidos das árvores, que, apesar
da impermeabilidade do solo e da escassez hídrica, sobreviviam no
inóspito ambiente, uma valentia que nunca tive. Mais de dez
milhões de pessoas passaram por essas árvores desde que foram
plantadas e talvez no máximo dez as observaram detalhadamente.
Começava a me sentir um privilegiado no deserto social.
Bartolomeu, que não conseguia nem observar um elefante à
sua frente, também começou a ter êxito nessa empreitada.
Contemplou cinco borboletas multicoloridas que dançavam
espontaneamente usando apenas as asas. Anotou que,
diferentemente delas, só bailava bêbado. Edson anotou diversos
tipos de sons produzidos pelos estalidos das folhas ao sabor do
vento. Elas aplaudiam despretensiosamente os caminhantes,
diferentemente dele, que procurava os aplausos. Dimas analisou
insetos que trabalhavam sem parar, preparando-se para o inverno,
coisa que ele nunca fizera. Ele furtava e, como todo ladrão, era um
péssimo administrador; acreditava que a vida era uma eterna
primavera.
Após esse exercício prazeroso, dissemos uma das nossas
frases favoritas: ”Eu adoro essa vida!” Nunca fazer tão pouco fez
tanta diferença! Não imaginava que a natureza estivesse presente
de maneira marcante no centro da cidade. Como pode um
especialista em sociedade nunca ter feito esse exercício? Pela
primeira vez, amei o silêncio, e na atmosfera do silêncio descobri
que não tive infância.
Não me lembro de experiências agradáveis quando criança.
Talvez tenha sido um homem rígido porque não me relaxava
quando menino. Talvez tenha tido idéias de perseguição, achando
que os outros queriam me tesourar por trás, porque não conheci a
ingenuidade quando criança. Talvez fosse um adulto depressivo
crônico e mal-humorado porque não vivi _ com alegria meus
primeiros anos de vida. As perdas me tornaram adulto muito cedo,
um jovem que pensava muito, mas sentia pouco.
Enquanto eu recordava a minha infância, o mestre parecia
me perscrutar. Puxando o fôlego com vigor, comentou sobre o
assassinato da infância na atualidade, uma das coisas que mais o
perturbavam:
— Internet, jogos de videogame, computadores, são úteis,
mas têm destruído algo inviolável: a infância. Onde está o prazer
do silêncio? Onde está a arte da observação? Onde está a
inocência? Angustia-me que o sistema esteja gerando crianças
insatisfeitas e ansiosas. Fortes candidatas a serem pacientes
psiquiátricas e não seres humanos felizes e livres.
De repente, teve uma reação que eu nunca havia
presenciado. Vários pais passaram por nós levando os filhos, entre
sete e nove anos, para as compras. Eles estavam muitíssimo bemtrajados,
no rigor da moda, todas as peças combinando. Tinham
celular na mão. Mas revelavam evidente insatisfação. Alguns
começavam a impor o que queriam consumir. Para não se
perturbarem com seus gritos e atritos, os pais cediam.
O vendedor de sonhos reagiu. Perdendo a paciência,
parecendo fora de si, enfrentou esses pais.
— O que vocês estão fazendo com seus filhos? Levem-nos
para os bosques! Tirem seus sapatos, deixem-nos andar descalços
na terra! Levem-nos para subir nas árvores, estimulem-nos a
inventar suas brincadeiras. A espécie humana se fechou numa
redoma artificial de egoísmo e consumismo. Deixem-na envolver-se
com outras espécies, com outros comportamentos. — E
parafraseou uma frase de Jesus Cristo: — Não só de shoppings
viverão as crianças, mas de todas as aventuras da infância.
Fiquei impressionado com sua ousadia diante de estranhos.
Alguns pais ficaram pensativos. Outros reagiram mal. Um disse:
— Não é esse o louco dos jornais?
Outro, que era intelectual e provavelmente do time da
soberba, como eu, foi mais contundente:
— Eu sou professor doutor em psicologia. Não admito essa
invasão de privacidade. Dos meus filhos cuido eu. — E observando
nossa aparência, disse para seus amigos: — É um bando de
ignorantes.
Boquinha de Mel ouviu a ofensa e não conteve sua síndrome
compulsiva de falar. Referendou o mestre, dessa vez com
propriedade:
— My friend, não sou doutor de merda nenhuma. — E
olhando para as crianças lhes disse: — Desculpe pela merda,
meninos. — Em seguida, dirigindo-se aos pais, completou sua
idéia com exageros: — Deixem seus filhos se lambuzarem com a
natureza. Assim, nenhum deles terá chance de ser um maluco, um
bêbado e um sem-vergonha como eu. — E caindo em si, fez um
gesto e pediu paciência: — Mas estou melhorando, chefinho.
Em seguida, voltou-se novamente para as crianças e tentou
fazer uma brincadeira:
— Quem quer voar como uma borboleta levante as mãos.
Três crianças levantaram as mãos, duas ficaram indiferentes e três
se esconderam atrás de seus pais e responderam:
— Tenho medo de borboletas.
Os pais sentiram-se ofendidos com a petulância dos intrusos.
Chamaram os seguranças que estavam na porta de entrada da
grande loja de departamentos do Grupo Megasoft, na qual estavam
prestes a entrar. Estes não tardaram a nos expulsar de lá.
— Saiam daqui, seus malandros.
Mas, antes de sair, o mestre voltou-se para os pais que o
contestavam e comentou:
— Peço desculpas pelos meus gestos, e espero que um dia,
diante de seus filhos, não precisem pedir desculpas pelos seus.
As idéias que o mestre semeou não foram estéreis na mente
de todos os pais. Alguns, mesmo enraivecidos, começaram a
perceber que precisavam fazer uma cirurgia na relação com seus
filhos. Davam a melhor educação para eles dentro do sistema
vigente, eles se tornavam especialistas em consumir produtos e
operar computadores, mas eram cronicamente insatisfeitos, não
sabiam observar, intuir, induzir. Perceberam que a natureza não
era importante para a sobrevivência física da espécie humana, mas
para a sobrevivência emocional dela. Os estímulos da natureza
tinham uma pedagogia insubstituível, superior a todas as teorias
educacionais, para expandir os horizontes da psique. Começaram
a freqüentar bosques, zoológicos, jardins botânicos.
Fiquei emocionado ao ver o cuidado do mestre e de
Bartolomeu com as crianças. Nunca me preocupei muito com elas.
Estava ocupado demais em criticar o sistema de classes sociais em
sala de aula. Não entendia que o verdadeiro material da educação
era o aluno e não as informações que eu transmitia. Preocupavame
que fizessem silêncio e prestassem atenção nas aulas, mas não
me preocupava, em primeiro lugar, se estava formando seres
humanos.
Na tarde desse dia, passamos por um bairro residencial.
Deparamo-nos com uma grande e tétrica construção. A grama do
jardim era mal aparada. As árvores enormes faziam um
sombreamento exagerado, impedindo que as plantas rasteiras
florissem. O velho prédio em arcos, embora belo, tinha uma
pintura desbotada. As janelas eram de madeira mal conservada e
pintada de verde-musgo. As paredes brancas estavam imundas e
descolando a massa corrida. Era um asilo, mas, definitivamente,
esse asilo não era um lugar agradável onde viver os últimos anos
de vida.
Muitos idosos iam para esse lugar não porque suas famílias
os tivessem abandonado, mas porque simplesmente não tinham
parentes próximos. A maioria das famílias tinha apenas um filho
ou no máximo dois. Quando um filho único falecia ou morava em
cidade distinta, ou não tinha condições físicas ou financeiras de
ajudar os pais idosos, eles eram impelidos para essas instituições
para receberem cuidados mínimos de medicina, enfermagem e
higiene. Fugiam das tramas asfixiantes da solidão. Essas
instituições proliferavam nas sociedades atuais.
O mestre, ao olhar o asilo, disse-nos:
— Eis um bom ambiente para os sonhos. Vão até lá e alegrem
os que lá habitam.
Em nosso ”santo” preconceito, pensamos: ”Sonhos? Num
asilo? Essas pessoas estão apáticas, deprimidas! O que mais pode
animá-las?”. Estávamos no mundo das crianças, e agora
entrávamos no mundo dos idosos. Mundos tão distantes, mas tão
iguais! O problema é que o mestre retirou a sua retaguarda.
Aguardávamos pelo menos suas orientações, mas elas não vieram.
Quis dizer ”se vierem”. Disse que iria dar uma volta, mas, antes
que saísse, Dimas, gaguejando e piscando os olhos, expressou o
seguinte:
— Alegrar... os vê... velhinhos? Como, mestre? Essa tu...
turma está com um pé na cova. — Sabia bater carteira de idosos,
deixá-los sob ataque de nervos, mas nunca conversara
profundamente ou animara um deles.
— Dimas, o preconceito envelhece mais que os anos. Você
está mais idoso que muitos deles — comentou o vendedor de
sonhos. Em seguida ouviu uma bobagem de Bartolomeu:
— Se for do meu jeito, resolvo o problema em dois minutos —
disse ele, insinuando uma solução mágica. — Cachaça neles, e o
circo pega fogo.
Depois que falou impulsivamente, pediu desculpas pela
recaída. Edson não sabia realizar o milagre da alegria. Salomão
não tinha também esse expediente. Estávamos perdidos.
Quando nos demos conta, o mestre já tinha partido, estava a
dez metros do grupo. Ia para algum lugar que desconhecíamos. O
grupo se reuniu, cada um expôs suas idéias, traçamos uma
estratégia, fomos em busca de materiais e, depois de duas horas,
voltamos.
Boquinha estava com uma longa peruca, mascava chiclete e
usava óculos escuros. Animado, nos disse:
— Gente! Vamos fingir que somos normais. — Caímos na
risada.
Procuramos a direção do asilo. Antes que eu falasse qualquer
coisa, mais uma vez Bartolomeu tomou a frente. Contou uma
mentira que aprovamos.
— O seguinte, meu. Somos uma banda profissional de
músicos e estamos querendo fazer show para a galera do pedaço. É
de graça. Não precisamos de dinheiro, mas servem uns donativos.
Quando falou em donativos, eu o cutuquei. Isso não estava
no script. Dimas usava um chapéu vermelho e óculos escuros tipo
rayban. Eu coloquei uma peruca de cabelos longos e trancas.
Salomão colocou pestanas gigantes, imitando Elvis Presley. Edson
usava uma fita vermelha na cabeça e uma camiseta longa sem
gola. Foi uma batalha, mas conseguimos esses materiais dizendo
que iríamos fazer um espetáculo beneficente, com o compromisso
de devolvê-los posteriormente.
O pessoal da direção ficou alarmado com o nosso figurino,
mas como raramente os jovens se importavam com a existência
dos idosos, eles queriam ver o que iríamos aprontar. Perguntava-
”O que estou fazendo aqui? Isso não vai dar certo”. Foi
montada uma platéia improvisada. Mais de cem velhinhos e
velhinhas sentaram-se comportadamente em frente da ”banda” dos
terrores.
Levamos duas guitarras surradas. Uma estava com o
Milagreiro, que dizia que aprendera a tocar na banda da sua igreja.
Mas era desafinado. Salomão estava com a outra, mas tocava
muito mal também. Eu estava com o saxofone, tentando me
lembrar de algumas notas que aprendera nas poucas aulas que
tive com meu avô materno. Dimas estava com um contrabaixo e
não sabia o que fazer com ele. Boquinha de Mel era o vocalista. Só
podia ser, mas garantiu-nos que era afinado e que cantava em
boates no tempo em que era mais ou menos sóbrio.
Tocamos a primeira música, um roque romântico. Estávamos
inibidos, contraídos. A voz de Boquinha de Mel era um desastre,
ele devia ficar de boca fechada, pois não conseguia acompanhar os
instrumentos, embora pensasse que estivesse abafando. Os
velhinhos não reagiam. Pensamos que deveria haver mais
animação. Interrompemos a primeira música e introduzimos um
roque agitado. Fizemos aquele som! Estávamos entusiasmados,
balançávamos o quadril, pulávamos, mas os idosos nada.
Boquinha de Mel fazia ginástica com sua voz desafinada, mas os
velhinhos não se alegravam.
Pensei: ”Estamos fritos. Em vez de servirmos como
antidepressivo, pioramos a depressão desses idosos”. Bartolomeu
apelou, cantou seu hino nacional, um samba. Nós tentamos
acompanhá-lo:
— Eu bebo, sim, estou vivendo, tem gente que não bebe e
está morrendo; eu bebo, sim... — e repetia o refrão olhando para
os velhinhos, achando que só com álcool na cabeça se animariam.
Mas ninguém sorria. Ninguém mexia o corpo. Ninguém batia
palmas. Ninguém cantava. No primeiro dia em que tentamos
vender sonhos, na verdade vendemos vexame. Olhamos para o
corpo de enfermagem e assistentes do asilo e vimos que eles não se
abalaram. Como nós, também pensavam que os velhinhos estavam
com o pé na cova, esperando a morte chegar. Quando a tarde
parecia uma das piores que já havíamos tido desde que
passáramos a seguir o mestre, ele apareceu. Ao vê-lo, várias
velhinhas e velhinhos vieram ao seu encontro e o abraçaram com
entusiasmo. Então descobrimos que ele freqüentava esse lugar.
De repente, ele pegou nossos instrumentos e os distribuiu
entre os idosos. Eles mal conseguiam segurá-los. Pensávamos que
nem sabiam o que era guitarra, contrabaixo ou saxofone. Para a
nossa surpresa, os velhinhos sr. Lauro, sr. Michel e sr. Lúcio, que
pegaram as guitarras e o contrabaixo, as posicionaram
corretamente e começaram a afinar as cordas. Em seguida, tiraram
um som de arrepiar. Não acreditávamos no que ouvíamos.
Do mesmo modo, uma senhora pegou o saxofone e deu um
show. Fiquei pasmo. Mas esse asilo não parecia um depósito de
idosos?, indaguei. Na realidade descobri, envergonhado, junto com
meus amigos e as pessoas que assistiam, que não. O asilo era um
celeiro de seres humanos experientes, com potenciais represados.
O mestre se deliciava em ouvi-los. Em seguida, pegou o
microfone de Bartolomeu, foi até um senhor bem avançado em
idade, que quase não conseguia andar, e o entregou. Babamos com
sua voz inigualável. Ela era vibrante como a de Frank Sinatra.
Momentos depois, o mestre chamou os idosos e idosas que
conseguiam se locomover para a pista e começou a dançar com
eles. Entrei mais uma vez na dança. Foi uma algazarra. Os
próprios velhinhos colocaram o asilo de pernas pró ar. O sorriso
jorrou ao se sentirem gente. Não se alegraram de início porque os
desrespeitamos, lhes demos o pior, achávamos que, por terem
avançada idade, uma memória comprometida e uma musculatura
flácida, seus ouvidos e suas emoções poderiam engolir qualquer
coisa.
Muitos deles haviam tido uma infância maravilhosa, muito
melhor que a minha. A criança que estava dentro deles despertou
do sono. Mais tarde, o mestre disse que nos enviara aos idosos não
com a intenção de que lhes vendêssemos sonhos, mas que
comprássemos deles. Mostrou-nos que não há pessoas
imprestáveis, mas pessoas mal valorizadas, mal utilizadas, mal
exploradas.
Ao ouvir essas palavras, percebi mais um erro que cometera.
Meu avô materno, Paulo, era extrovertido e sociável. Morreu quinze
anos depois de minha mãe. Mas nunca entrei em seu mundo.
Sentia-me rejeitado pelos meus tios e primos, e acabei por rejeitar
meu avô. Por trás de inocentes vítimas, existem cicatrizes de um
réu. Eu admirava sua habilidade em tocar instrumentos, mas
nunca indaguei sobre suas lágrimas e seus medos. Nunca valorizei
seu bom humor e suas experiências. Perdi muito por deixar de
explorar um ser humano surpreendente.
Para finalizar o dia, o mestre teceu alguns pensamentos que
ecoaram na minha mente e se tornaram inesquecíveis:
— O intervalo de tempo entre a juventude e a velhice é mais
breve do que se imagina. Quem não tem prazer de penetrar no
mundo dos idosos não é digno da sua juventude. Não se enganem,
o ser humano morre não quando seu coração deixa de pulsar, mas
quando de alguma forma deixa de se sentir importante.
Achamos muitos ”mortos” que estavam vivos pelo caminho.
Praticamos uma eutanásia psicológica. Sepultamos admiráveis
seres humanos até quando damos suportes para que eles
sobrevivam.

O templo da informática

O acontecimento ocorrido no asilo ganhou destaque não
porque estivesse presente algum jornalista, mas porque um
enfermeiro fotografou o evento e passou as informações para um
jornal. Muitos outros ”tumultos” e shows ocorreram depois que
estivemos no asilo, dos quais destacarei apenas alguns. À medida
que os dias passavam, o grupo se fortalecia cada vez mais.
Construíamos laços fraternos, apesar das intrigas. Fazíamos
agradáveis mesas-redondas ao ar livre para discutir nossa história
e a história social.
Pelo menos uma vez por semana o mestre convidava alguns
anônimos, como pedreiros, pintores, escultores, frentistas de
postos de gasolina, mecânicos, lixeiros, para irem à nossa ampla
casa, sentar-se em caixotes de frutas e descortinar alguns
capítulos da vida deles. Eles se sentiam maravilhados pelo convite.
Nunca tivemos tanto prazer em ouvir as reais dificuldades,
expectativas, sonhos, pesadelos, paixões, desilusões de seres
humanos tão distantes e tão próximos. Era uma experiência
sociológica única, um aprendizado mágico.
A fama do mestre aumentava. Pouco a pouco se tornara uma
figura folclórica da cidade. Algumas pessoas de carro apontavam o
dedo para o mestre e falavam umas para as outras: ”Não é o
sujeito que parou o trânsito próximo ao Edifício San Pablo?”; ”Não
é o mesmo que fez tremer um asilo e agitou um velório?”. Do jeito
que os normais gostam de espetáculos, daqui a pouco dirão que ele
ressuscitou o morto.
Um senhor de sessenta anos de idade, de face angustiada e
compenetrada, o reconheceu. Apressou os passos, nos alcançou e
interrompeu nossa caminhada. Chamou-o também de mestre e
disse-lhe:
— Mestre, durante trinta anos trabalhei na mesma empresa,
e nos últimos anos me tornei um gerente criativo. Quando comecei
a me destacar entre meus pares, o diretor-presidente iniciou uma
perseguição injusta e implacável. Foram longos anos de
humilhação. Até que, por fim, me despediu. Dei o sangue para a
empresa, mas fui descartado como copo plástico que se usa e
depois se atira no lixo. Fiquei deprimido, me senti traído e sem
coragem para começar tudo de novo numa nova empresa, até
porque elas preferem jovens que se sujeitam a menores salários.
Odeio dia e noite meu ex-diretor. O que faço?
Os lábios do ex-gerente tremiam. Ele parecia procurar no
ápice da agonia um pouco de alívio. O mestre olhou para nós e
depois para ele e comentou:
— A inveja e a vingança são fenômenos exclusivos da espécie
humana. Nenhuma outra espécie os tem. Ele teve inveja de você
porque você tinha o que ele não possuía. Vingue-se dele.
Fiquei confuso com suas palavras. ”Que homem é esse que
sigo?”, pensei. ”Não é ele o mestre da reconciliação?” Bartolomeu
gostou da atitude do mestre. Fazendo eco às suas palavras,
comentou impetuosamente:
— É isso aí. Olho por olho, pancada por pancada. Dê uma
boa bolacha no sujeito.
Sob a palavra do mestre, estufou o peito e reforçou a atitude
de Bartolomeu:
— Se quiser um companheiro para resolver a parada, achou.
E começou a fazer gestos de que era um ninja.
Boquinha inspirou-se. Começou a soltar gritos e fazer gestos
desengonçados, querendo mostrar era um perito em artes
marciais. Os dois, por incrível que pareça, esqueceram o ambiente
e começaram a brincar como se estivessem lutando. Dimas sem
querer deu-lhe um golpe na cabeça. Boquinha caiu duro como
uma abóbora. Ficou atordoado. Socorremo-lo. Recuperando a
consciência, ele falou para Dimas:
— Tá com raiva de mim.
Bartolomeu começou a entender que pancada por pancada
era um negócio perigoso. O sujeito, ao ver a estirpe, não sabia se
chorava ou se sorria. De qualquer forma, cresceu diante das
palavras do vendedor de sonhos.
— Como, vingar-me, mestre?
— Matando-o — respondeu sem titubear.
Minhas pernas bambearam. Jamais pensei que ele dissesse
isso. Ameacei cair fora, meu coração começou a palpitar.
Destilando ódio, o homem desnudou a sua real intenção.
— É isso que estou indo fazer. Esse miserável não merece
viver. — Mas, antes que saísse de cena, o mestre tocou nos
fundamentos do seu ódio:
— A maior vingança contra um inimigo é perdoá-lo. Mate-o
dentro de si.
— Como assim? — indagou surpreso o homem.
— Os fracos matam o corpo dos seus inimigos, os fortes
matam o significado deles dentro de si. Os que matam o corpo são
assassinos, os que matam o que eles representam são sábios.
O homem desfaleceu, começou a ter vertigem. Tivemos que
segurá-lo e recostá-lo na parede mais próxima. O mestre se
aproximou dele novamente, olhou bem nos seus olhos e
completou:
— Vingue-se dele resgatando sua tranqüilidade e brilhando
ainda mais no próximo emprego. Caso contrário, ele o assombrará
pelo resto de sua vida.
O homem ficou paralisado por alguns segundos. Depois se
recompôs e percebeu que não poderia se comportar como vítima,
como coitado que infla sua ira. Deveria reagir, só que de outro
modo. Abraçou o mestre longamente, como um filho abraça o pai,
embora fosse bem mais velho. E partiu por um caminho diferente
daquele que traçara.
De repente, vi um volume debaixo da sua camisa; era um
revólver. Fiquei embasbacado. O sujeito realmente estava prestes a
cometer um assassinato. Somente então entendi a atitude
chocante do mestre. Nenhum conselho vazio dissuadiria aquele
homem, como nada me faria desistir de desistir da vida. O mestre
não anulara seu desejo de vingança, apenas o redirecionara. Que
técnica terapêutica é essa?, indaguei.
Dias depois, estava ocorrendo a CSM (Consumer Electronic
Show), a maior feira de eletrônica de consumo do mundo, na parte
mais rica da grande megalópole, na Avenida 12 de Julho. Havia
mais de 2.500 empresas participantes, e esperava-se receber 140
mil visitantes de mais de 130 países. Sob um estado de euforia, os
visitantes, tanto consumidores finais como donos de distribuidoras
e de lojas de informática, atestavam a robustez de uma indústria
que mesmo em tempo de crise econômica tinha um crescimento
ininterrupto.
O mestre direcionou a face para o megaevento; queria estar
presente no templo da informática. Não entendíamos seu desejo
ais máquinas, pois nos parecia que nunca operara computador.
Sem dar nenhuma explicação, disse apenas:
— Vamos até a feira.
Nós o seguíamos, ressabiados. O evento era muito requintado
para gente da nossa laia. Afinal de contas, éramos um bando de
descabelados, usando camisas rotas e jeans esgarçados, com
alguns remendos. Não participávamos de nenhuma empresa e nem
muito menos tínhamos convites. Parecíamos teletransportados da
zona rural do início do século XX para o apogeu de nosso século
XXI. Não dava nem para fingir que fôssemos da equipe da limpeza
ou dos carregadores braçais.
Bartolomeu, tentando descontrair-nos, disse mais uma vez
sua famosa frase:
— Gente! Vamos fingir que somos normais. — Imediatamente
melhoramos a postura, tentamos arrumar os cabelos e firmar
nosso andar desleixado.
Ao se aproximar do local, Dimas colocou a mão direita sobre
o ombro esquerdo de Salomão e começou a andar abraçado com
ele. Em seguida, começou a apoiar seu pescoço, para que se
movimentasse menos. Escapando-se dele, Salomão brincou,
dizendo:
— Sai para lá, mãozinha leve. Aqui tem macho! — Já estava
enturmado.
— Mãozinha leve, não! Mão de Anjo ou Mão Santa — afirmou
Dimas.
Bartolomeu emendou:
— Mão do demo.
Dimas não gostou da brincadeira. Bartolomeu olhou para o
céu e, para acalmá-lo, acrescentou:
— Antigamente, Dimas. Há muitas horas atrás. — E saiu
apressado, com receio de receber um safanão.
A turma era impossível. Mas nosso bom humor começou a
esfriar logo que colocamos os pés no espaço da feira. Percebendo
que estávamos apreensivos diante de tanta pompa, o mestre falounos:
— A rejeição ainda os amedronta? Os ambientes tensos ainda
os ameaçam? Não aprenderam que uma pessoa pode ferir seu
corpo, mas jamais poderá ferir sua emoção, a não ser que você
permita?
Suas palavras colocaram mais combustível em nossa
ansiedade. Sentimos que o ambiente poderia ser instável, sujeito a
chuvas e trovoadas. Ficamos intimidados com o hall de entrada.
Um belíssimo pátio, com uma fonte multicolorida de água.
Dezenas de vasos com rosas, hibiscos, margaridas, tulipas
enfeitavam o ambiente.
Painéis e mais painéis luminosos de propagandas dos
principais participantes da feira reluziam na entrada. Um tapete
vermelho introduzia os visitantes até a grande feira. Para entrar no
evento, além de apresentar convite e identificação, os participantes
deveriam ser escaneados por um raio X, e seus pertences também
deveriam passar por outra sofisticada máquina detectora de
metais. Era um mundo inseguro. A palavra valia muito pouco no
hospício global.
De repente percebi que eu, o intelectual da turma, era o mais
inseguro. Fiquei atrás de todos. O mestre na realidade não queria
entrar dentro da feira, queria ficar no hall de entrada observando
as pessoas. Mas Bartolomeu, mostrando uma força incomum,
tentou entrar e foi barrado. Logo vieram dois seguranças ao seu
encontro. Um deles pediu-lhe para abrir os braços e com um
aparelho começou a tocá-lo em todas as partes do corpo. Quando
começou a tocar suas partes íntimas, ele reagiu:
— Calma, meu irmão! Aí não!
Fomos ao seu encontro. O mestre tentou acalmá-lo e pediu
que ficássemos do lado de fora. Outros seguranças se
aproximaram. Deram uma longa olhada na paisagem do grupo e
começaram a pedir convites. Como não tínhamos, começaram a
nos escanear com seus aparelhos e a nos revistar, como fizeram
com Bartolomeu. Salomão tinha cócegas, não se permitia ser
vistoriado. Os seguranças ficaram irritados. Começamos a ser
expulsos do lugar que sabidamente era público.
Um deles reconheceu o Mão de Anjo de outros ares.
Subitamente o empurrou e disse:
— Caia fora, malandro.
Num momento de recaída, ele furtou a carteira do segurança
que lhe dera um safanão. Mas ao ir ao chão caiu em si. Levantouse
e devolveu a carteira dele. O mestre gostou. Mas os seguranças
ficaram mais desconfiados ainda.
Edson ficou irado. Percebi que, se tivesse poder sobrenatural,
teria feito uma oração para fazer descer fogo do céu e consumir os
que nos maltratavam. O mestre revelava uma calma inquietante,
parecia que tinha preparado toda essa situação. Além de nos
enxotar, os seguranças começaram a zombar de nós. Um deles
disse:
— Será que não é o grupo de palhaços contratado para
animar a feira? — E davam risadas. De fato, parecíamos sair de
um filme de humor ou de terror. Outro segurança deu um
empurrão no mestre, que quase caiu. Ele se recompôs e disse:
— Por que me agride se não o agredi? O que fiz para
alimentar sua violência?
Um deles confirmou o que os seguranças pensavam:
— Caiam fora, seu bando de golpistas.
Subitamente, soltei algo que nunca imaginaria falar: — Como
eu gostaria de ser milionário para enfiar o pé na bunda desses
miseráveis.
Quando percebi, já tinha falado. Pela primeira vez, eu, um
socialista convicto, expressei que amava o dinheiro. O poder do
dinheiro me seduzia sutilmente, mas nunca o confessei, nem para
mim mesmo. Amava carros de luxo, cruzeiros e casas de veraneio.
Era um amor secreto. Criticava os burguesinhos que iam de
primeira classe nos aviões, mas no fundo tinha inveja deles.
Detestava a classe econômica, que nos apertava como sardinhas.
Como não podíamos entrar, ficamos do lado de fora do hall de
recepção. Sem perder o ânimo, o mestre disse-nos:
— Vamos abordar as pessoas que entram e saem do evento.
Afinal de contas, nosso palco é o mundo.
”Abordar as pessoas? Mas pensei que tivéssemos vindo ao
evento para ver computadores!”, pensei comigo. Mão de Anjo, que
gostava de fazer suas malandragens discretas, verbalizou baixinho
para o grupo:
— Hum! Acho que estamos fritos. — Sentiu que o ambiente
era impróprio para vender sonhos.
Logo após a assertiva do Mão de Anjo, vi algo estranho.
Passou por nós um homem muito bem-vestido, parecendo um
importante líder empresarial. Olhou-nos de cima a baixo e entrou
no evento. Possuía um crachá do Grupo Megasoft, uma das
maiores empresas de computadores da atualidade. Olhei de
relance e vi lá na frente esse líder parar e começar a conversar com
outras pessoas, que mais tarde ficamos sabendo serem agentes
disfarçados de um grupo antiterrorista. Enquanto conversava,
apontava a mão direita em nossa direção.
Os agentes rapidamente se aproximaram, e um deles pediu
novamente que o mestre se identificasse. Não pediu nada para nós.
Como ele não tinha documentos, os agentes agiram rápido. Um
deles deu-lhe uma bofetada inesperada que produziu um grande
estalido e o atirou no chão. Gritando ”terrorista!”, eles o
contiveram. Foi tudo tão rápido que ficamos por alguns segundos
sem ação. Tentamos proteger o mestre e fomos agredidos também.
Boquinha de Mel mais uma vez fez uma pose de lutador de
artes marciais e levou um murro que o fez desmaiar. Nunca vi
tanta violência. Sociologicamente falando, em terra de cegos quem
tem um olho não é rei, é alvo de espancamento. Mal meus olhos
começavam a ser abertos por um estranho, eu percebia que em
alguns momentos era mais seguro ser cego.
No tumulto, um dos agentes sacou a arma, disposto a atirar
no mestre. Se não fosse por três policiais que passavam de carro e
pararam para verificar o porquê da aglomeração, talvez ele tivesse
sido morto. Observando fixamente o suposto terrorista, um dos
policiais, também de arma em punho, gritou para os agentes:
— Parem! Eu sou chefe da polícia deste distrito. — Os
agentes se arrefeceram. Em seguida ele afirmou: — Conheço esse
homem. Ele não é um terrorista.
O líder dos agentes, esbravejando, disse:
— Esse homem não porta documentos. Quem ele é?
E titubeando, sem conseguir dar resposta plausível,
comentou:
— Bom, ele é... Ele é um vendedor. Um vendedor
ambulante...
Para desbaratar os agentes, o chefe da polícia os ameaçou:
— Se não o deixar em paz, vou abrir um inquérito pela
violência de vocês.
O policial que protegera o mestre era o mesmo que estava
presente no topo do Edifício San Pablo. O vendedor de sonhos
tornara-se inesquecível para ele, tinha lhe tirado o sono por
algumas noites ao comentar a relação dele com o filho. O policial
acompanhava seus passos pelos jornais.
Fiquei feliz da vida. Comecei a dar crédito à polícia. Apesar de
estar sangrando, o mestre colocou um pano quente na situação.
— São bons homens, houve um engano. Nisso Bartolomeu
acordou e perguntou:
— Onde estou?
Recordando que fora nocauteado e percebendo que a situação
já estava controlada, resolveu mais uma vez mostrar sua coragem:
— To ficando nervoso. Sou faixa-preta de judô, caratê,
capoeira e outros bichos mais. Me segurem que a coisa vai ficar
feia.
Em vez de segurá-lo, nós o soltamos. Boquinha de Mel se
levantou num salto e, vendo que os agentes o encaravam
novamente, lhes disse:
— Agora já estou calmo.
Os agentes se foram. Segundos depois, o chefe da polícia
também se foi. Mas antes de partir agradeceu ao mestre pelas
poucas frases que dirigira a ele quando o conhecera:
— Meu filho gostaria de conhecê-lo.
— Um dia. Diga a ele para ter muitos sonhos e lutar por eles.
Meus colegas mexeram os ombros, tentando perguntar a mim o
que significava aquilo. Mais tarde tentei lhes explicar o
incompreensível.
O olho direito do mestre estava edemaciado, e do canto
esquerdo dos lábios escorria sangue, mas ele não reclamava.
Sabíamos que segui-lo significava sofrer risco de zombarias e
escárnios, mas foi a primeira vez que tivemos ciência de que
também havia risco de vida.
Fiquei alarmado em perceber que as pessoas poderiam sair
com facilidade de um estado de tranqüilidade para o da
brutalidade. O que mais me abalava é que o fantasma da
agressividade também estava em mim. Conhecia minha soberba,
mas não o potencial de violência latente.
Estava sendo contaminado com o vírus da solidariedade, mas
tive vontade de agredir violentamente quem ferira o mestre. Nunca
imaginei que o amor ao próximo e a agressividade morassem na
mesma casa. Nunca pensei que a paz e a guerra habitavam no
mesmo ser humano. Pessoas brandas também alojam monstros
nos recônditos de sua psique.

Descortinando a fábrica de estresse

Os acontecimentos no templo da informática foram intensos.
Sentíamos que o mestre precisava tratar suas feridas em algum
ambulatório médico e depois descansar em algum viaduto ou
praça. Nós o pegamos pelos braços e o estávamos levando para
fora. Todavia, em vez de se calar, ele subiu na mureta da fonte
multicolorida de água e, com uma coragem incomum, começou a
convidar as pessoas para ouvir as últimas novidades da grande
feira.
Não acreditávamos no que estávamos ouvindo. Algumas
começaram a se aproximar de nós. Já reconheciam o amotinador
descrito nos jornais. Polêmico, continuou a provocar os
participantes e expositores da CSM.
— A mais abandonada das crianças tem um psiquismo mais
complexo do que todos os computadores interligados em conjunto.
Mas onde se investem mais pesquisas e mais dinheiro, nas
crianças ou nas máquinas?
Prestando atenção apenas na primeira parte da pergunta, um
cientista interpelou o mestre:
— Você é um leigo em inteligência artificial. Em poucos anos
teremos máquinas que superarão o cérebro humano. Elas terão a
programação da mente humana, com a vantagem de possuírem
uma memória superior. Será a mais fantástica construção. Espere
e verá!
O mestre aceitou o debate:
— Discordo! Os computadores estarão eternamente
condenados ao sono da inconsciência. Nunca terão conflitos.
Jamais se inquietarão com a procura de suas origens e de seu fim.
Não produzirão filosofia nem religião. Serão sempre escravos de
programas.
Fiquei pensando: ”Onde o mestre aprendeu essas
informações? Como consegue discutir com segurança assuntos
polêmicos?”. De outro lado, os engenheiros de computação e
programadores que o ouviram ficaram embaraçados.
— Será que o sono da inconsciência jamais será despertado
pela inteligência artificial? Será que os computadores jamais
saberão que existem?
— Nossos conflitos denunciam nossa complexidade. Se não
conseguimos ficar felizes por tê-los, pelo menos deveríamos
admirá-los como frutos de nossa grandeza psíquica.
Olhei para alguns membros da família e percebi que não
estavam entendendo nada. Bartolomeu, em especial, estava
perdido. Mas engoli minha silenciosa língua; ele, pois, me
surpreendeu dizendo-me baixinho.
— Superego, eu sempre fui uma pessoa maravilhosamente
complexa, mas você é insuportavelmente certinho e chato.
Bartolomeu sempre me socava o fígado em situações nas
quais sabia muito bem que eu não podia lhe dar resposta. Queria
golpeá-lo com minha cultura, mas tinha que cultivar o que nunca
tive: paciência. Eu, que nunca fui religioso, pedi: ”Dai-me
paciência para não perder as estribeiras com esse complicado
personagem”.
Enquanto isso, o mestre, depois de criticar o ufanismo diante
das máquinas, virou sua artilharia contra a internet.
— O sistema produziu a internet e os celulares, gerando uma
revolução na comunicação e no acesso às informações jamais vista
na história. As pessoas tornaram-se desinibidas diante de
aparelhos, mas não perante faces concretas. Não dialogar com os
outros é um ato tolerável, mas não dialogar consigo mesmo é um
ato insuportável.
Agora eu entendia por que o mestre se isolava. Quando eu o
via falando sozinho, achava estranhíssimo. Para mim, esse gesto
sempre foi um sintoma de loucura, mas ele invertera o conceito,
julgava-o um sintoma de sanidade. Nunca falei comigo mesmo, a
não ser coisas prosaicas. Estava mais doente que alguns
psicóticos; não foi à toa que cheguei ao ponto de me abandonar
por completo.
As pessoas se ajuntavam cada vez mais, obrigando-o a elevar
o tom de voz. Elas tinham vindo para a magnífica feira para ver as
últimas novidades da informática e descobriram uma das últimas
novidades do seu ”computador” cerebral. Bombeando mais lucidez
para a mente da platéia, o mestre fez uma afirmação apoiada em
números que eu desconhecia:
— Mais de quatro bilhões de asiáticos, europeus e
americanos jamais tiveram um encontro com seu próprio ser.
Silenciarão sua voz num pequeno espaço de um túmulo como
estrangeiros que nunca encontraram sua verdadeira casa.
As pessoas meditaram sobre essas palavras como se fossem
uma oração. Nesse momento, nosso amigo Boquinha de Mel
levantou as mãos. O clima filosófico exigia que ele continuasse com
a boca fechada para não estragá-lo. Mas era mais dependente da
sua língua do que do álcool. Perguntou:
— Chefinho, acho que estamos mais enrolados que esses
caras.
— Por que, Bartolomeu? — perguntou pacientemente ao
aluno especialista em interromper a aula no seu ápice.
— Porque nem endereço de casa temos. Moramos debaixo da
ponte.
Muitos deram risadas. Logo ele percebeu o fora que dera. O
mestre não o repreendeu, também sorriu e admirou sua
espontaneidade. Boquinha era uma criança hiperativa e peralta.
Para o mestre, a liberdade cresce no terreno da espontaneidade.
Muitos mataram sua espontaneidade nas escolas, igrejas,
empresas, inclusive as pessoas da grande feira; são robôs
admirando máquinas. Não falam o que pensam. Nesse instante,
me interiorizei e percebi que não ficara para trás. Em nome da
discrição, era formal, ponderado, recatado. Não me conhecia nem
deixava os outros me conhecerem. Era um intelectual perito em
dissimular que estava tudo bem. Era difícil admitir que o Boquinha
tinha vantagens sobre mim.
Calmo, o mestre lhe disse:
— Sim, Bartolomeu. Não temos casa, mas procuramos a
melhor delas. Lembre-se de nossa canção.
E mais uma vez assombrou seus ouvintes com sua
excentricidade. Interrompeu o discurso e cantou sua canção, e
ainda fez os gestos de um maestro. Nós o acompanhamos. Nas
primeiras frases, eu estava engessado. Boquinha e Dimas se
esbaldavam. Saímos dos altos montes da reflexão para tomar um
banho relaxante na cachoeira do prazer.
Sou apenas um caminhante
Que perdeu o medo de se perder
Estou seguro de que sou imperfeito
Podem me chamar de louco
Podem zombar das minhas idéias
Não importa!
O que importa é que sou um caminhante
Que vende sonhos para os passantes
Não tenho bússola nem agenda
Não tenho nada, mas tenho tudo
Sou apenas um caminhante
À procura de mim mesmo
Ao nos ouvir cantar essa canção, alguns ouvintes ficaram
completamente atordoados. Perguntavam: ”Que grupo é esse? De
onde saiu? Quem é esse maestro? Será que é um palestrante de
alguma corporação que está disfarçado para excitar a mente dos
convidados?”. Outros se soltaram, entraram no ritmo e começaram
a nos acompanhar; perderam o medo de se perder, perderam o
medo de se soltar; descobriram, por alguns instantes, que não são
pesquisadores, engenheiros ou empresários, são apenas
caminhantes. E ainda outros saíram da platéia dizendo: ”Esse cara
é louco varrido!”. Apesar das interpretações destoantes, era
impossível ficar indiferente à irreverência do homem malvestido.
Ele penetrava nos espaços mais íntimos da solidão.
Olhamos ao nosso redor e vimos algumas pessoas comovidas,
em especial duas executivas muito bem-trajadas. Sentiam-se
intensamente abandonadas, embora rodeadas de pessoas. Tinham
sucesso profissional, mas eram infelizes. Todo o cenário mexia com
meu imaginário.
Vendo as pessoas interiorizadas, o vendedor de idéias tocou
em outro assunto. Perguntou algo aparentemente óbvio:
— A vida média é maior hoje ou no passado? Uma pessoa,
tomando a frente, respondeu:
— Hoje, sem sombra de dúvida!
Mas o mestre, olhando para seus discípulos, em especial para
mim, e depois para a massa que o ouvia, nos provocou indo contra
a resposta:
— Não! Morremos mais cedo hoje que no passado! Muitos
zombaram do mestre. Imaginei que dessa vez ele tinha metido os
pés pelas mãos. Um cientista não se agüentou. Dando risadas,
confrontou:
— Tolice! Qualquer péssimo estudante sabe que a vida média
se expandiu com as novas medidas sanitárias e vacinas.
O vendedor de sonhos não era tolo, sabia o que estava
dizendo. Fixando-se nele, comentou:
— No tempo dos romanos, a vida média não passava dos
quarenta anos. Na Idade Média, não passava dos quarenta e cinco.
Hoje nos aproximamos dos oitenta, mas me refiro à vida média
psíquica. Morremos psiquicamente mais cedo. Não parece que
dormiram e acordaram com essa idade, senhores?
E, aumentando o tom de voz, afirmou:
— O sistema tem um lado boníssimo. Produziu vacinas,
antibióticos, tratamento de água e esgotos, técnicas agrícolas,
conservação de alimentos, gerando, assim, a expansão da vida
média física. Todavia, o mesmo sistema que nos colocou ao ar livre
retirou oxigênio com seus excessos. Entenderam?
Não entendemos, pelo menos não completamente. Muitas
vezes ele era econômico nas palavras, falava quase por códigos.
Não sabíamos o que queria dizer sobre os ”excessos” do sistema.
Para iluminar nossa mente, mais uma vez fez o que sempre amava
fazer. Contou uma história:
— O simpático bacteriologista escocês Alexander Fleming
estava analisando uma temível bactéria em seu laboratório em
1928. Distraído como um bom cientista, e golpeado pelo excesso de
atividades, esqueceu a porta aberta ao sair. Um fungo invadiu as
placas de cultivo das bactérias, produzindo um bolor. Aquilo que
parecia um desastre gerou uma notável descoberta: as bactérias
morreram. A partir dessa descoberta, extraiu-se o primeiro
antibiótico, a penicilina. Milhões de vidas foram salvas. Todavia, a
penicilina passou a ser usada excessiva e indiscriminadamente. O
resultado? Agora, sim, desastroso. O uso excessivo de antibióticos
tem produzido bactérias resistentes a eles e, portanto,
perigosíssimas. A penicilina, que foi um dos maiores presentes da
medicina para a humanidade, é hoje acusada de criar
supermicróbios capazes de destruí-la ou afetá-la. Do mesmo modo,
o sistema que expandiu a vida média física, por meio de seus
excessos, está nos sepultando psiquicamente mais cedo do que
nos tempos da varíola.
Fazendo uma pausa para respirar, completou sua história:
— Vivemos mais tempo fisicamente do que no passado, mas a
percepção do tempo é muito mais rápida. Os meses correm, os
anos voam. Muitos estão no ápice da juventude psíquica, mas
olham para si e descobrem que têm setenta ou oitenta anos.
Atualmente, oitenta anos são percebidos como vinte. Quais os
excessos que os têm afetado? — indagou dos ouvintes.
Atordoados e honestos, os ouvintes olharam para a própria
história e declararam aquilo que os asfixiava. Uns responderam:
— Excesso de compromissos. Outros:
— Excesso de informações. E ainda outros:
— Excesso de pressões sociais, competição, metas,
cobranças, necessidade de nos atualizarmos.
Éramos a sociedade de excessos, até excesso de loucuras.
Bartolomeu não ficou atrás. Felizmente deu uma nota dentro:
— Excesso de porre. — E como nunca deixava ninguém
quieto, olhou para nós nos e disse: — Excesso de ego, de
malandragem, de religiosidade.
Demos-lhe uns beliscões sutis.
As pessoas começaram a descobrir que os excessos tinham
invadido nosso estilo de vida. Precisavam comprar sonhos. O
homem de lábios e olhos inchados queria vendê-los, pelo menos
um pouco.
— O que fazer para reverter essa vida excêntrica, saturada de
tensões? — perguntou, angustiado, um senhor de sessenta anos.
O mestre foi lacônico e direto:
— Cortem os excessos, ainda que percam dinheiro e
diminuam o status. Se não quiserem ser idosos reclamando uma
juventude que já passou, têm de ter coragem para fazer cortes. Não
há corte sem dor.
Eu fiquei pensando. Será que o mestre tinha tido coragem de
fazer tais cortes na sua história ou era um daqueles teóricos que
discorrem sobre o que não viveram? Pode uma pessoa sem
experiência abrir a mente de outras pessoas? Ele me fez enxergar
que o tempo voara para mim. Eu estava atolado até pescoço na
lama dos excessos. Excesso de aulas, de preocupações, de
pensamentos, de pessimismo, de reclamações, de dívidas. Eu
criara ”superbactérias” que infectavam minha psique.
Além de falar dos cortes no estilo de vida, vendeu o famoso
exercício da arte da observação, que semanalmente fazíamos. E
finalizou suas idéias dizendo:
— A vida se extingue rapidamente no parêntese do tempo.
Vivê-la lenta e deslumbradamente é o grande desafio dos mortais.
Essas palavras me fizeram recordar que no passado os dias
corriam tão rápido que eu não percebia. Agora, com essa incomum
família, os dias duravam. Vivíamos intensamente.
Após dizer tais palavras, começou a sentir vertigem. O
estresse pelo espancamento e o desgaste do discurso o haviam
esgotado. Seguramo-lo para que não caísse. Salomão e Dimas o
pegaram pelos braços e o conduziam para fora.
Saiu sob aplausos calorosos. Foi descansar debaixo do
viaduto da Avenida Europa, a duzentos metros do local.
Uma pessoa se aproximou dele e disse agressivamente:
— Nunca ouvi tanta loucura num só dia. Você é uma fraude!
Ficamos mordidos de raiva do sujeito. O mestre nos aquietou e
reagiu:
— Torço para que minhas idéias sejam de um louco e as suas
de um sábio. — E foi saindo.
As pessoas prestavam atenção no estranho homem enquanto
ele saía. Comentavam: ”Será que não quer fundar uma nova
sociedade?”. Abismadas, diziam entre si: ”Como reunirei forças
para fazer os cortes necessários em meus excessos?”. Algumas
queriam morar no campo, cultivar orquídeas, criar animais ou
fazer uma segunda jornada na sociedade, mudar de emprego ou
ser voluntárias em instituições filantrópicas, como hospitais de
câncer ou de crianças, mas seus excessos adiavam seus projetos.
Porém, dessa vez retornavam para casa pensativas. Não dormiam
direito, entenderam que deveriam perder o medo de se perder.
Pouco a pouco, descobri que o mestre não apenas era um vendedor
de sonhos, mas uma fonte de insônia.
Enquanto saímos do templo da informática, mais um fato
tocante aconteceu. Uma mulher bem-vestida, mesmo vendo o
mestre conduzido para fora fragilizado, abordou-o. Dissemos a ela
que não era o momento. Mas o mestre, esquecendo sua vertigem,
lhe deu ouvidos. Deprimida, comentou:
— Minha adorável filha Joana, de seis anos, está com câncer.
Os médicos disseram que provavelmente só terá mais três meses
de vida. Meu mundo desabou. Queria morrer em seu lugar. Não
consigo ficar em casa. Estou aqui porque, quando olho para ela,
entro em desespero, e ela é tão especial que em alguns momentos
tenta me consolar.
Ficamos comovidos e, mais uma vez, envergonhados com
nossa sensibilidade. Emocionado, ele disse.
— Filha! Não tenho poder sobrenatural para ajudar a
pequena Joana. Mas posso dizer que três meses mal vividos são
como segundos, ao passo que três meses vividos na plenitude são
como uma eternidade. Não enterre sua filha no túmulo do seu
medo. Vá para casa, descubra-a e deixe-a descobri-la. Viva
intensamente com ela, com o máximo de alegria, pelo tempo que
ela tiver.
Ela partiu animada, sedenta de fazer de cada minuto um
momento único. Não sabíamos se a sobrevida da pequena Joana
aumentaria. Mas tínhamos a certeza de que em três meses elas
poderiam destilar uma história mais rica e mais intensa do que
nos trinta anos que a maioria dos pais viviam com seus filhos.
Lembrei-me da minha história como pai. Tive vontade de sair
correndo atrás do João Marcos e lhe pedir desculpas pelo meu
superficialismo e intelectualismo.

O veneno do assédio social

Enquanto levávamos nosso mestre para o Viaduto Europa,
Bartolomeu se desgarrou do grupo. Um repórter queria fazer uma
entrevista sobre nós e em especial queria especular sobre a
identidade e as intenções do mestre. Vendo que durante o seu
discurso Bartolomeu fez uma pergunta, chamou-o à parte e
propôs-lhe uma entrevista. Ele ficou excitado, sem saber que
estava entrando numa zona de perigo.
O jornalista foi direto nas perguntas:
— É verdade que o homem que ouvimos os chamou para o
seguirem, sem lhes prometer dinheiro e lhes dar o mínimo de
segurança?
— Sim - respondeu com simplicidade.
— É verdade que vocês realmente moram debaixo de uma
ponte?
— Não de uma — respondeu ele. — Moramos debaixo de
muitas pontes e viadutos.
— Como assim? Quem são vocês? A quem vocês seguem?
Constrangido pela dificuldade de dar respostas precisas, sem
pensar muito, Bartolomeu disse: — Nós? Nós somos um grupo de
artistas.
— Artistas? São artistas plásticos, escultores, grupo teatral?
— indagou o jornalista, curioso, pensando se tratar de um grupo
bizarro de artistas. Mas decepcionou-se.
Bem-humorado, o terrível Boquinha de Mel respondeu:
— Não. Somos artistas em complicar a vida. — E deu sua
famosa gargalhada, que se ouvia a cinqüenta metros.
O jornalista se sentiu menosprezado. Mas meu amigo fora
sincero e espontâneo. Em seguida, tentando explicar melhor seu
pensamento, acrescentou:
— Durante toda a nossa história, complicamos a vida, mas
agora estamos passando por um complicado processo de
descomplicação. Não é fácil, mas chegaremos lá.
Boquinha de Mel estava entusiasmado, pois era a primeira
entrevista que dava em sua vida. Sentia-se atraído — pelo menos
um pouco — pelo veneno do assédio social.
— Mas quem é o líder do grupo? O que ele faz? — perguntou
o entrevistador, curioso.
— Não sei quem ele é. Mas sei que ele vende sonhos — disse
com ingenuidade.
— Vende sonhos, como assim? Esse sujeito não é uma pessoa
perigosa? Não é um louco?
O discípulo olhou em derredor e, apontando para o ambiente,
disse:
— Se ele é louco eu não sei, mas sei que ele diz que todos nós
estamos num manicômio global. O chefinho quer mudar o mundo
— falou, dando uma dimensão fantasiosa às metas do mestre. Na
realidade, o mestre queria estimular as pessoas a terem sede e
fome de mudanças, pois somente elas seriam responsáveis por
suas transformações.
Perplexo, o entrevistador indagou:
— O quê? Aquele maltrapilho diz que vivemos num hospício
global? E deseja mudar o mundo? E vocês acreditam nisso?
— Não sei se ele vai mudar o mundo, mas está mudando o
meu mundo — disse com sinceridade.
— Vocês são anarquistas?
Bartolomeu desconhecia o movimento anarquista. Não sabia
que Pierre Joseph Proudhon, o inspirador desse movimento
surgido no século XIX, defendia a tese da construção de uma nova
sociedade, capaz de expandir a liberdade individual e libertar o
trabalho da exploração do capitalismo industrial. Nessa nova
ordem social, constituída pela organização dos trabalhadores, as
pessoas tratariam com justiça seus pares e desenvolveriam seu
potencial. Os anarquistas não reconheciam o governo vigente, suas
leis e instituições. Viviam debaixo do seu próprio controle. Sem a
tutela do Estado, o ser humano, pensavam os anarquistas, seria
livre.
O mestre não compactuava com a idéia central dos
anarquistas. Para ele, sem Constituição e sem instituições, o
homem poderia cometer atrocidades, distorcer o direito dos outros,
assassinar, extorquir, viver em função de si mesmo e mostrar uma
selvageria sem precedente. Não queria também reeditar o
movimento hippie, que surgira na esteira da guerra dos EUA com o
Vietnã. A frustração da juventude com a guerra gerou o
desapontamento com as instituições, e isso se tornou o embrião de
um movimento de paz e amor, mas sem compromissos sociais.
O projeto de vender sonhos do mestre, ao contrário, era
saturado de compromissos com a sociedade, em especial com os
direitos humanos, a liberdade e a saúde psíquica. Por isso, ele
recomendava, para os que queriam segui-lo, que não deixassem
suas atividades sociais. Apenas alguns, talvez os mais bizarros,
eram chamados para o seu treinamento.
Bartolomeu não sabia que não éramos anarquistas. Embora
não entendesse o conteúdo da pergunta, o bizarro discípulo cocou
a cabeça e respondeu com singeleza filosófica:
— Olha, meu amigo, não sei se somos anarquistas. O que sei
é que até há pouco tempo eu não sabia dizer quem eu era.
— E agora, sabe? — perguntou o entrevistador curioso. Mas
nosso amigo deu um nó na mente dele.
— Agora? Sei menos ainda. Não sei quem sou nem o que sou,
pois o que pensava que era não é o que sou. Estou me
desintoxicando do que era para ser o que sou. Não compreendo
ainda quem sou, mas estou à procura de mim. Tá entendendo?
— Não! — respondeu o repórter, saturado de dúvidas.
Bartolomeu reagiu aliviado, dizendo:
— Ufa! Que maravilha! Pensei que só eu não entendia. Olha,
meu amigo, só sei que vivia caindo todos os dias, mas agora estou
reerguendo alguns. — E fitando os olhos do jornalista, fez-lhe um
convite afetivo: — Você não quer fazer parte do grupo?
— Eu não! Isso é coisa de maluco — rebateu o outro
categoricamente.
Percebendo a atitude ríspida do jornalista, ele rebateu, dessa
vez sem ingenuidade:
— Ué, cara! Como sabe disso? Mas é tão bom ser maluco! E,
irreverente, levantou-se e começou a andar e a cantar, com sua voz
estridente e de braços abertos, um trecho de uma música do Raul
Seixas de que gostava: ”Eu vou ficaaar, maluco beleza”. Saiu sem
se despedir do repórter. E gritava: ”Ah! Eu adoro essa vida!”.
Gingava os quadris e cantava: ”Eu vou ficaaar, maluco beleza”.
Ficou fora de si.
O jornalista, antes da entrevista com Bartolomeu, já tinha
desenhado a pauta e o conteúdo da reportagem. Só precisava
confirmar alguns dados. O preconceito o controlara. Bartolomeu
ficou tão eufórico com a primeira entrevista que perdeu a
sobriedade. Resolveu comemorar. Foi para um bar e encheu a
cara. Era a terceira recaída desde que fora chamado, só que as
duas primeiras tinham sido brandas. Dessa vez ele entortou o cabo
do guarda-chuva e ensopou-se. Ficou jogado na calçada.
Notando a sua falta, ficamos preocupados. O mestre nos
encorajou a ir atrás dele. Eu e meus amigos, sem paciência,
falamos uns para os outros: ”De novo! Esse cara não tem jeito”.
Depois de uma hora o achamos quase desmaiado. Nós o colocamos
de pé, mas ele não se firmava. Percebemos que fazia um pouco de
corpo mole, não queria andar. Pegamos seus braços um de cada
lado, e o apoiamos. Dimas empurrava por detrás.
Bartolomeu, com a voz pastosa, reclamava de Dimas:
— Vai devagar, amigo... O pára-choque é frágil.
De vez em quando, soltava flatos sonoros e fétidos — pior que
uma vaca velha. E ainda zombava de nós:
— Gente, perdoa o escapamento furado.
Dava vontade de lhe dar uns tabefes. Eu me questionava:
”Saí do mundo das idéias da academia para ouvir as idéias de um
bêbado. É inacreditável”. Nunca amei o próximo a não ser que me
desse retorno. Sem retorno, estava fora. Agora estava cuidando de
alguém que, além de não me dar retorno, me fazia sair do sério e
me tirava sarro. Chegando perto do viaduto, nos últimos trinta
metros, tivemos que carregá-lo; realmente, ele não conseguia mais
andar. O mais difícil era agüentar sua declaração de amor por nós
num péssimo inglês:
-- I love you, gente. I love you very much, much, much.
Suados e fatigados, falamos em coro:
— Cala a boca, Bartolomeu! — Mas não adiantava. Pedir para
ele se calar aguçava seu vício inveterado de ser prolixo. Falou
umas dez vezes, durante o trajeto, que nos amava. Talvez estivesse
sendo sincero, talvez sua afetividade fosse maior que a nossa. Logo
que chegamos ao viaduto, o folgado tentou nos dar beijos de
agradecimento. Não agüentamos. Soltamo-lo no chão, mas
procuramos proteger sua cabeça. Descarado, ele olhou para nós e
exagerou:
— My friends, é um privilégio vocês me tomarem nos braços.
Impacientes, dissemos em tom firme ao mestre:
— Mande esse cara para os Alcoólatras Anônimos. — Mas
sem ele faltava graça no grupo.
Dimas falou:
— Mande-o para... para... um hospital psi... psi..., de louco
mesmo.
O Milagreiro disse:
— Mestre, quantas vezes teremos que suportá-lo?
Não queríamos ouvir a resposta, pois ele endossou as
palavras de Bartolomeu:
— É um privilégio carregá-lo. .
Ouvindo as palavras do mestre, Bartolomeu, mesmo
embriagado, sentiu-se prestigiado:
— Tão ouvindo o chefinho! Não sou pouca coisa, não! — falou
quase incompreensivelmente, mas claro o suficiente para
aumentar a temperatura de nossas emoções. Em seguida, o
vendedor de sonhos adicionou:
— É melhor carregar do que ser carregado. É melhor suportar
do que ser suportado.
E disse-me algo que mais uma vez colidiu frontalmente com
meu ateísmo:
— O deus construído pelo homem, o deus religioso, é
implacável, intolerante, exclusivista, preconceituoso. Mas o Deus
que se oculta nos bastidores do teatro da existência é generoso.
Sua capacidade de perdoar não tem bom senso, nos estimula a
carregar os que nos frustram tantas vezes quantas forem
necessárias.
Enquanto o mestre falava, eu duvidava das suas palavras.
Recordava minha análise sociológica dos textos das Antigas
Escrituras, e me vinha à mente um deus rígido, agressivo,
intolerante. ”Onde está esse Deus generoso? Onde está o Deus
tolerante, se aceitava apenas o povo de Israel?”, perguntei-me.
Como se estivesse lendo os meus pensamentos, ele disse:
— Esse Deus generoso foi declarado em prosa e verso na boca
do Mestre dos Mestres. Foi declarado quando chamou Judas de
amigo no ato da traição. Foi declarado quando Jesus tremia na
cruz e clamava: ”Pai, perdoai-os porque eles não sabem o que
fazem”. Ele protegeu os que o odiaram, amou seus inimigos,
intercedeu afetivamente pelos seus torturadores.
Suas palavras penetraram nos becos da minha
personalidade, expondo minha falta de generosidade. Eu nunca
soubera perdoar. Nunca perdoara meu filho por usar drogas. Para
mim, ele havia negado a minha excelente educação. Nunca
perdoara minha esposa por ter me abandonado. Para mim, ela
abandonara um dos melhores homens do mundo. Nunca perdoara
meu pai por ter se matado. Para mim, ele cometera o maior crime
em ter me deixado quando menino. Nunca perdoara meus colegas
professores que me traíram quando haviam prometido seu apoio
no departamento. Considerava-os um bando de covardes
dominados pela inveja.
Ao caminhar com o mestre, tinha a oportunidade de perdoar
e carregar um alcoólatra gozador, desatinado, irresponsável. Como
fazer isso sem reclamar? Difícil, muito difícil para mim. Mas eu
começava a amar esse zombeteiro. Bartolomeu tinha o que eu
sempre quisera: autenticidade e auto-estima sólida.
Sociologicamente falando, os irresponsáveis são mais felizes do que
os responsáveis. O problema é que os irresponsáveis dependem
dos responsáveis para serem carregados.
No dia seguinte, as conseqüências da entrevista de
Bartolomeu vieram à tona. Estava estampada, na primeira página
do famoso jornal, a foto do mestre com a seguinte manchete:
”Psicótico chama o sistema social de manicômio global”.
O jornalista comentava que havia um maluco que dizia que a
humanidade caminha pelas avenidas de um gigantesco manicômio
global. Mas dessa vez — dizia o maluco — esse manicômio não era
um lugar lúgubre, frio, fétido, escuro, como os hospitais
psiquiátricos do passado, e sim um ambiente aprazível, colorido,
iluminado e repleto de máquinas sofisticadas. Um lugar perfeito
para cultivar nossas loucuras sem nos perturbarmos com elas.
Ele fazia discursos em todos os lugares públicos, com o
objetivo de mudar a mente das pessoas. Ninguém sabia suas
origens, mas para ludibriar as pessoas ele se intitulava com um
nome atraente, ”o Vendedor de Sonhos”.
A reportagem estampava fotos das pessoas magnetizadas por
ele e dizia que o sujeito era doido varrido, mas carismático e
instigante. Sua capacidade de sedução era grandiosa. Até
executivos caíam na sua armadilha. Uma corja de ingênuos sem
cultura clássica o seguia. Ele comentava que não enfatizava
milagres nem se julgava messiânico, mas, desde que o homem
Jesus viveu na Judéia e na Galiléia, não se via um demente tão
ousado querendo reproduzir seus passos.
Nada discorreu sobre as intrigantes idéias que o mestre
proferia. Não falou sobre a necessidade vital do autodiálogo, o sono
inconsciente a que os computadores estão eternamente
condenados, os excessos do sistema que estão nos fazendo morrer
mais cedo no território psíquico. Silenciou-se ante a redução
drástica da vida média psicológica. Por fim, concluiu a matéria
dizendo que seus seguidores eram um bando de anarquistas que
colocavam em risco a democracia e que poderiam desencadear atos
terroristas.
A reportagem atirou nossa história no chão. A difamação foi
contundente, não deixou pedra sobre pedra do nosso projeto.
Ficamos profundamente cabisbaixos, desanimados. Não havia
mais como continuar, pensei. Seria muito melhor chafurdar na
lama do individualismo. Enquanto afundávamos no pântano dessa
calúnia, mais uma vez o mestre entrou em cena e tentou apaziguar
nossa mente. Parecia que havia sofrido tanto na vida, que essas
coisas não o incomodavam.
— Lembre-se das andorinhas. Não temos vocação para ser
mitos.
E tocando na raiz de nossa fragilidade, acrescentou:
— Jamais se esqueçam de que não é possível servir a dois
senhores: ou vendemos sonhos ou nos preocupamos com nossa
imagem social; ou somos fiéis à nossa consciência ou gravitamos
na órbita do que os outros pensam e falam de nós.
E mais uma vez nos deu a opção de partir.
— Não se preocupem comigo. Vocês já deram muitas alegrias
a mim e a muitos outros. Aprendi a amá-los e admirá-los do jeito
que são. Não quero colocar em risco a vida de vocês. É melhor
partirem.
Mas para onde iríamos? Não conseguíamos mais ser mortais
”normais”, servos do sistema anulados pela maçante rotina social,
especialistas em reclamar da vida esperando a morte chegar.
Havíamos nos tornado uma família incomum. O egoísmo do
passado ainda estava vivo, mas paulatinamente dava lugar ao
prazer em servir aos outros.
Optamos por ficar. Afinal de contas, se a pessoa mais
difamada pela reportagem sentia-se livre, por que nós iríamos nos
acorrentar? Durante o dia, sentimos que o tiro saía pela culatra. A
reportagem, em vez de acabar com o movimento, colocou mais
combustível nele. As pessoas não suportavam mais noticias sobre
assassinatos, acidentes, estupros, furtos. Numa megalópole
pautada pela mesmice, entediada pela escassez de fatos novos, o
mestre se tornou um fenômeno social.
As pessoas tinham sede de novidade, ainda que fosse
travestida de loucura. O vendedor de sonhos se tornou tal
novidade, virou uma celebridade local, justamente o que ele mais
temia. A partir daí, começou a ser seguido por paparazzi,
profissionais de plantão em busca de notícias que, às vezes,
difundem sensacionalismo.
Ao tomar ciência de que estava cada vez mais famoso, ele
meneava a cabeça, insatisfeito. Alertava-nos, dizendo:
— Para criar um deus, basta uma dose de carisma e de
liderança num ambiente de estresse social. Cuidado, o sistema dá,
mas tira, em especial a nossa humanidade.
Eu entendia o que o mestre queria apontar. O povo mais
culto da terra, o que mais havia conquistado prêmios Nobel no
começo do século XX, entronizou Hitler num período de crise
social. Os tempos de crise são tempos de mutação para o bem ou
para o mal. Chamando-nos a atenção contra os riscos do poder, o
mestre comentou:
— A maioria das pessoas está despreparada para assumir o
poder. O poder faz despertar fantasmas que estão escondidos
debaixo do manto da humildade: o fantasma do autoritarismo, do
controle, da chantagem, da necessidade de aplausos. — E nos
ensinou: — O poder nas mãos de um sábio o torna um aprendiz,
mas mãos de um estulto o torna um ditador. Se um dia tiverem
muito poder, que fantasmas sairão do calabouço do seu
inconsciente? — nos indagou.
Sua pergunta nos incomodou. Quando assumi a chefia do
departamento, alguns fantasmas saíram do meu calabouço
psíquico e ganharam corpo. Tornei-me duro, inflexível, exigente.
Entendi que não se conhece um ser humano pela doçura da
voz, pela bondade dos gestos ou pela simplicidade das vestes, mas
tão-somente quando se lhe dá poder e dinheiro.
O mestre discorria sobre esses complexos assuntos de um
modo que me intrigava. Ele se vestia como um miserável, mas seu
falar indicava que não era um professor que ensina algo distante
da sua realidade. Parecia que havia tido muito poder. Mas que
poder pode ter tido alguém tão pobre, sem conta bancária, sem
casa nem documentos?
Alguns religiosos começaram a ter grande apreço por suas
idéias, mas outros começaram a ficar preocupados com sua
ascensão. Deus era propriedade deles. Eles eram teólogos, peritos
em divindade. Um miserável que vivia à margem da sociedade e
que morava debaixo de pontes não tinha gabarito para discorrer
sobre ele. Alguns religiosos radicais se perguntavam: ”Não seria ele
um profeta do mal? Não seria o anticristo que há séculos foi
anunciado?”. O fato é que ele se tornou uma figura emblemática.
Queria passar despercebido, mas era impossível esconder-se.
Alguns começaram a lhe pedir autógrafos nas ruas e
avenidas. Mas ele os fitava e os surpreendia:
— Como poderei dar autógrafo a alguém tão ou mais
importante que eu? Precisaria de décadas para conhecê-lo um
pouco, compreender alguns pilares da sua inteligência e desvendar
alguns fenômenos que tecem sua construção de pensamentos. Eu
é que me sinto honrado em conhecê-lo. Por favor, me dê você um
autógrafo.
Eles deixavam sua presença pasmos e reflexivos. Alguns
compravam o sonho de que não existem celebridades e nem
anônimos, mas seres humanos complexos com funções sociais
distintas.

A superioridade das mulheres

Nos dias que se seguiram, estávamos vivendo um céu de
brigadeiro. Nenhuma tempestade no ar. Nenhum percalço social.
Nenhuma rejeição. Desfrutávamos de prestígio, assédio e
reconhecimento social. Nada mal para quem desafiava o poderoso
sistema e morava em lugares inóspitos. Não imaginávamos o que
viria pela frente.
Quando tudo transcorria em perfeita harmonia, mais uma vez
o mestre nos assombrou. Convidou-nos para ir ao mais charmoso
dos templos, o templo da moda, o mundo fashion. Estava havendo
no lado sul da cidade um requintado desfile de renomados
estilistas. O poderoso grupo Megasoft novamente estava
representado pela sua cadeia mundial de roupas femininas,
chamada La Femme, que administrava mais de dez grifes
internacionais e tinha duas mil lojas em vinte países.
Achamos bizarro o convite do mestre. Era um local
inapropriado para vender sonhos. Afinal de contas, críamos que
pelo menos nesse ambiente a auto-estima encontrara seu melhor
meio de cultura. Pensávamos que a auto-imagem, o culto ao corpo
e o prazer existencial existiam em outros guetos, mas não no
gingado das passarelas.
”O que o mestre almeja num ambiente desses?”, pensávamos.
”Que reações teria? Que atitudes tomaria? A quem abordaria?”,
continuávamos a refletir. Torcíamos para que ele fosse discreto,
não causasse nenhuma turbulência, mas sabíamos que isso era
quase impossível.
Entrar no evento já seria um problema. Afinal de contas, se
não tínhamos conseguido entrar no templo da informática, como
entraríamos no templo da moda? Nossos trajes eram pitorescos,
estávamos fora do rigor da moda. Parecíamos um grupo de pessoas
exóticas, antiquadas, notadas não pela graça, mas pela
estranheza. Seríamos indubitavelmente rechaçados.
O mestre trajava nesse dia um blazer preto desbotado e
remendado, que ganhara num brechó e cuja numeração era maior
que a sua. Usava calça preta de corte mal definido e bolsos
traseiros remendados com pano de cor azul. Vestia camisa verdemusgo”
amassada e com algumas manchas de caneta esferográfica
preta. Eu usava camiseta pólo e calça bege que ganhara de um
caminhante que reencontrou seus sonhos. Todos estávamos
desarrumados, mas as vestes do Bartolomeu eram as mais
engraçadas, e, sob alguns ângulos, ridículas. Sua calça amarela
estava quatro dedos acima do tornozelo. Uma viúva que morava
próximo do Viaduto Europa a presenteara. Pertencera ao seu
marido. Ele estava feliz com ela, pois vivia o ditado ”a cavalo dado
não se olham os dentes”. A meia do lado esquerdo era azulmarinho
e a do lado direito, azul-escura. A camiseta branca tinha
dizeres eloqüentes, que retratavam com fidelidade a sua
personalidade: ”Não me siga! Estou perdido”.
Ao penetrar no imenso hall do salão nobre dos desfiles de
modas e observar atentamente as pessoas muito bem-trajadas, o
mestre mexeu com nossa estrutura. Não fez discursos nem criticou
o mundo fashion. Comentou com segurança:
— Estou pensando em chamar algumas mulheres para
vender sonhos, o que acham?
O ninho dos homens abalou-se. Éramos um grupo
extravagante, excêntrico, reconhecidamente esdrúxulo, mas nos
acomodávamos. Havia diferenças, mas estávamos nos ajustando.
Nossas discussões fora dos olhares do mestre eram ardentes, mas
passíveis de superação. Agora, chamar mulheres para a nossa
confraria parecia um exagero. Não daria certo.
Imediatamente ponderei.
— Mulheres, mestre? Acho que é uma má escolha.
— Por quê? — questionou-me.
Antes de eu responder, o Boquinha de Mel felizmente saiu em
minha defesa:
— Elas não agüentarão o tranco. Como dormirão debaixo de
pontes?
— Que banheiro usarão? Em que espelho se arrumarão? —
ponderou Salomão. Mas o mestre retrucou:
— Mas quem disse que elas necessitam deixar o próprio lar
para nos seguir? Afinal de contas, cada ser humano deveria vender
sonhos no ambiente em que se encontra, seja para si mesmo ou
para os outros.
Dessa vez, suas palavras não nos aliviaram. Não admitíamos
que uma mulher pudesse participar do grupo, ainda que
parcialmente. Por mais que o mestre tivesse nos alertado, depois
das batalhas, rejeições e enfrentamentos sociais, estávamos
envenenados com certa dose de heroísmo. Sentíamo-nos
revolucionários, protagonistas de uma experiência sociológica
fantástica. Não queríamos dividir nossas glórias. Infectados pela
discriminação, pensávamos que as mulheres diminuiriam nossa
audácia.
— Segui-lo, mestre, é para... macho, e dos bons. De mais a
mais, as mulheres falam demais e agem de menos — disse Mão de
Anjo com convicção, quase sem gaguejar. Em seguida percebeu
sua arrogância e tentou se desculpar. Havíamos nos apossado do
mestre e de seu projeto. Queríamos dar a ele um colorido
masculino.
Edson também não suportou a proposta do mestre. Usou
seus conhecimentos sobre teologia para dissuadir-lhe as intenções.
— Mestre, Buda chamou aprendizes, Confúcio teve homens
como seguidores, Jesus chamou discípulos. Como você quer
chamar mulheres para segui-lo? Olhe para a história! Não vai dar
certo.
Pela primeira vez, o grupo foi unânime em se derreter de
elogios para o Milagreiro. Começamos a pensar que poderia trazer
contribuições interessantes. Todavia, o vendedor de idéias
perguntou contundentemente ao nosso teólogo:
— Quando o Mestre dos Mestres chamou seus discípulos,
onde os colocou, no centro ou na periferia do seu plano?
— No centro. É claro — respondeu sem titubear.
— E as mulheres? — indagou, testando-o.
Edson pensou, refletiu, pôs as mãos na testa, pois sabia que
poderia cair em contradição. E, depois de um prolongado momento
analítico, respondeu com argúcia:
— Não posso dizer que na periferia, pois elas lhe davam
suporte material, mas não estavam no centro do trabalho, pois não
participaram ativamente do seu projeto.
Pensei comigo: ”Caramba! Achava que Edson tinha uma visão
curta, mas mais uma vez mordi a língua”.
O mestre novamente olhou para ele e depois para todos nós.
— Errado — disse ele, e permaneceu em silêncio.
Por eu ter estudado como sociólogo os textos considerados
sagrados, achava que Edson estava certo. Aguardava os
argumentos do mestre, desconfiado de que dessa vez não nos
convencesse.
— Elas sempre estiveram no centro do seu projeto. Em
primeiro lugar, segundo as Escrituras, Deus não escolheu uma
casta de fariseus, de sacerdotes ou de filósofos gregos para educar
o Menino Jesus, mas uma mulher, uma adolescente não
contaminada com o sistema masculino vigente.
Coçamos a cabeça diante da bomba.
— Em segundo lugar, a primeira pessoa a anunciá-lo na
palestina foi uma mulher, a mulher samaritana. Ela viveu uma
vida promíscua, teve muitos homens, mas as palavras dele
saciaram sua sede interior. Determinada, reuniu seu povo e falou
do homem que a comovera. — Após dizer essas palavras, ele parou
para respirar e nos tirou o fôlego dizendo: — Uma prostituta foi
mais nobre que os líderes religiosos do seu tempo.
Bartolomeu soltou uma frase que quebrou o tenso clima que
pesava sobre os homens. Não sei onde encontrava tanta
imaginação:
— Chefinho, sempre achei que as mulheres são mais
inteligentes que os homens, o problema é que inventaram o cartão
de crédito... — E caiu na risada. Dera a entender ironicamente que
era ele que sustentava as mulheres que já tivera. Na realidade, elas
o tinham sustentado.
O mestre, não contente com nossa masculinidade
preconceituosa, investiu ainda mais. Perguntou novamente para o
nosso teólogo de plantão:
— Diga-me, Edson. No momento mais importante da vida de
Jesus, quando seu corpo tremia na cruz e seu coração claudicava,
onde estavam os homens, no centro ou na periferia do seu plano?
Edson, sem cor, demorou a responder. E nós ficamos rubros.
Diante do silêncio, o mestre reagiu:
— Seus discípulos eram heróis quando ele abalava o mundo,
mas foram covardes quando o mundo desabava sobre ele: calaramse,
fugiram, negaram, traíram. Mas mesmo assim, ele os amou. Os
homens são mais tímidos do que as mulheres. Num ímpeto
sociológico, retruquei-lhe:
— Mas eles não fazem guerras? Não empunham armas? Não
fazem revoluções?
Porém, a resposta veio sem titubear:
— Os fracos usam as armas; os fortes, o diálogo. — Em
seguida, fez a pergunta que mais temíamos:
— Onde estavam as mulheres quando ele morria?
Sem muito entusiasmo, nós, que conhecíamos o texto,
dissemos:
— Próximas da cruz.
— Mais que isso, estavam no epicentro do seu projeto. E
sabem por quê? Porque as mulheres são mais fortes, inteligentes,
sensíveis, humanas, generosas, altruístas, solidárias, tolerantes,
companheiras, fiéis, sensatas, do que os homens. Basta dizer que
noventa por cento dos crimes violentos são cometidos por homens.
Ficamos abalados com tantos adjetivos a favor delas. O
mestre não parecia feminista, nem parecia estar querendo atirar
palavras ao ar tentando compensar milênios de discriminação
contra as mulheres. Parecia estar convicto do que pensava.
Para ele, o sistema que controlava a humanidade foi
concebido nas entranhas da mente masculina, embora seus
criadores não imaginassem que um dia se tornariam vítimas da
sua própria criatura. As mulheres precisavam entrar em cena e,
com sua graça e coragem, vender sonhos, muitos sonhos.

O templo da moda, um sorriso no caos

Depois de mostrar que o mais culto dos discípulos de Jesus,
Judas, o traiu, o mais forte deles, Pedro, o negou, e o resto do
bando, à exceção do João, debandou — enfim, depois de
demonstrar a fragilidade masculina e a grandeza feminina, revelou
por que estava no templo da moda. Começou tecendo algumas
informações conhecidas nos meios sociológicos, mas
desconhecidas de alguns dos membros que o tinham seguido.
Disse que no passado o sistema masculino considerara as
mulheres uma classe inferior, amordaçara-as, queimara-as,
apedrejara-as. Com o tempo, elas se libertaram, resgataram
parcialmente seus direitos. Fez uma pausa nas suas idéias e citou
o número ”um”. Fiquei inquieto com a citação numérica no meio
do diálogo. Já havia visto esse filme.
O mestre comentou que as mulheres começaram a votar,
brilhar no mundo acadêmico, crescer no mundo corporativo,
ocupar espaços nos mais diversos territórios sociais; as mulheres
tornaram-se cada vez mais ousadas. Com eficiência, começaram a
mudar algumas áreas vitais da sociedade, a introduzir tolerância,
solidariedade, companheirismo, afeto e romantismo. Mas o sistema
não as perdoou pela audácia.
Preparou para elas a mais cafajeste e sorrateira das
armadilhas. Em vez de exaltar sua inteligência e notória
sensibilidade, começou a exaltar o corpo da mulher como nunca
na história. Usou-o exaustivamente para vender produtos e
serviços. Aparentemente elas sentiram-se bem-aventuradas.
Parecia que as sociedades modernas estavam querendo compensar
milênios de rejeição. Ingênuo pensamento. O mestre fez uma
pausa para respirar.
Fitando o imenso e colorido templo da moda, ele ficou
indignado e em voz alta começou a convidar as pessoas para falar
sobre a última moda. Nada poderia ser tão estranho para alguém
com suas vestes. Mas, como o mundo fashion é versátil, pensaram
que representássemos um estilista rebelde às convenções. Ficamos
inibidos em ver pessoas tão bem-vestidas começarem a nos rodear.
Algumas delas o identificaram.
Rapidamente, ele começou a discorrer sobre suas polêmicas
idéias:
— Quando as mulheres se sentiam no trono do sistema
masculino, o mundo da moda as aprisionou no mais grave e sutil
estereótipo! — E citou o número ”dois”, profundamente triste.
Eu não sabia aonde o semeador de idéias queria chegar.
Sabia que os estereótipos são um problema sociológico. O
estereótipo do louco, do drogado, do político corrupto, do
socialista, do burguês, do judeu, do terrorista, do homossexual.
Usamos os estereótipos como um padrão torpe para tachar as
pessoas com determinados comportamentos. Não avaliamos o
conteúdo psíquico delas: se possuem determinados gestos,
imediatamente as aprisionamos na masmorra do estereótipo,
classificando-as como viciadas em drogas, corruptas, doentes
mentais. Os estereótipos reduzem a dimensão humana.
Mas o que o mundo belíssimo da moda tem a ver com os
estereótipos? As mulheres eram livres para vestir o que quisessem,
comprar as roupas que bem entendessem e ter o corpo que
desejassem. Eu não entendia por que tamanha preocupação do
mestre. Entretanto, à medida que ele expunha seu pensamento,
fiquei impressionado.
O estereótipo do belo, no mundo da moda, começou a ser
formado pela exceção genética. Que desastre! Que injustiça!
Bartolomeu estava boiando até esse momento.
— Chefinho, é caro esse estereótipo? — perguntou, pensando
que era um tipo de roupa. O mestre disse-lhe:
— As implicações são caríssimas. — E explicou: - Para
maximizar as vendas e gerar uma atração fatal entre as mulheres,
o mundo fashion começou a usar o corpo de jovens completamente
fora do padrão comum como protótipo de beleza. Uma entre dez
mil jovens de corpo magérrimo e fácies, quadris, nariz, busto e
pescoço estritamente bem-torneados tornou-se ao longo dos anos o
estereótipo do belo. Que conseqüências no inconsciente coletivo!
As pessoas se aglomeravam cada vez mais. Depois de uma
breve pausa, ele continuou:
— A exceção genética virou a regra. As crianças
transportaram as bonecas Barbies com seu corpo impecável para o
teatro da vida, e as adolescentes transformaram as modelos em
um padrão de beleza inalcançável. Esse processo gerou, em
centenas de milhões de mulheres, uma busca compulsiva do
estereótipo, como se fosse uma droga. Elas, que sempre foram
mais generosas e solidárias que os homens, se tornaram, sem
perceber, carrascas de si mesmas. Até as chinesas e japonesas
estão mutilando sua anatomia para se aproximar da beleza das
modelos ocidentais. Sabiam disso?
Eu não tinha essa informação, mas como ele a tinha? Como
pode alguém completamente fora de moda estar tão informado
sobre ela? De repente, ele interrompeu meus pensamentos citando,
consternado, o número ”três”.
E continuou dizendo que tal modelo penetrara como uma
bomba silenciosa no inconsciente coletivo, implodindo a
autoimagem, causando um terrorismo contra a auto-estima, algo
jamais visto na história. No passado, os estereótipos não tinham
graves conseqüências coletivas porque ainda não éramos uma
aldeia global. Quando as mulheres pensavam que estavam voando
livremente, o sistema tosou-lhes as asas com a ”síndrome da
Barbie”.
Um estilista o interpelou tensamente:
— Isso é folclore. Discordo de suas idéias.
— Gostaria que fosse. Quem dera minhas idéias fossem tolas.
— E citou o número quatro.
Nesse momento, uma jovem perguntou, incomodada:
— Por que cita números enquanto fala?
O mestre olhou para mim e fez quinze segundos de silêncio.
Parecia que estava sendo arrebatado para os recantos da sociedade
e penetrado como um raio no âmago de muitas famílias que
estavam perdendo seus filhas e filhos. Com os olhos embebidos em
lágrimas, retornou dessa viagem e disse a todos:
— Lúcia, uma jovem tímida, mas versátil, criativa, excelente
aluna, está com 34 quilos, embora tenha 1,66 metro de altura.
Seus ossos saltam sob a pele, formando uma imagem repulsiva,
mas ela se recusa a comer com medo de engordar. Márcia, uma
jovem sorridente, extrovertida, uma menina encantadora, está com
35 quilos e tem 1,60 metro de altura. Sua face cadavérica leva
seus pais e amigos ao ápice do desespero, mas ela do mesmo modo
se recusa a se alimentar. Bernadete está com 43 quilos e mede
1,70 metro de altura. Gostava de conversar com todo mundo, mas
se isolou do namorado, dos amigos e do bate-papo na internet.
Rafaela pesa 48 quilos e mede 1,83 metro. Jogava vôlei, gostava de
ir à praia e correr sobre a areia, mas agora está morrendo de
inanição.
Fez mais uma pausa, olhou atentamente a platéia e disse:
— Durante minha fala, quatro jovens desenvolveram anorexia
nervosa. Algumas superam seus transtornos, outras o perpetuam.
E se vocês perguntarem a elas por que não comem, ouvirão:
”Porque estamos obesas”. Bilhões de células suplicam que se
alimentem, mas elas não têm compaixão do seu corpo, que não
tem força para fazer exercícios físicos nem para andar. O
desespero para alcançar o estereótipo do belo fê-las adoecer
profundamente e estancou o que jamais conseguimos estancar
naturalmente: o instinto da fome.
E comentou que, se essas pessoas vivessem em tribos onde o
estereótipo não tivesse um peso intenso, não adoeceriam. Mas
vivem na sociedade moderna, que não apenas difunde a magreza
insana, mas supervaloriza determinado tipo de olhos, pescoço,
busto, quadris, o tamanho do nariz — enfim, um mundo que
exclui e discrimina quem está fora do modelo. E o pior é que tudo
isso é feito sutilmente. E enfatizou:
— Não nego que possa haver causas metabólicas para os
transtornos alimentares, mas as causas sociais são inegáveis e
indesculpáveis. Há cinqüenta milhões de pessoas com anorexia
nervosa no mundo, um número que nos remete às proporções do
número de mortos da Segunda Guerra Mundial.
De repente, o mestre perdeu a sobriedade, deixou o tom
ameno e, como se fosse um psicótico, subiu em cima de uma
poltrona que estava ao seu lado e bradou alto e bom som:
— O sistema social é astuto, grita quando precisa se calar e
se cala quando precisa gritar. Nada contra as modelos e os
inteligentes e criativos estilistas, mas o sistema se esqueceu de
gritar que a beleza não pode ser padronizada.
Várias pessoas, inclusive modelos internacionais e estilistas
famosos que passavam por ali, também eram atraídos pelo homem
excêntrico que alardeava suas idéias. Já havia pessoas em diversas
sociedades lutando contra essa discriminação, mas a luta era
tímida perante a monstruosidade do sistema. O mestre nem
sempre era dócil e paciente. Em algumas situações, mostrava um
ar de irritação e inconformismo. Embriagado com o cálice da
indignação, usou mais uma vez seu felino método socrático:
— Onde estão as gordinhas nos desfiles? Onde estão as
jovens com quadris menos bem-torneados? Onde estão as
mulheres de nariz saliente? Por que neste templo se escondem as
jovens com culotes ou estrias? Não são elas seres humanos? Não
são elas belas? Por que o mundo as ignora? Por que o que surgiu
para promover o bem-estar, está destruindo a auto-estima das
mulheres? Essa discriminação socialmente aceita não é um
estupro da auto-estima? Não é tão violenta quanto a discriminação
contra os negros?
Ao ouvir esse questionamento, eu começara a ter asco do
sistema. Todavia, quando o mestre havia nos conduzido ao auge da
reflexão, apareceu Bartolomeu para novamente quebrar o clima.
Levantou as mãos e com a maior descaramento tentou referendar o
mestre:
— Chefinho, concordo com você. Não discrimino as mulheres.
Já namorei cada assombração!
A platéia não se conteve com sua irreverência. Mas nós
estávamos apreensivos, tão aflitos que olhamos para o
incontrolável discípulo e dissemos uma frase que havia se tornado
parte do nosso patrimônio cultural:
— Finja que você é normal, Bartolomeu!
As pessoas ficaram embaraçadas com as idéias do mestre.
Algumas, boquiabertas e encantadas, outras, odiando essas idéias
até a última fibra do tecido que usavam. Os paparazzi começaram
a tirar fotos e mais fotos. Estavam ansiosos para noticiar o
escândalo do ano.
Após ouvir a platéia irromper em sorrisos pela frase do
discípulo viciado em fazer perguntas e dar opiniões, o mestre
diminui o tom de voz e fez alguns pedidos emocionados:
— Rogo aos inteligentes estilistas que amem as mulheres,
todas elas, que invistam na saúde psíquica delas não utilizando
apenas a exceção genética para expressar sua arte. Poderão perder
dinheiro, mas terão ganhos insondáveis. Vendam o sonho de que
toda mulher tem uma beleza única.
Algumas pessoas o aplaudiram, inclusive três modelos
internacionais que estavam do meu lado direito. Mais tarde,
ficamos sabendo que as modelos eram expostas a diversos
transtornos psíquicos. Elas tinham dez vezes mais chances de ter
anorexia do que a população em geral. O sistema as entronizava e,
ao mesmo tempo, as encarcerava. Em pouco tempo, eram
descartadas.
Três pessoas o vaiaram. Uma delas jogou uma garrafa
plástica de água no seu rosto, abrindo-lhe o supercílio esquerdo,
produzindo um evidente sangramento. Pegamos no seu braço e
queríamos que interrompesse sua fala, mas ele não se intimidou.
Limpando o sangue com um velho lenço, pediu silêncio e
continuou. Pensei comigo: ”Há muitas pessoas que escondem o
que pensam debaixo do manto da sua imagem social; eis que sigo
um homem que é fiel a suas idéias”. Em seguida ele fez uma
proposta que nos deixou arrepiados:
— Noventa e sete por cento das mulheres, em algumas
sociedades modernas, não se vêem belas. Por isso, em cada loja de
roupa e em cada etiqueta deveria haver uma tarja semelhante à da
advertência contra o cigarro com frases como esta: ”Toda mulher é
bela. A beleza não pode ser padronizada”.
Essas palavras tiveram grande destaque na mídia. No exato
momento da proposta, um jornalista o fotografou em um ângulo
que pegou a metade superior do seu corpo e, no fundo, a
logomarca da cadeia internacional de roupas do grupo Megasoft.
Ao ouvir suas idéias, eu não conseguia deixar de fazer a velha
pergunta para mim mesmo: ”Quem é esse homem que faz
propostas revolucionárias? De onde provém seu conhecimento?”.
Em conversas reservadas, ele nos dizia que, um século após
Abraham Lincoln ter libertado os escravos, Martin Luther King
estava nas ruas das grandes cidades americanas lutando contra a
discriminação. A discriminação demora horas para ser construída,
mas séculos para ser destruída.
Foi incisivo ao afirmar para os presentes que os fenômenos
fundamentais da existência jamais poderiam ser padronizados.
Sexo, o sabor dos alimentos, o apetite, a arte, bem como a beleza,
não poderiam ser classificados.
— Qual é a freqüência normal das relações sexuais? Todos os
dias? Uma vez por semana? Uma vez por mês? Qualquer
classificação geraria graves distorções. O que é normal, senão
aquilo que satisfaz a cada ser humano? O que satisfaz senão
aquilo que é suficiente?
Uma belíssima modelo internacional, chamada Mônica,
profundamente tocada com seu discurso, o interrompeu e teve a
ousadia de dizer publicamente:
— Eu só sabia desfilar, desfilar. Meu mundo eram as
passarelas. Fui fotografada pelos melhores fotógrafos
internacionais. Meu corpo foi estampado nas principais capas de
revistas. Fui atirada ao alto pelo mundo fashion, mas o mesmo
mundo que me exaltou me expeliu quando ganhei cinco quilos.
Hoje tenho bulimia. Ingiro alimentos compulsivamente, em seguida
sofro uma descarga de sentimento de culpa e ansiedade e, por fim,
provoco vômitos. Minha vida é um inferno. Não consigo sentir o
sabor dos alimentos. Não sei mais quem sou nem o que amo. Já
tentei três vezes o suicídio.
Não havia lágrimas em seus olhos, pois elas tinham se
esgotado. O mestre, ao observar o sofrimento da modelo, respirou
profundamente duas vezes. Sentiu que era necessário se calar,
percebeu que a experiência de Mônica era mais eloqüente que as
suas palavras. Mas antes queria vê-la sorrir. Saiu do estado da
reflexão para o do humor. Relaxado, solicitou:
— Quando as mulheres estão diante do espelho, dizem uma
famosa frase, ainda que sem consciência. Qual é? — As mulheres
responderam coletivamente: ”Espelho, espelho meu, existe alguém
mais bonita do que eu?”. Não! Elas dizem assim: ”Espelho, espelho
meu, existe alguém com mais defeitos do que eu?”.
A multidão sorriu. Mônica deu uma bela gargalhada; fazia
cinco anos que não ria desse modo. Era o que ele desejava: venderlhe
o sonho da alegria. Foi um ensaio sociológico admirável. Foi a
primeira vez que vi o bom humor florir no caos.
Bartolomeu se aproximou do mestre e disse:
— Chefinho, não vejo defeito em mim quando me olho no
espelho. Será que tenho problema?
— Não, Bartolomeu. Você é lindo. Olhe seus amigos. Não
somos maravilhosos?
Boquinha de Mel deu uma olhada geral no grupo de
discípulos.
— Chefinho, não force a barra. A família é meio desarrumada.
Demos risadas e saímos. Nunca nos sentimos tão belos, pelo
menos aos nossos olhos.

Chamando uma modelo e uma revolucionária

Durante a saída do mestre, Mônica nos acompanhou, e lá
fora expressou um profundo agradecimento. Deu-lhe um abraço
afetuoso e um beijo no rosto. Morremos de inveja.
O mestre olhou para ela e inesperadamente tomou a mais
fantástica atitude:
— Mônica, você brilhou nas passarelas da moda, mas eu a
convido para desfilar em outra passarela, mais difícil de transitar,
mais complexa de se equilibrar, mas mais interessante de viver. Eu
a convido para vender sonhos conosco.
Mônica ficou perplexa, sem saber o que responder. Já havia
lido algumas matérias sobre o enigmático homem que lhe fizera o
convite, mas não tinha nenhuma segurança de onde estaria
pisando. Ao ouvir o chamamento da encantadora modelo, nós, que
havíamos rejeitado a entrada das mulheres no time, ficamos
animadíssimos. Mudamos nossa posição. Imediatamente
concordamos com o mestre que as mulheres não apenas são mais
inteligentes que os homens, mas também muito mais bonitas.
Vendo-nos entusiasmados, o mestre se retirou. Foi conversar
com uma pessoa que estava a cerca de vinte metros do grupo.
Coube a nós explicar para a novata o mundo fascinante dos
sonhos. Sem dúvida a convenceremos, pensamos. Explicamos,
explicamos e demos mais e mais explicações. Parecíamos um
bando de cachorros vira-latas na época do cio.
Vendo que Mônica não se entusiasmara, o Milagreiro se
retirou para orar. Não queria cair em tentação. Mão de Anjo estava
eufórico, não conseguia articular as palavras, mas tentou fazer
uma poesia para atrair a modelo. Disse:
— Uma vida sem.... só... sonhos é... é... como um inverno
sem... neve, um oceano sem... sem... ondas. — Achou que estava
abafando, mas a estava sufocando.
Mônica nunca vira um bando de lunáticos como aquele,
sujos, malvestidos, esquisitos, querendo cativá-la a qualquer
custo. Suas dúvidas aumentaram. Afinal de contas, parecíamos
um enxame de abelhas rodeando uma rainha. Enquanto
falávamos, Mônica olhou levemente de lado e observou várias vezes
o mestre ouvindo atentamente a pessoa que com ele conversava.
Depois de meia hora de conversa, a modelo parecia estar querendo
cair fora. Infelizmente, o Boquinha de Mel entrou em ação:
— Mônica querida, vender sonhos é a experiência mais
maluca que já vivi. Nem quando estava curtido na vodca delirava
tanto - falou, assustando a moça e dando mais uma vez um
tremendo fora. Temendo as conseqüências das suas palavras,
novamente o repreendemos.
— Finja que você é normal, Bartolomeu!
Mas ele não sabia dissimular; era o que era. Entretanto, algo
inesperado aconteceu. Enquanto falávamos das maravilhas de
vender sonhos, Mônica rejeitou o caminho, mas quando
Bartolomeu falou da loucura do projeto, ela se animou. Queria algo
mais excitante que o mundo das passarelas. Ficou pensativa, mas
não havia ainda decidido fazer a experiência sociológica.
Em seguida o mestre apareceu. Mônica o interpelou:
— Mestre, conheço o homem com quem você conversava.
— Que bom! Ele é uma pessoa fascinante — disse ele
efusivamente.
— Ele é surdo-mudo e não sabe a libras — comentou a
modelo, desconfiando da sabedoria do mestre. Se o surdo não
sabia a linguagem brasileira dos sinais, não era possível que se
comunicasse. Ficamos calados. Depois de sua afirmação, era
previsível que não o seguiria.
— Eu sei — respondeu o mestre. — Por isso raramente
alguém dá atenção para ele e rompe o claustro da sua solidão. Eu
ouvi o que as palavras não disseram. Você já gastou tempo
perscrutando-o? — Ela emudeceu como o surdo. Ele se retirou,
deixando-a maravilhada.
Mônica foi impelida a percorrer a jornada, a fazer a
experiência de segui-lo, mas, a pedido do mestre, dormiria em
casa. Não sabia sobre as noites de insônia que a aguardavam.
No dia seguinte, o homem que seguíamos estava estampado
não apenas no jornal do grupo de comunicação Megasoft, mas
também nos principais jornais da cidade. Até nos noticiários
televisivos. Suas idéias causavam um enorme impacto. Alguns
jornais já o chamavam pelo nome de que ele gostava: ”Vendedor de
Sonhos”. Diziam que ele havia virado de cabeça para baixo o
mundo fashion.
Alguns jornalistas, hiperpreocupados com a implosão da
auto-imagem na juventude descrita por ele, falaram sobre a
síndrome de Barbie e concluíram coisas que extrapolavam o que
ele dissera. Disseram que ele bradara aos quatros ventos que
muitas adolescentes pareciam um bando de maluquinhas por
estarem sempre insatisfeitas com a anatomia do seu corpo, por
sempre acharem um defeito na face e por se tornarem especialistas
em reclamar continuamente que as roupas não lhes caíam bem.
Jovens que não gostavam de ler jornais sentiram-se
despertados pela matéria. Alguns a levaram para a escola, e ela
passou de mão em mão. Muitos meninos e meninas, ao lerem o
texto jornalístico, relaxaram, pois estavam tão agoniados com os
”defeitos anatômicos” que enxergavam em si mesmos que
começaram a dar risada da sua ”paranóia”. Sentiram que a
matéria abordava conflitos quase intocáveis na escola. A partir daí
o ímpeto brigante de alguns jovens começou a despertar.
Começaram a criticar o sistema social e desejaram conhecer de
perto as idéias desse misterioso vendedor de sonhos.
Mônica nos encontrou na tarde desse dia e comentou a
repercussão da matéria em seu meio. Disse que alguns estilistas
amigos seus e algumas lojas tinham comprado as idéias do mestre
e começariam a propagandear que a beleza não poderia ser
padronizada, pelo menos não maciça e intensamente.
Ao ver a modelo mais entusiasmada, resolvemos contar a ela
as inúmeras aventuras que tivéramos nos últimos meses. Ela ficou
embasbacada. Nunca vira tanta adrenalina num grupo tão
incomum. Uma semana depois desses fatos, o mestre novamente
se reuniu conosco e colocou em pauta o desejo de chamar mais
uma mulher para o projeto.
Considerando a portentosa anatomia de Mônica, achávamos
que ele poderia chamar não mais uma, mas duas, três ou dez
mulheres. ”Como mudamos de opinião!”, pensei. Eu, que sempre
criticara os políticos que num dia eram inimigos ferrenhos uns dos
outros e noutro, amigos fraternos, comecei a perceber que essa
flutuação era uma doença inerente ao psiquismo humano, em
especial o dos machos. Só dependia do nível de interesse em jogo.
Nuns a flutuação era visível, noutros, era submersa.
Após o mestre colocar o seu desejo, olhou para o alto e depois
para os lados, colocou as mãos no queixo e começou a se afastar
de nós. Estava pensativo. Perguntava baixinho para si mesmo,
mas ainda de maneira audível:
— Que mulher chamarei? Com que características?
O mestre estava a vinte metros de distância do grupo,
andando em círculos no saguão de um shopping em que nos
encontrávamos. De repente, quando estávamos felicíssimos com a
proposta da entrada de mais mulheres para o grupo, apareceu
uma senhora idosa e deu uma bengalada suave na cabeça do
Boquinha de Mel. Era dona Jurema.
Ela brincou conosco, dizendo:
— Como estão, filhos?!
— Tudo bem, dona Jurema. Que bom revê-la! — dissemos
com educação.
Em seguida, o grupo dos homens olhou para o pensativo
mestre e depois para a velhinha e teve o mesmo e terrível insight:
”É melhor afastar a velhinha rapidíssimo, porque ela pode estar na
linha de fogo para ser chamada”.
De repente, o mestre, com o olhar voltado para a calçada do
lado oposto em que estávamos, soltou a voz, dizendo para si
mesmo novamente:
— A quem vou chamar? — Sentimos um calafrio na espinha.
Tentamos esconder dona Jurema. Precisávamos nos desfazer dela.
— O sol está... escaldante. A senhora pode se desidratar, está
suando. Vá para... casa — disse Dimas, o manipulador de
corações, tentando não gaguejar. Mas ela insistia em ficar.
— O tempo está ótimo, meu filho — disse com segurança.
Temendo que o mestre se aproximasse, Edson pegou
delicadamente no braço dela e a afastou da linha de fogo.
— A senhora parece muito cansada. Nessa idade é preciso
repousar.
— Sinto-me ótima, meu filho. Mas obrigada pela sua
preocupação — agradeceu dona Jurema.
Eu também fiz minhas tentativas. Tentei lembrá-la de algo
que pudesse ter esquecido: um compromisso, uma visita para
fazer, uma conta para pagar. Mas nada. Ela me disse que estava
tudo em dia.
Monica não entendia nossa preocupação com dona Jurema.
Achou-nos solidários demais, um tanto artificiais. Bartolomeu, que
sempre fora o mais honesto de todos nós, deu mais uma
derrapada. Vendo que ela não tomava o rumo de casa, apelou.
Eriçou a sobrancelha e lhe disse:
— Querida, linda e maravilhosa Jureminha. — Ao ver o
carinho do Boquinha de Mel, ela se derreteu. Tremulou os cílios.
Vendo que a cativara, ele se empolgou. Disse uma asneira: —
Sinto dizer-lhe que você está vermelha como um peru. Acho que
vai enfartar. Vá urgente para um hospital.
Salomão tentou, como outrora eu fizera, tapar a bocarra de
Bartolomeu, mas não deu tempo. Porém, dona Jurema fez melhor.
Puxou o pescoço dele com a bengala e lhe disse uma frase que
acabou também se tornando patrimônio cultural do bando:
— Bartolomeu, de boca fechada você é insubstituível.
Morremos de rir. Mas dona Jurema ficou incomodada, percebeu
que escondíamos algo. Para mostrar seu imenso vigor, embora
tivesse mais de oitenta anos e sua memória estivesse um pouco
afetada devido ao início da doença de Alzheimer, fez algumas
flexões e nos pediu para acompanhá-la, mas não conseguíamos.
Deu uns saltos de bale clássico e nos pediu para repeti-los. Demos
vexames: atabalhoados, quase caímos. Estávamos enferrujados.
Ela afirmou:
— Vocês são uns velhotes. Estou novíssima! Minha saúde é
ótima! Cadê o guru?
Guru? Pensei. O vendedor de sonhos não gostava nem de ser
chamado de mestre, quanto mais guru. Dissemos que ele estava
com problemas, tinha um compromisso, não podia falar-lhe agora.
Tentamos esconder a imagem do mestre, mas ela o procurava
entre um corpo e outro. Nesse momento, Monica já tinha
desvendado a farsa. Descobriu que éramos uma turma de
endiabrados com pequenas possibilidades de redenção. Estávamos
num árduo processo de transformação.
Dona Jurema gritou mais alto ainda:
— Cadê o guru?
De repente, ouvimos o vozeirão do mestre, que fez tremer
nossa musculatura:
— Que bom revê-la, magnífica senhora. — Em seguida fez o
que mais temíamos: — Eu a convido para vender sonhos!
Monica se esborrachou de rir, e nós nos atolamos de
apreensão. Não sabíamos onde enfiar a cara. Entramos numa
árida zona de desconforto, aprisionados em nossos conceitos.
Saímos de lado e começamos a cochichar, indagando uns aos
outros: ”O que a sociedade irá pensar de nós, um bando de
excêntricos seguido por uma senhora idosa? Vai ser cômico.
Seremos motivo de piada até nos jornais. Como será conviver com
ela? Ela deve ser lenta demais. Esperá-la não será um tormento? E
o cheiro dela? Será que ela usa dentadura? E a flatulência, quem
suportará? Já não bastam os gases do Bartolomeu?”.
Depois da silenciosa conferência da confraria, sentimos que a
experiência sociológica iria sofrer uma grave decadência. O mestre
observava pacientemente nossa insanidade. Dona Jurema
conversava com Monica. Ela não entendera o chamamento do
mestre. Monica ensaiava explicar, mas ainda era novata, estava
confusa. Não sabia que com a caminhada ficaria mais confusa
ainda.
Dona Jurema, honesta, nos chamou à parte e disse-nos:
— Eu nunca vendi nada. Que tipo de produto é esse?
O mestre foi conversar com Mônica e deixou-nos livres para
explicar para ela o projeto. Tivemos, assim, uma oportunidade de
ouro para desanimar a velhota. Cá com meus pensamentos, fiquei
imaginando se o mestre não tinha visto dona Jurema primeiro que
nós e não estava mais uma vez nos testando, procurando
desvendar as artimanhas e sutilezas da nossa mente.
Tivéramos uma experiência fantástica no asilo,
descobríramos a grandeza dos idosos, mas insistíamos em carregar
o preconceito contra eles. Estávamos convictos de que a velhinha
não acompanharia a movimentação do grupo, diminuiria seu
status, debelaria seu ímpeto revolucionário. Pensávamos que, com
ela, o mestre teria de ser mais brando, conteria a força das suas
idéias.
Falamos honestamente com dona Jurema sobre a aventura
dos sonhos. Afinal de contas, mesmo quando nossos interesses
eram contrariados, estávamos aprendendo a ser transparentes.
Mas, para dissuadi-la, enfatizamos os perigos que atravessávamos,
as calúnias, as difamações, as feridas, o espancamento vivido pelo
mestre.
Ela nos ouviu atentamente. Respondia sempre: ”Hum!”.
Arrumava os cabelos brancos, como se quisesse massagear o
cérebro inquieto. Tínhamos certeza de que a estávamos deixando
mais insegura do que já era. Salomão fazia os rituais mais
esquisitos que já expressara. Anunciando maus presságios, fazia o
sinal-da-cruz várias vezes. Mergulhava o pescoço no ar e dizia:
— To ficando arrepiado de tanto medo dos perigos.
Fiz sinal para que Bartolomeu ficasse quieto dessa vez,
porque estávamos indo bem. Mas, sem pensar duas vezes, ele
disse:
— É muito arriscado seguir esse homem, Jureminha. — E
usando uma voz trêmula, como nos filmes de terror, acrescentou:
— Podemos ser presos! Há risco de morrermos! Podemos ser
seqüestrados, agredidos, torturados.
Sentimos que dessa vez ele foi mais apropriado, sem saber
que quanto mais passasse o tempo mais essas palavras se
tornariam uma espécie de profecia. Dona Jurema arregalou o olho
direito, fechou o esquerdo, parecendo abismada sob as labaredas
do pavor. Quando estávamos convictos de que desistiria, foi ela
que nos assustou:
— Fantástico! — Entreolhamo-nos, sem entender a
expressão.
— Fantástico o quê, dona Jurema? — perguntei,
curiosíssimo, pensando que devido a algum comprometimento
cerebral ela não entendera quase nada do que falávamos. Mas,
para nossa surpresa, ela enfatizou:
— Tudo o que vocês me disseram é fantástico. Eu topo ser
uma caminhante, aceito entrar no grupo! Sempre fui
revolucionária como aluna, e depois como professora universitária,
mas fui castrada, dominada pelo sistema educacional. Tinha de
seguir uma agenda de que discordava, um conteúdo programático
que não formava pensadores.
Nossa confraria ficou abalada. Não conseguíamos respirar. Já
não bastava a misteriosa identidade do mestre, agora estávamos
diante uma senhora carregada de segredos. Alguns de nós
fungamos, perturbados com a personagem. Eu tentava conter o
suor do rosto. Ela, mostrando uma lucidez invejável, acrescentou:
— Sempre quis vender sonhos, instigar mentes, mas fui
silenciada. Aborreço-me diariamente ao constatar que a sociedade
atual possuiu um rolo compressor que massifica o intelecto dos
jovens, aborta o pensamento crítico e os torna estéreis, meros
repetidores de dados. O que fizeram com nossas crianças? —,
indagou, indignada.
Perguntei-lhe qual era seu nome inteiro.
— Jurema Alcântara de Mello — disse com simplicidade.
Após ouvir seu nome, afastei um pouco, mais chocado ainda do
que já estava. Descobri, então, que dona Jurema era uma
antropóloga de renome e fora uma professora universitária de
altíssimo nível. Fizera inclusive pós-doutorado em Harvard. Tinha
reconhecimento internacional. Escrevera cinco livros em sua área,
que foram publicados em diversas línguas.
Recostei-me no poste que estava ao meu lado. Recordei que já
lera diversos artigos que ela escrevera, inclusive todos os seus
livros. Ela tinha sido muito importante na minha formação.
Admirava seu raciocínio esquemático e a sua ousadia. Mas
minutos atrás eu queria excluí-la do ninho. ”Miserável preconceito!
Quem me livrará desse câncer intelectual!”, pensei intimamente.
”Sonho em ser uma pessoa aberta e desprendida, mas sou
incontrolavelmente resistente.”
Revelando uma sintonia fina com o mestre, a professora
Jurema comentou que as sociedades, apesar das exceções, haviam
se tornado canteiros de mentes conformistas, que não se
inquietam diante da complexidade da existência, sem grandes
ideais, que não questionam quem são. E arrematou dizendo:
— Precisamos instigar a inteligência das pessoas.
Meu mestre sorriu, feliz da vida. Deve ter pensado: ”Acertei
na mosca”. Dona Jurema era mais revolucionária que todos nós.
Com o avanço da idade, ficara mais turbinada. Todavia, logo que
aceitou caminhar conosco, começaram os problemas. Como era
idosa e dotada de notável coragem, não tinha papas na língua.
Começou a ter atitudes que Mônica não teve. Chegou diante do
mestre e, com a maior segurança, lhe deu uma chacoalhada, e
além disso criticou o comportamento do grupo:
— Ser um bando de excêntricos que vendem sonhos está
certo, mas ser um bando de imundos e desmazelados é um
absurdo.
Opa! Ficamos zangados com ela. Mas a professora, vendo
nossa cara azeda, não afinou. Elevou o tom da pressão:
— Chamar um grupo de extravagante para aprender a ser
solidário é louvável, mas não se importar se esse grupo cheira mal,
não tem asseio nem higiene, é uma afronta ao bom senso.
Depois da bronca dela, o mestre se calou. Mas Dimas não
suportou ficar calado. Gaguejando, disse:
— Jureminha... pega leve - expressando uma intimidade que
só Bartolomeu se atrevera a ter.
Ela não deixou por menos. Aproximou-se dele, cheirou seu
corpo várias vezes e retrucou:
— Pega leve? Você cheira a ovo podre.
Bartolomeu tirou-lhe o sarro. Os dois viviam se atarracando.
— Não disse?! Sou um herói de agüentar o cheiro desse cara!
— e deu uma farta gargalhada. Sorriu tanto que não segurou os
gases. Soltou uma trovoada sonora.
Dona Jurema o repreendeu:
— Você não tem vergonha na cara? Saia fora do espaço
público para soltar seus flatos. Se não der tempo, pelos menos os
silencie.
Tentando brincar com fogo, ele lhe disse:
— Qual é a técnica para silenciar meu escapamento? Ela o
repreendeu:
— Dá um tranco nele, seu esdrúxulo.
Bartolomeu ficou constrangido. Não sabia o significado da
palavra ”esdrúxulo”. Entusiasmado, ele lhe disse:
— Thank you pelo esdrúxulo — e mexeu com as mãos
querendo uma dica, sem saber se ela o elogiara ou o ofendera.
Estávamos preocupados. Olhamos para o mestre e
começamos a perceber que o novo membro da família nos faria
entrar literalmente numa fria, num banho gelado, inclusive ele.
Pela primeira vez o vimos cocar a cabeça, sem ação. A professora
era revolucionária, mas equilibrada. Olhou para o mestre e fez o
que jamais pensamos que alguém tivesse a ousadia de fazer com
ele. Confrontou-o:
— Mestre, não venha com a história de que Jesus chamou de
hipócritas os que limpavam o exterior do copo, mas esqueciam de
limpar o interior. Sim, devemos enfatizar a higiene interior, mas
sem desprezar a exterior. Seus discípulos banhavam-se no Jordão
e nas casas onde eram hospedados. Mas olhe para você! Observe o
grupo que o segue! Há quanto tempo não tomam um banho digno?
Exóticos sim, mas fétidos não.
Nós tomávamos banhos em banheiros públicos, mas não na
freqüência e na intensidade recomendável. Cocei as orelhas para
ver se estava ouvindo direito. O mestre não argumentou nada,
simplesmente meneou a cabeça, concordando com ela. Ele nos
ensinara muitas lições, e a maior delas era ter humildade para
aprender.
Não bastasse isso, a professora se dirigiu para Edson e teve a
petulância de lhe pedir que abrisse a boca. Com um sorriso
amarelo, ele o fez. Sentimos que o mestre se arrependeu da
escolha como um relâmpago. Ou não! ”Será que não era uma
discípula com essas características que ele procurava?”, pensei.
— Meu Deus, que odor! Precisa fazer higiene bucal.
Dei risada, mas com lábios cerrados. Ela percebeu e me deu
uma alfinetada:
— Por que está sorrindo, seu almofadinha com cara de quibe
cru?
A professora não poupou ninguém, exceto Mônica, que viveu
seus melhores dias líricos. Sentiu-se que éramos um circo
ambulante. Dona Jurema não dormiria conosco — nem poderia,
pela sua idade. Ela e Mônica retornariam para casa e se reuniriam
conosco pela manhã.
Para finalizar o dia do seu chamamento, a senhora nos
convidou para tomarmos banho na sua casa e depois jantarmos
juntos. O vírus do preconceito, que estava adormecido, novamente
despertou. Olhamos uns para os outros e pensamos que, pela
idade que tinha, pela aposentadoria minguada de professora, pelos
gastos com remédios e médicos, a situação financeira dela não
seria muito melhor que a nossa. Sua casa não comportaria a
todos. Não deveria ter funcionária doméstica. Até sair esse jantar
seria meia-noite.
Após fazer a oferta, a professora deu um assovio.
Perguntamos o porquê do assobio. Ela disse que estava
chamando o motorista.
Dimas falou, discreto:
— Deve ser o motorista de ônibus.
O motorista não deu sinal de vida. Ela deu outro assobio,
mais alto, e nada.
— ”Motorista” é o nome do cachorro dela — disse Bartolomeu.
Como não sabia falar baixo, Jurema escutou. Olhou a meio mastro
para ele, coçou o nariz com sua bengala, mas, em vez de cutucá-lo,
parece que se divertiu com sua cachorrice.
— Já pensou todo mundo lotando um fordinho que acabou de
sair de um museu? — falou Edson, que era o mais espiritual, mas
não dispensava mordomias.
O grupo era engraçadíssimo. Em poucos meses eu me
divertia mais do que em toda a minha vida, mesmo quando
”apanhávamos”. O mestre nos propiciava esse clima. Mônica
também se sentia numa festa. Fora muito rica, mas perdera muito
dinheiro com luxos e ações de companhias que faliram.
Andando no grupo, estava conseguindo o que os mercados de
capitais não ofereciam.
De repente, estacionou um carro enorme, belíssimo, de cor
branca, que quase passou em cima do pé de Bartolomeu. Um
motorista ricamente trajado disse:
— Desculpe-me, madame. Demorei porque tive problemas
para estacionar.
Ficamos boquiabertos. Que amor de discípula!,
imediatamente pensamos.

As borboletas e o casulo

Jurema era viúva de um milionário. Mas era desprendida da
necessidade de mostrar sua riqueza. Às vezes dispensava carros,
motorista, roupas de grife e outras benesses que sua fortuna podia
lhe propiciar. Vivia com suavidade. Nós, por alguns momentos, nos
fascinamos com essas benesses. Jamais havíamos andado num
veículo tão luxuoso. Estávamos encantados, mas o mestre, um
pedestre que parecia que nunca dirigira um carro, seguia
indiferente. Pediu o endereço para a professora e disse que iria a
pé. Precisava meditar. Como sempre, procurava a companhia de si
mesmo.
Duas horas depois, ele chegou. A milionária já tinha passado
rapidamente numa loja e comprado algumas roupas para a turma.
Parecíamos civilizados novamente. Já havíamos tomado banho e
estávamos petiscando deliciosos queijos e frios. A coisa era tão boa
que havíamos esquecido que o sistema tem coisas maravilhosas.
Boquinha de Mel estava tão faminto que usava as mãos para pegar
os petiscos, em vez de palitos de aço. Salomão não conversava, só
tinha tempo para comer. Engraçado que, ao observá-lo, percebi
que seus tiques e manias haviam diminuído muito. Não sabia se
era a fome ou uma melhora consistente.
Dimas, enquanto lotava a boca de queijo, parecia um rato
observando objetos caros em cima das cristaleiras, bem como os
belíssimos quadros afixados nas paredes. Acho que, se não tivesse
sido fisgado pelo mestre e por seu projeto, teria feito uma limpeza
na casa. Mônica comia discretamente. Estava tão feliz em
participar do ninho que nada a distraía muito. Nunca imaginei que
pessoas tão bonitas vivessem pesadelos tão grandes.
O mestre foi introduzido na sala central, que tinha cento e
cinqüenta metros quadrados de espaço, dividida em cinco
ambientes. Seus olhos não se cativaram pela luxuosa mansão da
professora. Ela gostou da sua reação — estava cansada de gente
que bajulava a sua casa, mas não a enxergava. Em seguida, foi
tomar um agradável banho e recebeu algumas roupas novas.
Quando todos começávamos a desfrutar do saboroso jantar, o
vendedor de sonhos lhe fez um pedido.
— Fale-nos um pouco da história do seu falecido marido. Ela
ficou admirada, pois as pessoas não perguntam muito sobre os
mortos, não querem causar constrangimentos. Mas ela amava falar
sobre ele; sempre o admirara. Relatou seus tempos de juventude, o
namoro, o casamento. Depois comentou sobre sua amabilidade,
audácia e intelectualidade. O mestre disse duas vezes:
— Grande homem! Foi também um vendedor de sonhos. Em
seguida, ela mencionou que seu marido fora diretor-presidente de
uma das companhias do imponente grupo Megasoft, que era
formado por mais de trinta empresas. Pensávamos que o mundo
dos negócios não interessaria ao mestre, mas inesperadamente ele
perguntou:
— Como enriqueceu?
Para contar a história financeira do marido, ela teve de
relatar brevemente a história do presidente do grupo Megasoft.
Contou que um pai, proprietário de uma importante empresa,
falecera e deixara uma fortuna para seu filho, um jovem de vinte e
cinco anos. O jovem tinha uma mente privilegiada e era dotado de
notável capacidade de empreender e liderar. Superou largamente o
pai. Abriu o capital da empresa que recebera de herança e, com o
dinheiro das ações, expandiu os negócios e, pouco a pouco,
investiu nas mais diversas atividades do mundo corporativo.
Investiu em petróleo, cadeias de lojas de roupas, meios de
comunicação, indústria de informática, indústria eletrônica,
hotelaria. Em quinze anos, construíra o grupo Megasoft, que se
tornou uma das dez maiores corporações do mundo.
Ela comentou que, na abertura de capital, ele dera
oportunidade para todos os funcionários comprarem ações. Seu
marido se tornou um acionista minoritário da companhia que o
jovem presidia. Com o estrondoso crescimento do grupo, ganhou
muito dinheiro. Ao ouvir essa história de dona Jurema, fiz um
aparte, dizendo:
— Fazendo eco ao empreendedorismo desse jovem milionário,
lembrei que o maior acionista da minha universidade era
justamente o grupo Megasoft. Depois que ele se tornou
mantenedor da universidade, não faltaram verbas para financiar
pesquisas e teses.
Em seguida, o vendedor de sonhos fez uns questionamentos
para a professora Jurema.
— Você conheceu o jovem que expandiu explosivamente esse
grupo? Ele era livre ou foi prisioneiro do sistema? Sua filosofia era
amar mais o dinheiro que a vida ou mais a vida que o dinheiro?
Quais eram suas prioridades? Que valores o moviam? Tinha ele
consciência da brevidade da existência ou se posicionava como um
deus?
A idosa professora, pega de surpresa, não soube responder,
pois raramente vira o jovem pessoalmente. Era ocupadíssimo,
cortejado por reis e presidentes, enquanto ela era uma simples
professora. Mas disse que seu marido gostava muito dele.
— Segundo os comentários, penso que era uma pessoa
boníssima e educada — disse aos presentes. — Mas depois que
meu marido faleceu, há sete anos, tive poucas notícias dele, a não
ser que havia acontecido uma desgraça em sua família. Parece que
ele teve problemas mentais. Disseram que veio a falecer, mas a
imprensa acobertou o assunto. Dizem que, se estivesse vivo hoje,
teria desbancado antigos magnatas e seria o homem mais rico da
Terra.
O mestre fitou todos nós e disse:
— Estimada Jurema, você foi generosa com esse
megaempresário. Também ouvi falar sobre sua ousadia, sua
história e sua morte. Mas temos a tendência de transformar em
anjos os que silenciaram sua voz; exaltar suas qualidades e
esconder seus defeitos. Alguém que o conheceu intimamente me
disse que ele era ambicioso e não tinha tempo para mais nada a
não ser para aumentar seu capital. O que era mais importante em
sua vida ele colocou no rodapé da sua história.
Consternado, mostrando um ar pesado de quem discordava
do caminho traçado por esse líder, teceu alguns comentários
memoráveis:
— Não lhes peço para abominar o dinheiro, nem os bens
materiais. Essa é temporariamente a nossa situação, mas o futuro
ninguém sabe. Hoje dormimos sob viadutos e temos o céu como
cobertor, amanhã quem pode prever? Peço-lhes, sim, que
entendam que o dinheiro em si mesmo não traz felicidade, mas a
falta dele pode tirá-la drasticamente. O dinheiro não enlouquece,
mas o amor por ele destrói a serenidade. A ausência do dinheiro
nos torna pobres, mas o mau uso dele nos torna miseráveis.
Ficamos pensativos.
— Chefinho, ser um duro feliz é bom, mas com dinheiro é
melhor ainda — filosofou Bartolomeu, tomando uma água de coco,
enquanto nós tomávamos vinho francês e chileno.
O mestre sorriu. Era difícil filosofar para esses ”filósofos” de
rua.
No outro dia, passávamos pelas ruas centrais da cidade. As
pessoas, ao reconhecer o mestre, queriam abraçá-lo. Havia um
brilho nos olhos delas ao vê-lo. Algumas o beijavam. Ele estava se
tornando pouco a pouco mais famoso que os políticos da
sociedade, o que gerava uma sobrecarga de inveja.
Ao ver as pessoas se aglomerarem em torno dele na frente de
um enorme shopping, o mestre subiu alguns degraus da escada
que dava acesso à porta central e começou a fazer um dos seus
fascinantes discursos. Fez uma interpretação filosófica do mais
famoso discurso do Mestre dos Mestres, o Sermão da Montanha.
Ele já tinha nos dito que amava esse texto e concordava com
Mahatma Gandhi que, se todos os livros sacros do mundo fossem
banidos e sobrasse apenas o Sermão da Montanha, a humanidade
não ficaria sem luz.
A plenos pulmões, bradou:
— Felizes os humildes de espírito, pois deles é o reino da
sabedoria. Mas onde estão os verdadeiros humildes, os que se
esvaziam de si mesmos? Onde se encontram os que reconhecem a
sua insensatez? Em que ambiente estão os que corajosamente
admitem sua pequenez e fragilidades? Onde estão os que
combatem diariamente o orgulho?
Após dizer tais palavras, ele se fixou atentamente na
multidão; viu rostos apreensivos, faces ansiosas. Tomou fôlego e
continuou:
— Felizes os pacientes, porque herdarão a terra. Que terra é
essa? A terra da tranqüilidade, os solos do encanto pela vida, o
terreno do amor singelo. Mas onde estão os mansos? Onde estão
os flexíveis? Em que espaços se encontram os que são amigos da
tolerância? Onde estão os que lapidam a sua irritabilidade e
ansiedade? Onde estão os que agem com brandura quando
contrariados ou frustrados? Muitos não são dóceis nem consigo
mesmos. Vivem debaixo de cobranças e autopunição.
A multidão afluía cada vez mais em torno dele. Ele elevou os
olhos para o teto, abaixou-os lentamente e completou a
interpretação da segunda bem-aventurança, invertendo os
pensamentos clássicos de motivação:
— Parem com a necessidade neurótica de mudar os outros.
Ninguém muda ninguém. Quem cobra demais dos outros que de si
mesmo está apto para trabalhar numa financeira, mas não com os
seres humanos.
E imediatamente prosseguiu:
— Felizes os que choram, porque serão consolados. Mas por
que vivemos num mundo onde as pessoas escondem as lágrimas?
Onde estão os que choram pelo egocentrismo que venda nossos
olhos e nos impede de ver o que se passa na psique dos que
amamos? Quantos medos ocultos nunca foram revelados?
Quantos conflitos secretos nunca ganharam sonoridade? Quantas
feridas nós causamos que nunca admitimos?
Enquanto ele falava, as pessoas pensavam. Faziam um
mapeamento nem sempre agradável das suas relações sociais.
— Felizes os pacificadores, pois serão chamados filhos do
Autor da existência. Mas onde estão os que apaziguam as águas da
emoção? Onde estão os mestres em resolver conflitos
interpessoais? Não somos nós peritos em julgar os outros? Onde
estão os que protegem, apostam, se entregam, reconciliam,
acreditam? Toda sociedade implica divisão, toda divisão implica
diminuição. Pacificar não é, portanto, ensinar a matemática da
soma, mas compreender a matemática da subtração. Quem não
compreender essa matemática está apto a conviver com outros
animais e com máquinas, mas não com seres humanos.
Fiquei pasmo com essa assertiva. Eu tinha uma cultura
acadêmica admirável, mas estava pouquíssimo habilitado a
conviver com seres humanos. Tinha cachorros, e não tinha
problemas com eles, pelo menos não reclamavam. Mas conviver
com seres humanos era uma fonte de dificuldades. Eu cobrava
muito. Estava apto para trabalhar em banco. Não compreendia a
matemática da subtração. As pessoas tinham liberdade de pensar,
desde que pensassem como eu. Só então comecei a entender que
viver bem se deve mais à arte de saber perder do que de saber
ganhar. Esperar muito dos outros é um barco furado.
As pessoas se aglomeravam cada vez mais para ouvir o
discurso do mestre. O trânsito parou, gerando uma grande
confusão. Devido ao tumulto, logo ele teve de encerrar sua
explanação. Nesse dia, o mestre escolheu mais alguns discípulos.
Todos tinham características particulares. Ninguém era santo.
Nenhum tinha vocação para ser perfeito.
Muitos começaram a acompanhar o vendedor de idéias por
onde quer que fosse. As pessoas se comunicavam pela internet e
descobriam o seu roteiro. Apesar de ser seguido por muitos, ele
treinava particularmente alguns. Não porque éramos os mais
qualificados, talvez porque fôssemos os mais impenetráveis, os
mais resistentes.

Agora

Três dias depois, ele marcou uma reunião especial; parecia
que iria nos revelar seu maior sonho. Estava interiorizado, parecia
fixo em suas mais cálidas idéias. Levou-nos para um ambiente
calmo, onde a agitação social e sonora quase inexistia. Fez-nos
sentar em meia-lua. Eram sete horas da manhã. O orvalho
gotejava das gramíneas, os primeiros raios solares tilintavam no
horizonte e batiam nas pétalas dos hibiscos, formando uma
espécie de arco de ouro. Alguns pássaros festejavam o alvorecer do
novo dia.
Cada vez mais pessoas se juntavam ao grupo em momentos
especiais. Diferentemente de nós, o grupo mais próximo, elas
tinham sua vida como qualquer consócio da sociedade.
Trabalhavam, tinham família, lazer, atividades sociais. Não
estavam no projeto em tempo integral. Nesse dia, éramos trinta
pessoas. Entre elas, havia trabalhadores braçais, gerentes,
médicos, psicólogos, assistentes sociais. Como o projeto não era
religioso nem o mestre defendia uma religião, havia cristãos,
budistas, islamitas e pessoas de outras religiões.
Para nossa surpresa, ao iniciar a reunião, ele disse pela
primeira vez algo mais claro sobre seu misterioso passado.
— Já tive nas mãos um poder impensável que se estendia por
mais de cem países. Mas houve uma época da minha existência em
que o tempo parou. Perdi o chão. Chorei abundantemente, chorei
inconsoladamente. Por fim me isolei numa ilha no oceano Atlântico
e lá permaneci por mais de três anos. A comida era boa, mas eu
não tinha fome. Só tinha fome de conhecimento. Digeria livros.
Tive acesso a uma das mais espetaculares bibliotecas. Li dia e
noite, como um asmático que procura o ar. Li mais de doze livros
por mês e quase cento e cinqüenta por ano. Livros de filosofia,
neurociência, teologia, história, sociologia, psicologia. Li comendo,
sentado, em pé, andando, correndo. Minha mente parecia uma
máquina que fotografava páginas e mais páginas de conhecimento.
Todo esse conhecimento me ajudou a reorganizar meu passado,
restaurar minhas rotas destruídas. Tornei-me assim o ser humano
que vocês vêem, um pequeno e imperfeito vendedor de sonhos.
Não deu mais explicações. Suas palavras deram-me asas para
que eu viajasse longamente no céu da minha psique. Enquanto o
ouvia declarar algumas peças do seu passado, vi meus amigos
completamente confusos. Do mesmo modo, o quebra cabeça não se
encaixava na minha mente. ”Como ele pode afirmar que seu poder
era grandioso? A que poder se refere? Financeiro, político,
intelectual, espiritual? Parece tão frágil, tão dócil, tão pobre! Ele
come com os miseráveis. Há momentos em que está tenso, mas
sabe administrar sua tensão. Nada exige. Dorme em qualquer
lugar. Suporta agressividade. Protege os que o contrariam. Como
pode alguém que teve muito viver abaixo da linha de pobreza? Será
que esse poder não foi construído no seu imaginário?”
Interrompendo minhas idéias, ele teceu algumas importantes
recomendações:
— O projeto de vender sonhos não confronta com sua
religião, cultura, crença. Aliás, respeitem sua crença, aquilatem
sua cultura, apreciem o passado de sua nação, exaltem a tradição
do seu povo, mas uma mudança eu lhes peço.
E fez uma longa pausa, como se caminhasse lentamente em
direção a sua meta fundamental.
— Peço-lhes que ampliem os horizontes da mente para
respeitar, aquilatar e exaltar acima de tudo sua condição de seres
humanos. Meu maior sonho é que possamos formar uma rede de
seres humanos sem fronteiras em todas as nações, em todos os
povos, em todas as religiões, em todos os meios científicos. Uma
rede de seres humanos que resgate a natureza humana, o instinto
de espécie que perdemos. A humanidade vive num caldeirão de
tensão pela loucura da competição predatória, pelo desrespeito às
regras internacionais do comércio, pelos conflitos sociais, pela
devastação do meio ambiente, pela dificuldade de interiorização e
de retorno às nossas origens. A Revolução Francesa ocorreu há
mais de dois séculos. Falamos dela como se tivesse ocorrido
ontem, mas quando olhamos para o futuro não temos nenhuma
garantia de que nossa espécie sobreviverá mais um ou dois
séculos.
Em seguida, falou do seu modelo. Disse que Jesus contou
mais de sessenta vezes que era o filho do homem. Poucos na
história entenderam o que ele queria dizer. Revelou
paulatinamente que era cem por cento pela humanidade e não
apenas pelos judeus. Ao insistir que era filho do homem, queria
mostrar em código que era filho da humanidade, que era o
primeiro ser humano completamente sem fronteiras. Sua cultura,
raça, nacionalidade eram importantes, mas sua condição de ser
humano era muito mais. Ele se apaixonou pela humanidade num
nível que a teologia não compreende e a psicologia não alcança.
Somente um ser
Humano sem fronteiras poderia dizer que as prostitutas
precederiam ilustres teólogos fariseus. Seu amor foi um escândalo
para seus dias e ainda o é para os nossos. E adicionou
solenemente:
— Tenho milhares de defeitos, cometi mais erros do que vocês
imaginam, mas a psicologia e a filosofia do Mestre dos Mestres é
meu modelo. — E propôs fundar a sociedade dos seres humanos
sem fronteiras, apoiada em apenas quatros princípios: a) acima da
raça, cultura e nacionalidade, enfim, acima de sermos chineses,
americanos, europeus, palestinos, judeus, negros, brancos,
amarelos, devemos nos posicionar como seres humanos sem
fronteiras, que têm o compromisso vital de proteger a espécie
humana e o meio ambiente; b) lutar contra toda forma de
discriminação e apoiar toda forma de inclusão; c) respeitar os
diferentes; d) promover a interação entre povos de diferentes
culturas e crenças.
O mestre sabia muito bem que algumas de suas propostas
estavam nos princípios da Revolução Francesa, na Carta dos
Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, a ONU, e na
Carta Magna de muitas nações. Mas a diferença era que sonhava
em extrair as páginas dessas cartas e imprimi-las nas páginas
psíquicas de um ser humano sem fronteiras.
Nada mais utópico, verbalizei em voz baixa. Mas o mestre leu
meus lábios.
— Você tem razão. Nada é mais utópico, imaginário, virtual,
romântico. Mas retire a utopia e seremos máquinas. Retire a
esperança e seremos servos. Retire os sonhos e seremos
autômatos. Se os líderes empresariais e políticos pensassem como
espécie, dois terços dos problemas da humanidade seriam
solucionados em um mês. E isso não é utopia, um sonho virtual.
Meneei a cabeça sem medo de reconhecer que ele estava
certo. Recordei-me que não poucas vezes me sentia uma máquina
de ensinar para alunos que se colocavam como máquinas de
aprender. Seu semblante estava compenetrado, sua voz estava
mais pausada do que o normal. Era um dia especial para ele.
Parecia que tinha algo ainda importante para falar. Em seguida,
contou-nos a parábola do casulo.
— Duas lagartas teceram cada uma seu casulo. Naquele
ambiente protegido, foram transformadas em belíssimas
borboletas. Quando estavam prestes a sair e voar livremente,
vieram as ponderações. Uma borboleta, sentido-se frágil, pensou
consigo: ”A vida lá fora tem muitos perigos. Poderei ser
despedaçada e comida por um pássaro. E mesmo se um predador
não me atacar, poderei sofrer com as tempestades. Um raio poderá
me atingir. As chuvas poderão colaborar minhas asas, levando-me
a tombar no chão. Além disso, a primavera está acabando, e se
faltar o néctar? Quem irá me socorrer?”. Os riscos de fato eram
muitos, e a pequena borboleta tinha suas razões. Amedrontada,
resolveu não partir. Ficou no seu protegido casulo, mas como não
tinha como sobreviver, morreu de um modo triste, desnutrida,
desidratada e, pior ainda, enclausurada pelo mundo que tecera.
Após essas considerações, ele nos disse:
— A outra borboleta também ficou apreensiva; tinha medo do
mundo lá fora, sabia que muitas borboletas não duravam um dia
fora do casulo, mas amou a liberdade mais dos que os acidentes
que viriam. E assim, partiu. Voou em direção a todos os perigos.
Preferiu ser uma caminhante em busca da única coisa que
determinava a sua essência.
Após contar a parábola, o mestre descortinou suas intenções.
Fez uma breve pausa para ouvir o belíssimo canto que
parecia que o homenageava e fez uma serie de solicitações simples
e profundas. Eram tantas que eu tinha dificuldade de fazer
anotações:
— Chamei-os bem cedo porque os enviarei por dois dias para
vivenciarem os princípios que fundamentam a experiência social
de ser ”um ser humano sem fronteiras”. Vou enviá-los de dois em
dois para o terreno social. Não levem bolsa, dinheiro, cheque,
cartão de crédito, alimentos, nada que lhes dê suporte para
sobreviverem, somente remédios e produtos de higiene pessoal.
Comam o que lhes oferecerem. Durmam na cama que lhes
prepararem. Não discriminem ninguém. Se alguém os rejeitar, não
resistam, tratem-no com brandura. Atuem como socioterapeutas.
Dêem e recebam. Não dominem as pessoas, não defendam sua
crença, não imponham as suas idéias, exalem sua humanidade.
Perguntem, a quem encontrarem pelo caminho, no que vocês lhes
podem ser úteis. Dialoguem com as pessoas, conheçam páginas
secretas, desvendem seres humanos deslumbrantes entre os
anônimos. Não os enxerguem com seus olhos, mas com os olhos
deles. Não invadam sua privacidade, não a controlem, vão até onde
eles lhes permitam. Ouçam-nos humildemente, mesmo os que
pensam em desistir da vida, e os estimulem a eles mesmos se
ouvirem. Se conseguirem ouvir-se, será muito melhor do que
ouvirem vocês. Lembrem-se de que o reino da sabedoria pertence
aos humildes.
Depois de nos dar todas essas recomendações, mostrou um
certo ar de preocupação e nos alertou:
— Vivemos no terceiro milênio. Vender o sonho de ser um ser
humano sem fronteiras nessa sociedade que atingiu o apogeu do
individualismo parece o absurdo dos absurdos. Ser solidário,
generoso e solícito quando os outros pedem já é extraordinário,
imagine quando não pedem. Vocês serão chamados de fanáticos,
doentes mentais, desvairados, proselitistas. Mas se receberam a
mim, também receberão vocês.
Fora isso, não deu regras sobre o modo de abordar as
pessoas e a quem procurar, se ricos, pobres, cultos, iletrados,
moradores do centro, da periferia. Não nos deu mapa. Seus
cabelos revoavam com o vento, e nós pingávamos de suor. A sua
proposta gerou incontestável apreensão. Pensei comigo: ”Isso não
vai dar certo. Seremos mal interpretados. Talvez escorraçados. E se
eu encontrar alguns dos meus colegas professores? O que dirão de
mim?”. Ele complementou:
— Há muitas formas de contribuir para o bem da
humanidade, mas nenhuma delas é uma passagem tranqüila,
nenhuma é realizada sob constantes aplausos. A forma que
proponho poderá gerar mais desconfianças. De manhã poderão ser
famosos, à tarde poderão cair em desgraça. Num momento poderão
ser valorizados, noutro, tratados como escória social. As
conseqüências são imprevisíveis. Mas lhes garanto que, se
superarem as intempéries, sairão muito mais humanos, muito
mais fortes, e como sobremesa entenderão o que os livros jamais
propiciaram. Entenderão um pouco o que milhões de judeus
viveram nas mãos dos nazistas, os cristãos na arena do Coliseu, os
mulçumanos na Palestina, bem como o que os religiosos,
prostitutas, homossexuais, negros e mulheres, sofreram ao longo
da história.
Pensei comigo: ”Soltar Bartolomeu e Dimas para
representarem o mestre sem monitorá-los poderá ser um desastre.
Não é muito diferente de deixar um estudante de medicina fazer
uma cirurgia sem preceptor”. O que o mestre nos pedia era para
fazermos um laboratório social diferente de tudo que estudei em
sociologia. Não era para ir à África com suporte financeiro para
fazer caridade, nem para exercer a filantropia numa instituição,
nem discorrer sobre uma religião ou anunciar um partido político.
Era um retorno puro às nossas origens. Não podíamos levar nada,
nem mesmo nosso prestígio social.
Teríamos de ser apenas seres humanos em conexão com
outros seres humanos.
Franzindo a testa, ele disse que tínhamos uma escolha.
— Encorajo-os a sair do casulo pelo menos dessa vez, mas
ninguém é obrigado a fazê-lo. Os riscos são muitos, as
conseqüências imprevisíveis. A escolha é de vocês, somente de
vocês.
Apesar da apreensão, ninguém foi embora, nem mesmo dois
jovens de dezoito anos que estavam presentes. Como a juventude é
ávida por aventuras, queriam experimentar essa adrenalina.

Friends & Discípulos

Depois da reunião, ele nos enviou e estipulou o horário de
regresso. Cada pessoa pegou quem estava à sua direita como par,
começando por mim. Deu liberdade para que as mulheres
dormissem em casa, mas elas o repreenderam. Discordaram do
seu protecionismo.
— Queremos fazer o laboratório social completo. Optamos por
sair do casulo nesses dois dias — disse Jurema, representando as
mulheres. Entretanto, quatro pessoas pediram desculpas e
desistiram, mas retornariam no dia marcado.
O resultado não poderia ser mais complexo. Fomos
confundidos com ladrões e seqüestradores. Fomos rejeitados,
ridicularizados, ameaçados. Várias duplas tiveram de se explicar
na polícia. Mas apesar de tudo tivemos experiências espetaculares.
Divertimo-nos e aprendemos intensamente. Parecia que não
percorríamos a mesma sociedade, que entramos em um mundo
completamente distinto, o mundo do outro. Todos a uma só voz
disseram que se sentiram completamente inseguros por não
dependerem de dinheiro e cartão de credito. Algumas vezes nos
sentimos como os judeus na Segunda Guerra Mundial ou os
palestinos no Oriente Médio, sem lar, sem pátria, sem proteção,
sem saber se sobreviveriam. Éramos apenas seres humanos e
nada mais. A experiência sociológica evidenciou que estamos
perdendo de fato nossa humanidade. Que, de fato, a escondemos
atrás de nossa ética, moralidade, títulos, status, poder.
Boquinha de Mel foi vender sonhos nos lugares que ele mais
conhecia, nos botecos e boates da vida. Passou inúmeros apuros.
Alguns jogaram vodca no seu rosto, outros o humilharam, outros o
xingaram e ainda outros o enxotaram: ”Vá para lá, seu bêbado!”.
Perdeu a paciência cinco vezes, ameaçou dar bofetadas em dois
alcoólatras. Começou a perceber que não fora fácil o trabalho que
deu para os outros. Dimas era seu par.
Apesar das contrariedades, ajudou a levantar alcoolizados,
ouviu conversas furadas, consolou, apoiou, suportou. Não poucos
lhe disseram que bebiam para não pensar nas perdas, traições,
crises financeiras, mortes na família. Não tinha solução mágica,
mas emprestou seus ouvidos. No fim do primeiro dia, aproximouse
de um homem de meia-idade sentado numa mesa sozinho, e
educadamente disse-lhe:
— Gente fina, não quero incomodá-lo. Só gostaria de saber no
que posso lhe ser útil.
A resposta foi rápida:
— Pague-me mais uma dose de uísque.
Disse que não tinha dinheiro. O alcoólatra deu-lhe um
empurrão e foi grosseiro.
— Então caia fora, senão vou chamar a polícia. Bartolomeu
era um homem robusto. Pegou o alcoólatra pelos colarinhos e,
quando ia lhe dar uma chacoalhada, lembrou-se das
recomendações do mestre.
— Ah, se fossem outros tempos! — disse, irado. Dimas
também ficou indignado.
O bêbado colocou as mãos sobre a cabeça, logo se refez.
Mesmo sem um raciocínio organizado, percebeu que fora
indelicado. Pediu desculpas e os convidou para sentar. Então
chorou por vinte segundos sem dizer o motivo. Os alcoólatras
choram fácil.
Depois se apresentou. Disse que se chamava Lucas e contou
que era um médico cirurgião falido. Havia cometido um erro
médico que não comprometera a vida do paciente, mas o advogado
desse paciente transformou seu erro numa aberração. Processou-o
e, como não tinha seguro, levou tudo o que havia construído em
vinte anos de carreira. Endividado, não conseguia pagar a
prestação da casa, estava para ser despejado. Não conseguiu pagar
as pesadas parcelas do novo carro, que estava com ordem de
busca e apreensão.
— Não chore, amigo. Você pode morar debaixo de pontes —
disse Bartolomeu, angustiando mais ainda o moribundo.
Dimas entrou em ação. Para tentar consolar o médico, contou
parte da sua história, uma história que Bartolomeu desconhecia.
Disse que seu pai ficara preso vinte e cinco anos por assalto à mão
armada. Em seguida sua mãe se envolveu com outro homem e
abandonou a ele, de cinco anos, e à sua irmã, de dois. Foram para
orfanatos separados. Ela foi adotada e nunca mais se viram.
Dimas não foi adotado, pois ninguém queria adotar um menino de
cinco anos de pele escura. Cresceu sem nada, sem pai, sem mãe,
sem irmã, sem afeto, sem estudo, sem amigos.
Bartolomeu se condoeu do amigo e tentou consolá-lo:
— My friend, sempre pensei que você fosse um malandro,
canalha, tapeador e vigarista sem causa. Não o conhecia, cara.
Você é o mais normal dos malucos do grupo!
O doutor Lucas ficou emocionado com sua história. O efeito
do álcool diminuiu um pouco devido ao interesse que a conversa lá
gerou. Ficaram amigos. Conversaram por três horas. Saíram
abraçados e cantando ”O Lucas é um bom companheiro, o Lucas é
um bom companheiro”. Sentiram o prazer de uma amizade
despretensiosa. Entenderam que viver fora do casulo tem seus
inegáveis riscos, mas também seus irrefutáveis encantos.
Foram dormir num quarto no fundo da casa do médico. A
esposa tinha ouvido falar do movimento social dos ”sonhos”.
Preparou-lhes um suculento espaguete ao molho de tomate. No dia
seguinte, ela lhes agradeceu. Fazia seis meses que não via seu
marido animado a enfrentar desafios.
Dimas e Bartolomeu continuaram a jornada. No final da tarde
do segundo dia, encontraram outro alcoólatra em situação
lastimável, agora debruçado sobre o balcão. Bartolomeu parecia
conhecê-lo. Quando ele virou o rosto, confirmou. Era Barnabé, seu
melhor amigo de bares e noitadas. Tinha um metro e setenta e
cinco de altura, pesava cento e dez quilos. Era quase impossível
não vê-lo bêbado e mastigando alguma coisa. O álcool ainda não
conseguira tirar seu apetite. Seu apelido era ”Prefeito”, pois
adorava fazer discursos, discutir política e dar soluções mágicas
para os problemas sociais. Ele e Bartolomeu eram páreo duro no
quesito ”a língua mais incontrolável”.
— Boquinha, você aqui? — gritou Barnabé quase que em
código porque não conseguia pronunciar as palavras.
— Prefeito, que bom vê-lo! — E se abraçaram.
Dimas e Bartolomeu o levaram para uma praça a cinqüenta
metros do local. Ficaram longas horas juntos até diminuir o efeito
do álcool no cérebro do amigo. Após Barnabé ficar um pouco mais
lúcido, disse ao Bartolomeu.
— Eu o vi nos jornais. Agora você é famoso. Está traficando
bebidas. Não, não, desculpa, está dando uma de Papai Noel,
distribuindo presentes de graça. Legal — falou, com a voz pastosa.
E completou: — Hoje você é grã-fino. Não está mais no time dos
boêmios.
Bartolomeu disse que era o mesmo, só mudara um pouco a
maneira de encarar os fatos. E aproveitou que estava com amigos
para contar um pouco da sua história, como o fez o dr. Lucas.
Como Dimas, também fora para um orfanato na infância, mas por
causas distintas.
— Meu pai morreu quando eu tinha sete anos, e o câncer
vitimou minha mãe dois anos depois. Fui levado ao liceu, um
orfanato na periferia da cidade. Fiquei lá até os dezesseis anos, e
então fugi.
Dimas olhou para Bartolomeu, surpreso, e disse:
— Cara, não vai me dizer que você é o ”pé de ouro”. - Esse era
o apelido que Bartolomeu tinha no orfanato, pois era um craque de
futebol. Bartolomeu, impressionado, olhou para o Dimas e também
o reconheceu. Eles tinham a impressão de que se conheciam, mas
tinham sido amigos por pouco tempo. Ficaram juntos apenas um
ano, e só agora, depois de vinte anos, se reencontravam.
— Que bom! A família está reunida de novo. Só eu é que não
tenho ninguém - disse Barnabé; e teve uma vertigem, apoiando o
queixo com os dois punhos sobre a mesa.
Bartolomeu estava condoído pelo amigo. Olhou para o relógio
e viu que estavam atrasados para a reunião com o mestre. Pediu
ao Dimas que fosse na frente. Queria conversar um pouco mais
com Barnabé sobre a nova família.
Eu e a professora Jurema fomos conversar com alunos numa
universidade do lado oposto da minha. Eu provocava a mente
deles. Estimulava-os a desenvolver o método socrático, a construir
projetos existenciais e a expandir o mundo das idéias. Jurema
levantava a voz e os estimulava a se aproximar. Todos ficaram
impressionados com a eloqüência da velhinha. Ela tinha mais vigor
e mais ímpeto que eles. Estavam cansados, abatidos,
desanimados.
De repente, quando menos esperava, encontrei alguns
professores apontando para mim. Fiquei rubro. Eram colegas da
minha universidade que estavam dando um curso justamente no
local onde estávamos. Aproximaram-se dando risadas. Eu podia ler
os lábios deles dizendo uns aos outros que o autoritário
coordenador do curso de sociologia perdera o juízo.
A professora Jurema me disse:
— Enfrente-os. É o desafio de sair do casulo.
Aliás, esse era o preço que eu deveria pagar por ter sido
pouco tolerante. Um professor que não se reciclava, que não
ministrava boas aulas e que se sentia cobrado por mim não
titubeou em dizer:
— Como está a vida de maluco?
Preferi dar meia-volta e tomar outro rumo. Mas a professora
Jurema pegou nos meus braços para tentar acalmar meu ânimo.
Controlei-me, fitei os olhos dele e respondi:
— Estou tentando entender a minha loucura. Quando me
escondia atrás do intelectual, achava que era muito saudável, mas
como hoje sou um caminhante em busca de mim mesmo, sei que
sou mais doente do que imaginava.
Eles ficaram atônitos. Perceberam que eu ainda conservava
meu rápido raciocínio, mas nunca me haviam visto reconhecer um
erro, jamais me viram tendo gestos de humildade. Começaram a se
desarmar.
Aproveitei para fazer aflorar o raciocínio, sem pretensões de
que me entendessem:
— Quem vocês são na essência? Como está o seu prazer?
Têm tido tempo para relaxar? Têm investido em seus projetos
pessoais ou os têm soterrado? Têm se comportado como gigantes
intelectuais ilhados em sua brilhante cultura ou têm sido seres
humanos sem fronteiras que sabem dividir suas dores? Conhecem
a matemática da subtração nas relações sociais? Têm sido
máquinas de ensinar ou têm sido agentes que formam
pensadores?
Sentiram que o maluco que queria se suicidar estava melhor
do que quando discutia com eles nas universidades. Um deles,
Marco Antônio, professor de lógica do conhecimento aplicada à
sociologia, que era o mais culto de todos nós do departamento,
mas cuja didática eu sempre criticara, me elogiou:
— Tenho acompanhado seus movimentos, Júlio, pelos jornais
e pelos alunos. Estou deveras impressionado com sua coragem de
fazer um corte em sua jornada para se reorganizar. Todo mundo,
mais cedo ou mais tarde, deveria fazer tal corte no seu ativismo
para se achar, repensar a sua história.
Falei sobre o projeto dos sonhos. Comentei que não era um
projeto de motivação, de crescimento pessoal, de auto-ajuda, mas
de formação de pensadores humanistas. Era um projeto para
formar ”um ser humano sem fronteiras”.
Pensativo e admirado, o professor Marco Antônio relatou que
estava entediado com o conformismo social e aborrecido com o
pernicioso paradoxo do ”isolamento psíquico versus a massificação
do consumo”. Pedi-lhe mais explicações sobre esse paradoxo, pois
não estava entendendo a dimensão da sua idéia. Ele disse:
— Os seres humanos estão vivendo em ilhas em áreas que
deveriam ser continentes, e em continentes em áreas que deveriam
ser ilhas. Ou seja, deveriam ter participação mútua em áreas como
diálogo, troca de experiências, superação de frustrações, e ser ilhas
em áreas como paladar, estilo de vida, artes, cultura. Mas a
comunicação televisiva, o fast food, a indústria da moda têm
massificado nossos gostos e estilos. Perdemos a individualidade e
cristalizamos o individualismo.
Pensei comigo: ”Esse professor tem um pensamento muito
próximo do mestre”. Em seguida, ele comentou que depois que
Marx lançou O capital, não se viam movimentos sociais novos,
idealistas, utópicos, com propostas interessantes. E nos perguntou
como poderia conhecer a experiência sociológica de ser um ser
humano sem fronteiras. Fiquei feliz em informar-lhe.
Todas as duplas voltaram entusiasmadas. Tiveram atropelos
imprevisíveis, mas vivenciaram feitos notáveis. Feitos que não
expandiam a nossa conta bancária nem nosso status social, mas
resgatavam nossas origens.
Algumas duplas trouxeram amigos e amigas que haviam feito
pelo caminho. Mônica trouxe cinco amigas modelos. Estavam
excitadas em desfilar nas passarelas que desconheciam. Eu e
Jurema trouxemos dois professores e dois alunos. Dimas trouxe o
dr. Lucas e a sua esposa. Salomão trouxe seu antigo psiquiatra,
especialista em transtornos ansiosos, mas que vivia
continuamente depressivo. Fora contagiado pela alegria do seu
paciente. Queria tomar algumas doses desse antidepressivo social.
Cada pessoa falava sem regras e controle. Todos contavam
experiências singelas. Relatavam com euforia o prazer de terem
penetrado nos recônditos da psique dos anônimos. Descobriam o
prazer indecifrável de contribuir para a história dos outros.
Relatavam o júbilo promovido pela solidariedade anônima.
Havia ao todo trinta e oito pessoas ”estranhas” no grupo.
Dentre essas, dois judeus ortodoxos e dois mulçumanos, fora os
que já faziam parte do time. Subitamente, percebemos a ausência
da pessoa mais vibrante, Bartolomeu. Pelas informações de Dimas,
ele estava com seu amigo e em breve chegaria.
O ambiente era tão comovente que improvisamos naquele
local a primeira das muitas festas do projeto. Nela, ricos e pobres,
intelectuais e iletrados, cristãos, mulçumano, judeus, budistas e
ascéticos comiam, dançavam, cruzavam seus mundos sem
preconceitos, A regra era aquinhoar cada um com um pedaço do
seu ser.
Nem em seus delírios filosóficos, Robespierre imaginou que os
três pilares da Revolução Francesa, ”a liberdade, a fraternidade e a
igualdade”, seriam vividos de maneira tão borbulhante por pessoas
tão distintas. O mestre, vendo nossa alegria, disse-nos:
— Jamais seremos iguais em nossa essência, no tecido
intrínseco de nossa personalidade, em nosso pensamento, modo de
reagir, ver e interpretar os fenômenos da existência. O sonho da
igualdade só cresce no terreno do respeito pelas diferenças.
Mas nem todas as duplas tiveram êxito. Meu amigo Edson
enfrentou uma situação complicada. Estava com ambos os olhos
roxos. Parecia ter levado dois tombos ou duas bofetadas.
Estávamos curiosos para saber os fatos. Ele nos contou que,
depois do sucesso de ter contagiado as pessoas com seu altruísmo
e afetividade, alguém o ofendera ostensivamente. Relatou:
— Um homem de uns cinqüenta anos me perguntou se eu
conhecia o Sermão da Montanha. Eu disse que sim. — Edson
reteve a voz. Estava meio envergonhado. Tentando animá-lo,
indaguei:
— Mas isso não é bom?
— Sim, mas o problema é que ele me pediu para recitar
algumas palavras desse sermão, o que fiz com entusiasmo, pois
conhecia de cor os textos. - Edson fez mais outra pausa. Começou
a ficar vermelho. O seu silêncio suscitou a indagação de Dimas:
— Mas isso não é excelente?
— Sim, mas quando cheguei ao trecho em que devemos dar a
outra face, ele me perguntou se eu acreditava nisso. Sem
pestanejar, disse que sim. — E fez a terceira pausa. Estava
constrangido. O mestre o ouvia atentamente. Diante do seu
silêncio, Mônica questionou:
— Mas isso não é maravilhoso, Edson? - Edson diminuiu o
tom de voz.
— Sim, quer dizer, não. Nesse momento ele abriu a palma da
mão direita e me deu uma bofetada na face esquerda. Nunca senti
tanta dor, nunca senti tanta raiva. Meus lábios tremiam, e eu
queria esganar o sujeito. Mas agüentei.
O mestre estava apreensivo com seu heroísmo.
— Parabéns — reagiu a professora Jurema. — Esse é um
verdadeiro milagre. Esse é um milagre da naturalidade. Mas nosso
amigo estava com a roupa rasgada e a face arranhada.
— Qual é o motivo de o olho direito estar roxo também? —
perguntou Salomão.
Foi então que Edson explicou:
— Em seguida, ele me pediu a face direita. Eu não queria dar,
mas quando me dei conta eleja tinha me esbofeteado. Quis agarrar
o sujeito pelo pescoço, mas me lembrei de tudo o que vivemos
juntos. Lembrei do dócil mestre de Nazaré e lembrei do projeto do
vendedor de sonhos. Agüentei. Não sei como, mas agüentei. E ele
zombava de mim. Tinha ouvido falar do nosso projeto e me
chamava de vendedor de bobagens.
As pessoas aplaudiram sua atitude. Mas Edson pediu
paciência para a platéia e disse que falhara. Como assim?
Finalmente ele explicou o incidente:
— Em seguida, ele me pediu novamente a face direita. Fiquei
bufando de raiva. Sabia que Jesus pediu para dar a outra face,
mas não para dar a mesma face duas vezes. Então olhei para o
céu, pedi desculpas e o enchi de porrada. Como ele era mais forte
do que eu, fui surrado também.
Não era o momento para darmos risadas, mas quem
agüentou a cara do nosso amigo? O mestre estava com um sorriso
contido. Não aprovava a violência, mas também não se agüentou.
Em seguida nos deu uma lição inesquecível.
— Ser um ser humano sem fronteiras não é ser ingênuo nem
colocar a vida em perigo desnecessariamente. Lembrem-se de que
eu não os chamei para serem heróis. Não provoquem e muito
menos enfrentem os ofensores. Dar a outra face não é sinônimo de
fragilidade, mas de força. Não é sinônimo de estupidez, mas de
lucidez.
Nesse momento deu-nos uma pausa para assimilarmos suas
idéias. Em seguida continuou:
— Dar a outra face é um símbolo de maturidade e força
interior. Não se refere à face física, mas à psíquica. Dar a outra
face é procurar fazer o bem para quem nos decepciona, é ter
elegância para elogiar quem nos difama, altruísmo para ser gentil
com quem nos aborrece. É sair silenciosamente e sem
estardalhaço da linha de fogo dos que nos agridem. Dar a outra
face previne homicídios, traumas, cicatrizes impagáveis. Os fracos
se vingam, os fortes se protegem.
Edson absorveu essas palavras como a terra seca. A partir
desse episódio, deu uni salto emocional, lapidou sua sabedoria,
alargou as fronteiras da sua mente. Contribuiu muito para o nosso
movimento.
As palavras do mestre penetraram como um raio em todos
nós. Foram tão impactantes que estimularam os judeus ortodoxos
a abraçarem os mulçumanos que estavam presentes. Olhei para
meu amigo, o professor Marco Antônio. Recordei-me também de
que enchera de porrada meus inimigos na universidade.
Nunca aprendi que os que dão a outra face são muito mais
felizes, mais tranqüilos e dormem muito melhor. . Jurema
cochichou em meus ouvidos:
— Dei aulas por mais de trinta anos. Mas tenho de admitir
que formei muitos alunos agressivos, irritadiços, vingativos,
destituídos de solidariedade e sem nenhuma proteção.
Pensei comigo: ”Eu muito mais. Nos meios menos suspeitos,
como as universidades, formamos alguns ditadores. Só lhes falta o
poder”.
Enquanto eu ponderava essas coisas, o ambiente ficou
tumultuado. Apareceu Bartolomeu com Barnabé. Os dois estavam
completamente embriagados. Bartolomeu ficara tão eufórico com o
reencontro de seu amigo que abriu a guarda. Foi tomar umas para
comemorar e encheu a cara de vodca de novo.
Ambos estavam abraçados um ao outro. Trançavam as
pernas ao caminhar e, para não caírem, apoiavam-se um no outro.
Chegaram cantando uma canção de Nelson Gonçalves:
”Boemia, aqui me tens de regresso, e suplicando te
peço a minha nova inscrição. Voltei para rever os
amigos que um dia eu deixei a chorar de alegria”.
Não bastasse a bebedeira, Bartolomeu olhou para a turma e
disse com vibração a frase que mais gostava de proferir:
— Ah! Eu adoro essa vida.
E todos nós reagimos em coro:
— Fecha a boca, Bartolomeu. — E caímos na gargalhada.
Mas ele não fechou. Quase caindo, teve a petulância de investir
contra o projeto do mestre. Olhava para os convidados, e
novamente ficou rubro. Disse que já conhecia essa bandeira.
— O seguinte, chefinho. Esse negócio do ser humano em
fronteiras é antigo. Muito antigo, sabia? — Tentava estalar o dedo
para mostrar essa antigüidade. E completou: — Os alcoólatras já
sabiam disso há muito, muito tempo mesmo. Nenhum alcoólatra é
maior que o outro. Todos eles se beijam, todos eles se abraçam,
todos cantam juntos. Somos sem bandeira. Tá entendendo?
Observei lentamente o vendedor de idéias. Ele investia seu
tempo em nos treinar. Tinha uma paciência de Jó, e agora, no
auge do seu sonho, vinha uma frustração dessas. Ele caminhou
em direção aos dois e os abraçou. E em tom de brincadeira disse:
— Algumas pessoas podem viver fora do casulo para sempre,
outras de vez em quando precisam voltar para casa.
E, além de não estar decepcionado, confirmou a idéia do Boca
de Mel. Incrível!
— De fato, os alcoólatras são seres humanos sem fronteiras,
em especial se não forem agressivos. Por quê? Porque em
determinados casos o efeito do álcool no cérebro bloqueia os
arquivos da memória que contêm os preconceitos, o
prejulgamento, as barreiras culturais, nacionais, sociais. Mas é
melhor e mais seguro fazer essa conquista sóbrio. Por meio da
difícil arte de pensar e escolher.
E, não mostrando nenhum constrangimento, começou a
dançar no meio de todos. Estava animadíssimo. Sabia que
ninguém muda ninguém, a não ser a própria pessoa. Sabia mais
do que todos nós que fora do casulo sempre há imprevisibilidades.
Observando a fraterna atitude do mestre perante os ”alunos”
que fugiam completamente do padrão aceitável, me convenci de
que a grandeza de um mestre está em ensinar os rebeldes e os que
têm dificuldade em aprender, e não os notáveis da classe. Quantos
crimes cometi! Nunca abracei um rebelde ou apostei num relapso.
Chamei a professora Jurema de lado e disse-lhe:
— Sepultei alunos nos porões do sistema educacional.
Jurema, olhando para o espelho da sua história, teve coragem de
também confessar:
— Infelizmente, eu também. Em vez de incentivar a rebeldia
criativa, a intuição, o raciocínio esquemático nas respostas, exigia
precisão das informações. Formamos jovens estressados, tensos,
com instinto de predadores, ansiosos para serem o número um, e
não pacificadores, tolerantes, que se sintam dignos de ser o
número nove ou dez.
Tínhamos a impressão de que depois dessa experiência
saíamos da infância e entrávamos na meninice sociológica. A festa
entrou madrugada adentro. Ficamos bêbados de alegria. Barnabé
foi chamado para entrar para o time dos sonhos. Bartolomeu e
Barnabé se tornaram a dupla mais excêntrica, atrapalhada e
perigosa daqueles ares. Tínhamos dúvidas se eles se regenerariam
ou se nos deixariam mais birutas do que éramos. Mas não
importa, pois também estou aprendendo a adorar essa vida.

O vendedor de sonhos no templo financeiro

A fama do mestre crescia dia a dia, e começava também a
resvalar na elite financeira. Os empresários e executivos tinham
ouvido falar sobre esse homem incomum, e, como eram ávidos por
novos métodos de liderança e novas formas de criatividade, fizeram
chegar a mim um convite para que o mestre lhes desse uma
conferência. Queriam conhecer a mente daquele que estava
incendiando a sociedade.
Para mim, teórico do marxismo, essa elite só se interessava
em primeiro lugar pelo dinheiro, em segundo lugar pela sua conta
bancária e em terceiro, pelo seu capital. Quase respondi,
impulsivamente, que o vendedor de idéias não aceitaria a
solicitação, mas, para não atropelar sua decisão, fui comunicarlhe.
Entretanto, me surpreendi. Depois de pensar no convite, o
mestre disse que falaria com eles, mas num auditório que ele
escolhesse. E me deu o endereço. Era um local de que eu jamais
ouvira falar. Não sabia o tamanho do anfiteatro, se havia arcondicionado
nem poltronas confortáveis. Só sabia que esse
pessoal era exigente, estava acostumado ao máximo de conforto.
Disseram-me que o público seria constituído de cerca de cem
empresários e executivos, dos quais apenas cinco eram mulheres.
Havia industriais, banqueiros, proprietários de grandes
construtoras, donos de redes de supermercados, de cadeias de
lojas e outros ramos. Representavam a maior parte da riqueza da
grande megalópole e também do estado.
A elite financeira ficara excitada com a aceitação do convite,
mas como sempre fui crítico desse povo, dei-lhes um banho de
água fria. Disse que o homem que eles ouviriam era intrépido,
capaz de fazer até socialistas como Lênin fungar. Minha espetada
causou mal-estar nos participantes. E depois disso, fiz uma
brincadeira realmente maldosa. Disse que o vendedor de sonhos
poderia chamá-los de raça de víboras da sociedade capitalista, de
casta de burgueses exploradores. Eles não gostaram da
brincadeira. Ficaram muito apreensivos. Mas mesmo assim
queriam garimpar as idéias desse fascinante homem.
Pegaram o endereço e definiram o horário da reunião. Alguns
líderes acharam estranhos que desconhecessem o local, pois
estavam acostumados a organizar eventos nos melhores lugares da
cidade. Na noite do encontro, o mestre saiu na nossa frente.
Parecia que fora meditar. ”Será que estava afinando sua
artilharia?”, pensei. ”Será que estava pedindo ao seu Deus
sabedoria para puxar o tapete da classe dominante? É sua
oportunidade de ouro para quebrar a espinha dorsal da elite
financeira”, continuei refletindo. Mal eu poderia prever o que
aconteceria. Eu ficaria atônito, e eles, perplexos.
Como também não sabíamos o endereço, fomos pedindo
informações. Estávamos próximo da numeração da rua, mas não
encontrávamos o local do evento. O lugar era estranho, mal
iluminado. Logo vimos um grupo de pessoas também perdido.
Eram os empresários e executivos. Achavam que o endereço que
eu dera estava errado. Mas afirmei que era esse o endereço que
tinha. Contudo, pensei que eles poderiam ter razão. O mestre, por
ser um desprivilegiado, poderia desconhecer os anfiteatros da
cidade. Dera-nos informação errada.
Os líderes empresariais estavam decepcionados. Resolvemos
seguir juntos na rua e procurar um pouco mais adiante. De
repente, demos num grandioso e lúgubre cemitério. Era o famoso
Cemitério da Recoleta. Perturbado, verificamos que o número batia
com o que tínhamos. Pensei comigo: ”Se o mestre já tem fama de
desvairado, agora ela se cristalizou na mente desse povo”.
Provavelmente, ele deve estar do outro lado da cidade.
Salomão disse:
— Eu enfrento os fantasmas na minha mente, mas detesto
me aproximar de um cemitério, ainda mais à noite. Vamos embora.
Sem muita segurança, segurei no seu braço. Pedi calma. Os
participantes começavam a chegar com seus carros luxuosos e a se
aglomerar. Todos estavam confusos. Pela primeira vez me rebaixei
perante essa turma. Pedia freqüentemente desculpas pelo equívoco
do endereço.
De repente, quando ameaçávamos ir embora, as portas do
grande cemitério se abriram, rangendo as dobradiças.
Imediatamente Boquinha de Mel abraçou Mão de Anjo e começou a
tremer.
— Só entortado pela vodca eu entro nesse lugar.
Tão logo Bartolomeu fez essa observação, apareceu uma
figura estranha, amedrontadora. Estava irreconhecível devido à
iluminação deficiente da entrada, se bem que no interior do
cemitério a iluminação fosse melhor. O personagem fazia gestos
para entrarmos. Era simplesmente o conferencista da noite, o
mestre. Ficamos sem voz ao constatarmos que o endereço estava
certo.
Todos nós, discípulos e empresários, começamos a nos mover
lenta e apreensivamente para o singular anfiteatro. Cada um
olhava sutilmente para o outro e devia pensar a mesma coisa: ”O
que estou fazendo aqui!”. Era a primeira vez que se tinha notícia
de que uma conferência sobre criatividade e liderança ocorreria
num cemitério. Era a primeira vez que se falaria sobre o pungente
mundo dos vivos no palco dos ”mortos”.
Enquanto nos aproximávamos do local da sua fala, o mestre
usava a voz grave e vibrante e saudava de forma excepcional os
participantes:
— Bem-vindos os futuros personagens mais ricos do
cemitério. Sintam-se em casa.
As pernas dos empresários bambearam. Estavam
acostumados a grandes embates, a batalhas competitivas, a riscos
fenomenais, mas não a esse desafio. Foram nocauteados no
primeiro round por um anônimo. Eu não sabia o que falar nem
como reagir, e as pessoas ao meu redor estavam igualmente
atarantadas. O Cemitério da Recoleta é imponente. É um cemitério
dos abastados. Seus mausoléus são suntuosos, verdadeiras obras
de arte.
Vendo-nos introspectivos, o mestre continuou a deixar fluir
suas idéias.
— Os notáveis homens e mulheres da sociedade aqui jazem.
Sonhos, pesadelos, sentimentos secretos, emoções visíveis, golpes
de ansiedade, momentos de raro prazer constituíram a vida de
cada ser humano que aqui repousou. Suas histórias estão
adormecidas. E raramente alguém se preocupa com elas, a não ser
seus íntimos.
Não sabíamos aonde o mestre queria chegar, nem mesmo
sabíamos se a conferência havia começado ou se haveria
conferência. Só sabíamos que suas palavras nos conduziam a um
passeio pela nossa própria história. O passado dos falecidos
revelava as vielas do nosso futuro. Sua fala, que parecia
instigadora do medo, começou a ter uma doçura inexplicável. Em
seguida, ele fez um pedido a todos os participantes:
— Leiam durante dez minutos as amáveis mensagens
afixadas na cabeceira dos mausoléus.
Eu nunca havia feito essa experiência sociológica. Apesar de
a luminosidade não ser excelente, começamos a percorrer as ruas
do cemitério e a ler as mensagens cravadas em metal, que
celebravam a existência das pessoas que partiram. Quantas
saudades! Quantas marcas! Quantas palavras carregadas de
nobres significados! Algumas mensagens diziam: ”Ao meu gentil e
dócil marido, com saudades da sua amada esposa. Que Deus o
tenha em paz”; ”Ao querido papai — O tempo furtou sua presença,
mas jamais furtará o amor que sentimos por você”; ”Papai, você é
inesquecível. Todos os dias o amarei”; ”Ao amigo insubstituível —
Obrigado por ter existido e ter participado de nossa vida”.
Não sei o que aconteceu comigo ao ler essas placas, mas me
envolvi numa atmosfera de afetividade. Comecei a relembrar as
pessoas que perdera. Nunca escrevi uma placa para meu pai. Nem
ao menos lhe agradeci por ter me dado a vida. O seu suicídio
bloqueou meus sentimentos. Nem para minha valente mãe escrevi
uma mensagem, a não ser aquela que trago silenciosamente na
mente: ”Eu a amo. Obrigado por ter suportado minha rebeldia”.
Olhei para o lado e vi todos os meus amigos e os empresários
emocionados. Viajaram no tempo. Abriram as portas do
inconsciente e depararam com a mais crua fragilidade. Eram
homens que dirigiam empresas com milhares de pessoas, mas
agora se sentiam simplesmente mortais.
Nesse momento, senti que o mestre criara propositadamente
um clima. Tirara-lhes completamente a segurança, os mecanismos
de defesa, a proteção do status financeiro, para torpedeá-los com
suas palavras. Quando abriu a boca, perguntou algo que todo
empresário detesta ouvir:
— Onde estão e quem são os proletários da atualidade?
Pensei comigo: ”Essas pessoas vão debandar. Embora
estejam atordoadas pela viagem ao passado, não agüentarão o
tranco das críticas do vendedor de idéias”. Ninguém respondeu
nada. A resposta, que parecia óbvia, não era. Nesse momento, o
mestre extraiu meu sangue sem injetar a agulha. Invertendo a
teoria marxista, disse:
— Vocês são os proletários da atualidade, pelo menos uma
casta importante deles.
Eu pensei: ”Que afirmação é essa? Será que ele não sabe
quem é o público que está presente?”. Tive vontade de sair
correndo porque parecia que o mestre não entendia nada do que
estava falando, nem para quem estava falando. Mas em seguida ele
me fez derrapar nas curvas dos meus pensamentos. E começou a
explicar.
Disse que o filósofo Karl Marx (1818-1883) deixara sua terra
natal e fora para Paris, onde conhecera Friedrich Engels (1820-
1895). Os dois afinaram suas idéias, tornaram-se membros de
grupos socialistas e iniciaram uma colaboração que durou a vida
toda. Para eles, os fatores econômicos e tecnológicos, expressos
pelo modo como os bens são produzidos e as riquezas distribuídas,
seriam as forças que desenvolvem a história e alicerçam a política,
a lei, a moral, a filosofia, enfim, toda a cultura. Marx acreditava
que a história humana era governada pelas leis da ciência e
rejeitava todas as interpretações religiosas da natureza e da
história. Por meio dessas leis, as pessoas, em especial a classe
trabalhadora, teriam liberdade de construir a própria história.
Mas comentou que essa tão sonhada liberdade não se
materializara. Quando alguns socialistas tomaram o poder
tornaram-se implacáveis, destruíram milhares de supostos
opositores, silenciaram vozes, tolheram direitos, esmagaram,
enfim, a liberdade que discursavam. A classe trabalhadora não
construiu sua própria história, mas a história que a cúpula
determinou. A antiga religião fora substituída pelo culto à
personalidade desses líderes.
— A revolução deles era externa - relatou, e adicionou: —
Diferentemente deles, meu sonho não é destruir o sistema político
vigente para reconstruí-lo. Não creio em mudanças de fora para
dentro. Creio numa mudança pacífica de dentro para fora, uma
mudança na capacidade de pensar, se enxergar, criticar,
interpretar os fenômenos sociais, e, em especial, na capacidade de
resgatar o prazer. Meu sonho está dentro do ser humano.
Após essa breve explanação, que revelava que ele sabia o que
estava dizendo, começou a falar que, quando Marx lançou suas
idéias, a classe dominante não distribuía renda, usava o poder
político e financeiro para oprimir a classe trabalhadora. Uma
pequena minoria vivia nababescamente diante da miséria de uma
imensa maioria. A diferença de classes ainda existia, as injustiças
sociais ainda não haviam sido erradicadas, mas no terceiro milênio
o sistema, com o advento da globalização, gerara uma nova classe
de pessoas exploradas.
— Vocês! — enfatizou novamente.
Ao ouvir sua afirmação, pensei outra vez: ”Mas não são eles
os privilegiados? Não vivem no luxo e na mordomia? Como é
possível classificá-los como uma classe explorada, como os
proletários deste milênio?”
Mas, para começar a fundamentar suas idéias, ele começou a
jogar por terra um ditado popular que muitos de nós conhecíamos:
— Nos séculos passados, antes de o sistema se desenvolver,
uma fortuna demorava três gerações para se acabar. Por isso, o
velho ditado tinha fundamento: avô rico, filho nobre, neto pobre.
Mas nos dias atuais raramente esse pensamento tem validade.
Uma empresa sólida pode desaparecer em cinco anos. Uma
indústria importante pode estar fora do mercado em pouco tempo.
Enfim, a quantidade de anos de uma geração pode ser suficiente
para destruir três, quatro, cinco ou mais fortunas.
Meu castelo de cartas começava a desmoronar. Os
empresários, depois do susto inicial, ficaram pensativos e
começaram a concordar com esse provocador misterioso.
— Para suas empresas sobreviverem, vocês têm de competir
num processo sem fim. Para suas empresas não serem devoradas
por concorrentes, têm de se redescobrir a cada ano, se superar a
cada mês e se reinventar a cada semana.
E fez uma pergunta básica, cuja resposta todos erraram:
— O sistema esmaga as empresas que caem na
insignificância ou na ineficiência?
Todos a uma só voz responderam que sim. Mas ele disse que
não.
— Ele não esmaga as empresas. Esmaga seus líderes.
Também nos disse que médicos, advogados, engenheiros,
jornalistas e tanto outros profissionais estavam no mesmo
processo de esmagamento. Os donos do dinheiro começaram a
entender que não eram tão ricos como pensavam. Os proprietários
do poder começaram a perceber que não eram tão fortes como
imaginavam. Durante essa exposição inicial, algumas pessoas
estavam ainda céticas. O mestre amava os céticos, pois podia
pegá-los na astúcia das suas idéias. Para não deixar dúvidas, fez o
diagnóstico e mostrou o resultado:
— Senhoras e senhores, o tempo da escravidão não foi
extirpado das páginas da história, apenas mudou de forma. Vou
lhes fazer algumas perguntas e lhes peço plena honestidade,
transparência cristalina. Saibam que quem não é transparente tem
uma dívida impagável com sua saúde psíquica. Respondam me:
quem tem dores de cabeça?
As pessoas ficaram um pouco constrangidas, mas, um após o
outro, começaram a levantar a mão. Verifiquei que quase todos
levantaram a mão.
— Quem tem dores musculares? - Novamente a grande
maioria levantou a mão, estava mais desinibida.
Depois ele começou a fazer inúmeras outras indagações:
— Quem acorda fatigado? Quem tem queda de cabelo? Quem
sente que sua mente é agitada? Quem sofre por problemas que
ainda não aconteceram? Quem tem a sensação de estar por um
fio? Quem se irrita por pequenos problemas? Quem tem emoção
flutuante — num momento é tranqüilo e noutro, quando
contrariado, tem reações explosivas? Quem tem medo do futuro?
A maioria dos presentes nem se dava ao luxo de abaixar a
mão. Tinha todos os sintomas. Eu não acreditava no que via.
Esfregava os olhos com as duas mãos e me questionava: ”Não são
eles a elite da sociedade? Como podem ter péssima qualidade de
vida? Não são eles que tomam os melhores vinhos e champanhes?
Não freqüentam os melhores restaurantes? Por que então estão
gravemente estressados?” Fiquei abalado.
Minha mente não parava de refletir sobre os fundamentos
socialistas. Eles precisavam ser corrigidos. Os burgueses andavam
com carros de luxo, mas estavam paralisados por suas tensões.
Iam à casa de praia, mas suas emoções não surfavam nas ondas
do prazer. Dormiam em colchões macios, mas faltava-lhes conforto
psíquico, o sono não era agradável. Trajavam temos impecáveis,
mas estavam quase nus, sem proteção contra suas tensões e
preocupações.
”Que loucura!” pensei intimamente. ”Onde está a felicidade
que o sistema prometeu para os que atingem o pódio do
capitalismo? Onde está a tranqüilidade para aqueles que
acumularam riquezas? Onde está o prêmio pela competência? Eles
fazem seguro de casa, de vida, empresarial, previdenciário e até
seguro contra seqüestro, mas por que têm uma rica
sintomatologia, que denuncia uma dramática insegurança?” O
sistema esmagava seus líderes.

Abalando alguns da teoria marxista

O questionamento do mestre no Cemitério da Recoleta
colocou nossos neurônios em estado de choque. Eu atacara a elite
empresarial durante anos e anos em sala de aula, mas precisava
rever alguns conceitos. Comecei a entender que o sistema traía a
todos, em especial aos que mais o alimentavam. Atingia inclusive
as celebridades, não apenas pela invasão de privacidade e pela
contração da sensibilidade, mas porque o sucesso era
freqüentemente fugaz. Era muito fácil cair na insignificância.
Em nome da competitividade, o sistema sugava-lhes até a
última gota de energia cerebral. Eles gastavam mais energia que
muitos braçais, viviam fadigados devido ao excesso de
pensamentos. Eram vencedores, mas não levavam o prêmio, pelo
menos não para o território psíquico.
Na produção industrial, em especial, o estresse se
multiplicava, pois havia uma verdadeira guerra de preços baixos,
distorcida por subsídios governamentais que contaminavam o
valor dos produtos, capaz de desbancar empresas do outro lado do
mundo. Acrescentavam-se a esse caldeirão as diferenças de
impostos inseridas nos produtos e as diferenças salariais pagas
pelos trabalhadores de cada país, bem como o fenômeno dumping
(empresas que colocam seus preços abaixo dos custos de produção
para conquistar o mercado). Sobreviver era uma arte infernal.
A situação dos participantes não poderia ser pior. Trinta e
cinco por cento deles tinham problemas cardíacos ou eram
hipertensos. Quinze por cento tinham câncer, alguns dos quais
não virariam o ano com vida. Trinta por cento tinham crises
depressivas. Dez por cento tinham síndrome do pânico. Sessenta
por cento tinham conflitos conjugais. Noventa e cinco por cento
tinham três ou mais sintomas psíquicos ou psicossomáticos,
sessenta e cinco por cento dos quais atingiam a incrível marca de
dez sintomas.
A exploração dos proletários ainda existia em diversas
nações. Mas nas sociedades desenvolvidas e nas emergentes, onde
as leis trabalhistas eram justas e os direitos humanos respeitados,
os grandes explorados eram os que tinham um trabalho intelectual
intenso, como gerentes, diretores, empresários, profissionais
liberais, professores, jornalistas.
O rolo compressor era tão avassalador que muitos executivos
tinham a fleuma de levar seus problemas para casa e até para as
suas férias. Os trabalhadores que tinham salários satisfatórios,
mas sem posição de liderança ou gerenciamento nas empresas,
tinham tempo para os amigos, para sentir o perfume dos
alimentos, relaxar nos finais de semana, dormir e despertar sem
ser asfixiados com preocupações. Enquanto para os líderes
empresariais, essas experiências eram artigo de luxo. No bom
sentido da palavra, ”os vassalos viviam pela primeira vez melhor
que o feudo”.
Foi então que entendi com clareza por que o mestre insistia
em dizer que o sucesso é mais difícil de trabalhar que o fracasso: o
risco do sucesso é ser uma máquina de atividades. Marx e Engels
se contorceriam no túmulo se soubessem que o desenvolvimento
último do capitalismo atingiria o sonho do socialismo: seria o
”caos” da elite empresarial e o oásis dos trabalhadores. Embora
houvesse exceções. O problema da classe trabalhadora era o
consumismo, a compulsão pelo crédito e o gasto acima da renda.
Excetuando esses fenômenos, o topo do capitalismo produziria o
reino dos trabalhadores e a exploração mental de grande parte dos
que exerciam posição de liderança.
O que era interessante é que nenhuma estatística abordava a
nova casta de explorados. Parecia que eram fortes, autosuficientes,
semideuses, não precisavam de apoio e muito menos
de sonhos. Não eram seres humanos sem fronteiras, eram seres
humanos entrincheirados. Excetuando alguns poucos cursos e
consultas médicas esporádicas, quase nada se fazia por eles.
Depois dessa abordagem, ficou patente que o mestre sabia muito
bem o que estava falando e para quem estava falando. Só não
sabíamos como ele sabia de tudo isso. Como pode um maltrapilho
deter todas essas informações? Que homem é esse que transita
entre os miseráveis e os milionários com inigualável desenvoltura?
De onde procede?
Bartolomeu, ao ver os participantes da excepcional
conferência reconhecerem que estavam fragilizados, não suportou
ficar quieto. Levantou a mão direita e interpelou o mestre:
— Chefinho, esses caras estão mal das pernas! Vamos fazer
uma vaquinha para ajudá-los. — Provavelmente achou que os
participantes estavam bem-trajados porque iam a algum baile de
fantasia.
Foi a primeira vez na civilização moderna que um miserável
chamou os membros da elite financeira de paupérrimos. Foi a
primeira vez que um proletário se sentiu mais rico que os
milionários da sua sociedade. Sua fala foi tão espontânea que o
que era trágico tornou-se cômico. Os participantes olharam uns
para os outros e sorriram ininterruptamente. Não desrespeitaram
os mortos com suas gargalhadas, riram da própria miserabilidade.
Precisavam comprar muitos sonhos se quisessem ter o mínimo de
saúde psíquica.
Não bastassem as surpresas da noite, aconteceu outra que
nos deixou literalmente de cabelo em pé. Subitamente saiu de
dentro de uma tumba, localizada quatro metros à frente da
primeira fila dos presentes, uma figura assustadora, com um
paletó branco velho na cabeça. E deu um grito horripilante:
— Eu sou a morte! Vim pegá-los!
Essa cena não estava no script do mestre, que também levou
um susto. O tumulto foi tão grande que pela primeira vez acreditei
em fantasmas. Meu coração, e penso que também o dos demais
presentes, queria sair pela boca. O que era aquilo? Saímos da
esfera da razão para o terreno da fobia. Alguns começaram a sair
correndo, mas o fantasma deu algumas risadas e nos acalmou.
— Calma, gente. Calma! Por que estão desesperados? Logo
dormiremos num lugar como este.
A figura tirou o paletó da cabeça. Era o infeliz do Barnabé.
Bartolomeu e Barnabé, a dupla incontrolável, tinham de dar seu
show, não importava onde estivessem. Bom senso nem para
remédio.
Toda vez que estávamos no auge da sobriedade, caíamos nos
patamares mais inóspitos da doidice. Eles estragavam tudo. Se no
passado fossem meus alunos, certamente eu os expulsaria. Mas
felizmente encontraram outro mestre que apostava tudo o que
tinha em quem pouquíssimo tivesse. Não conseguia entender como
conseguia amar esses baderneiros incorrigíveis.
Percebendo que a platéia ainda estava tensa, Barnabé tirou
um chocolate do bolso e começou a comê-lo. Durante a
mastigação, resolveu contar um pouco da sua história. Comoveu a
todos:
— Vim muitas vezes embriagado e deprimido a este cemitério
para fazer terapia. Como os vivos raramente conversavam comigo
por me tacharem de alcoólatra, maluco, irresponsável, e os poucos
que conversavam logo vinham dando bronca e conselhos baratos,
eu adentrava este cemitério e conversava com os mortos. Aqui
chorei pelos meus erros. Aqui disse que era um frustrado, alguém
que queria começar tudo de novo, mas falhava continuamente.
Aqui confessei que me sentia um lixo humano. Aqui pedi
desculpas a Deus pelas bebedeiras que tive, pelas saideiras que me
faziam dormir nas praças, por ter abandonado minha família.
Nunca um morto reclamou das minhas bobagens.
Os empresários ficaram emocionados com a sinceridade e a
facilidade de Barnabé para dividir seus sentimentos,
características que raramente existiam no meio deles. Tinham
necessidade vital de se abrir, mas não podiam demonstrar
fragilidade, não podiam ser humanos.
Ao ver o Barnabé confessar suas mazelas, entrou Bartolomeu
novamente no palco. Abraçou-o e tentou consolá-lo da pior forma
possível.
— Não chore, Prefeito. Minhas dívidas são maiores que as
suas. Eu sou imoral.
— Não, as minhas são piores. Eu sou um pervertido —
afirmou mais alto Barnabé.
— Não, meus erros são incontáveis. Eu sou um crápula —
disse Bartolomeu num tom mais alto ainda.
— Não, você não me conhece direito. Eu sou um depravado.
E, para assombro geral da platéia, começaram a disputar
quem deles era o pior. Os empresários nunca tinham visto isso. Só
conheciam a acirrada disputa para ver quem era o melhor. Nós
queríamos acabar com a disputa bizarra, mas temíamos dar um
escândalo maior. E para mostrar que era o mais devasso dos
homens, Bartolomeu perdeu a paciência. Disse:
— Sou corrompido, desonesto, mentiroso, não cumpro
minhas promessas, não pago minhas contas, cobiço a mulher do
próximo. Além disso, já furtei seu dinheiro quando estava
bêbado...
Interrompendo a lista enorme de erros de Bartolomeu,
Barnabé expressou, magoado:
— Pare, pare, pare! Reconheço que de fato você é o maior
cafajeste da face da terra.
— Não exagere, Barnabé! — reagiu Bartolomeu, sem gostar
do título.
Ao ouvir esse embate, eu, que não sei fazer oração, como não
podia falar nada para silenciá-los, olhei para as estrelas e disse
baixinho: ”Deus tenha piedade desses miseráveis. Cale sua boca!”.
Mas os empresários os acharam divertidíssimos. Queriam possuir
a autenticidade e o desprendimento flagrantemente expressos
pelos dois. Trabalhavam por anos ou décadas com seus colegas,
mas eram túmulos tão fechados como os do anfiteatro que
pisavam. No mundo profissional, viviam fora do casulo, no mundo
psíquico eram cofres, ilhas intocáveis. Não sabiam sequer dar um
ombro para chorar, disfarçavam seus sentimentos.
O mestre, em vez de repreendê-los severamente, para nossa
surpresa, os elogiou:
— Parabéns, vocês me fizeram recordar minhas imperfeições.
— Conte comigo, chefinho — disse Boquinha olhando para
mim, tentando me provocar e balbuciando: ”Alô, superego.
Aprenda comigo”. Meu sangue ferveu num lugar como aquele, dos
mais impróprios para ficar nervoso. ”Ah, como também sou
imperfeito!”, pensei.
Em seguida o homem que seguíamos contou mais uma de
suas histórias. Comentou que muitas espécies tinham mais
vantagens físicas e perceptivas que a humana. Elas viam melhor,
ouviam com incrível acuidade, corriam mais, saltavam com grande
envergadura, percebiam odores mais sutis e mais distantes,
mordiam com mais força. Mas, apesar disso, a espécie humana
tinha um cérebro muito mais sofisticado, com mais de cem bilhões
de células. E argumentou que um cérebro tão sofisticado deveria
nos privilegiar com as asas da independência. Entretanto, indagou
aos presentes:
— Por que nosso cérebro nos fez uma massa de seres
dependentes, em especial na infância? Raramente uma criança de
quatro anos sobreviveria sozinha, enquanto com essa idade muitos
mamíferos ou répteis não têm mais nenhum contato com os pais.
Alguns já estão em plena fase reprodutiva, enquanto outros com
quatro anos já são idosos. Por que somos mais dependentes que as
demais espécies, apesar de amarmos a independência e termos
atração pelo individualismo? — disse ele, querendo dar uma
descarga de lucidez em seus discípulos e na elite empresarial.
As pessoas ficaram emudecidas. Não sabiam aonde o mestre
queria chegar, mas sem perceber estavam penetrando no mercado
das suas idéias, no armazém dos seus sonhos.
Um idoso empresário, que tinha mais de setenta anos de
idade e aparentemente era um dos mais ricos da platéia, puxou-me
de lado e me disse baixinho:
— Eu conheço esse homem. Onde ele mora?
— O senhor nem imagina. — E completei: — Acho que o
senhor está enganado.
— Não! Eu conheço essa extraordinária mente de algum
lugar.
Em seguida, outro empresário, que tinha ao redor de
cinqüenta anos, que falira três vezes e sempre investira no social,
respondeu com uma só palavra à pergunta do mestre:
— Educação.
O mestre o exaltou:
— Magnífico. Educação é a chave! O cérebro nos tornou
completamente dependentes na infância devido à necessidade vital
de incorporação de experiências existenciais acumuladas ao longo
das gerações. Elas devem ser aprendidas e assimiladas por meio
da educação. Não são transmitidas geneticamente. A educação é
insubstituível. — Após isso, abalou os participantes alertando-os
das conseqüências da exploração mental a que eram submetidos, e
que possivelmente estavam transferindo para seus filhos.
Discorreu que muitos pais pressionam seus filhos para
competir, estudar desvairadamente, fazer cursos, preparar-se para
sobreviver no futuro, sem saber que a pressão excessiva aniquila a
ingenuidade da infância, debela os valores existenciais, bloqueia o
aprendizado das experiências, esfacela a humanidade deles.
Depois de uma pausa para respirar e metralhou-os como fez
comigo quando me conhecera:
— Seus filhos conhecem os acidentes que tiveram pelo
caminho? Sabem como os superaram? Conhecem seus medos e
suas incoerências? Descobriram seus golpes de ousadia?
Exploraram seus mais importantes ideais? Conhecem sua filosofia
de vida, sua capacidade de intuir, analisar, refletir? E suas
lágrimas, foram contempladas por eles? Desculpem-me, mas se
não conhecem, vocês estão formando máquinas para serem usadas
pelo sistema e não seres humanos para transformá-lo. Se não
conhecem, vocês estão desprezando os motivos fundamentais pelos
quais nosso cérebro nos fez dependentes.
E fez uma pergunta que tirou o sono de alguns:
— Durante trinta segundos coloquem-se no lugar dos seus
filhos e pensem nas mensagens que eles escreveriam para serem
afixadas um dia em seus mausoléus.
Essa sugestão causou um turbilhão psíquico nos ouvintes.
Não gostaria de ler o que meu filho escreveria sobre mim. Ele
nunca me conheceu. Sempre me escondi. ”Como pode alguém que
aparentemente vive à margem da sociedade valorizar tanto a
educação? O que o move? Que segredos esconde?”, pensei.
Depois de todo esse questionamento, ele calibrou seu
pensamento e apontou para seu grande alvo:
— O sistema capitalista trouxe e tem trazido conquistas
inimagináveis para a sociedade, mas corre sério risco de implosão
em menos de um século, talvez em algumas décadas. Todavia, não
mais como Marx previa, por disputas de classes sociais, mas por
um problema que está no seu cerne: ele produz a liberdade de
possuir e se expressar, mas não a liberdade de ser. O
desenvolvimento do capitalismo depende da ansiedade pelo
desejado e não pelo necessário. Depende da insatisfação crônica
para empurrar o consumo. Se num determinado período a
humanidade fosse formada de poetas, filosóficos, artistas plásticos,
educadores, líderes espirituais, haveria um colapso do PIB
(Produto Interno Bruto) mundial, pois em tese essas pessoas são
mais satisfeitas e consomem mais o necessário. Talvez o PIB caísse
30% ou 40% repentinamente. Haveria centenas de milhões de
desempregados no mundo. Seria a maior recessão da história,
haveria guerras e disputas intermináveis.
Depois desses argumentos, ele viu a platéia boquiaberta. Os
homens de negócios não tinham pensado nisso. Mas o mestre não
quis mais entrar em detalhes sobre o tripé: a educação, o
consumismo e a insatisfação. Procurou desconversar. Em seguida,
transformou a situação tensa num ambiente ameno. Começou a
vender o sonho do relaxamento.
— Retornando aos sintomas que lhes perguntei, vou fazer
mais uma pergunta, e se me responderem coletivamente eu os
convidarei para abrirem um hospital psiquiátrico.
A platéia de fato relaxou.
— Quem anda esquecido? Quem tem déficit de memória? Era
incrível, mas quase todos levantaram a mão. Esqueciam
compromissos, informações corriqueiras, números telefônicos,
locais onde haviam colocado objetos, nomes de pessoas.
Descontraído, ele comentou:
— Alguns são tão esquecidos que colocam a chave do carro
dentro da geladeira e a procuram na casa toda. — As pessoas
riram. E ele adicionou: — Mais engraçados são os que procuram os
óculos sem perceber que estão na sua face. Outros chegam a
esquecer os nomes de colegas com quem trabalharam por anos. Os
mais espertos, para não dar gafe, perguntam a eles: ”Qual seu
nome todo mesmo?”. Na verdade, querem saber o primeiro nome.
Alguns empresários já usavam essa técnica. Desconfio que
até meu mestre também a usava.
— Senhores, para esse déficit corriqueiro de memória, não
procurem o médico. E por quê? — indagou.
— Porque ele também está esquecido! — respondeu um
senhor de terno azul e gravata cinza com listras creme.
Todos zombaram da própria existência estressante.
Começaram a entender que o déficit de memória na maioria dos
casos era uma tentativa desesperada do cérebro para diminuir a
avalanche de preocupações.
Bartolomeu havia levantado as duas mãos, indicando que
estava superesquecido.
— Chefinho, por que eu sempre esquecia o nome das minhas
sogras?
A turma não agüentou sua petulância. Barnabé, que o
conhecia de longa data, dessa vez não livrou a sua barra, entregou
sua ficha:
— Também, o Boquinha casou três vezes e se juntou umas
sete. Não dava tempo de assimilar o nome das sogras.
Boca de Mel olhou para a platéia e abriu as mãos, pedindo
compreensão. Queria dizer: ”Nunca disse que sou santo!”. De fato,
não era flor que se cheirasse. Ele bem que tentava, mas não
conseguia fingir que era normal.
O mestre tentou poupá-lo.
— Não o escolhi por causa dos seus erros ou acertos. Mas por
quem você é, por causa do seu coração. Não o coração físico, mas o
psíquico.
E para mudar o foco que o constrangia, agiu mais uma vez
com ternura.
— Também sou esquecido, Bartolomeu. Algumas pessoas me
dizem: ”Mestre, a minha memória está ruim”. Eu lhes digo: ”Não se
preocupem, a minha está péssima”.
As reações e as palavras que ouvi mais uma vez tiraram a
venda dos meus olhos. Eu também era esquecido, mas jamais
admitira que meus alunos esquecessem. Era um carrasco na
correção das provas. Lembro-me de Jônatas, um brilhante
debatedor de idéias, que no entanto não sabia registrar as
informações num papel. Foi reprovado continuamente por mim e
por outros colegas doutores. Nós o reputávamos como um alienado
e irresponsável, mas talvez fosse um gênio incompreendido. Foi
jubilado pelo sistema. Nós éramos a voz do sistema. Atiramos no
esgoto da educação possíveis pensadores sem ter sentimento de
culpa. Somente agora, que aprendia a comprar sonhos de uma
mente livre, eu descobria que, se tivesse ampliado o leque para
avaliar a mente dos meus alunos, poderia ter dado nota máxima
para quem errara todos os dados.
Eu estava inconsolado com toda essa análise. Fui intolerante
até com meu filho. João Marcos tinha uma leve dislexia, não
conseguia acompanhar direito sua turma. Mas eu exigia,
pressionava, queria extrair dele o que não podia dar. Queria que
fosse um exímio aluno para que no fundo minha imagem de pai e
professor pudesse se destacar. De fato, a mensagem que meu filho
e meus alunos deixariam em meu túmulo não seria carregada de
elogios e de saudades.
Jurema parece que entendia o que eu estava pensando.
Tocou meus ombros e me disse em voz baixa:
— Como disse Alexander Graham Bell, ”se andarmos pelos
caminhos que outros já percorreram, chegaremos no máximo aos
lugares que eles atingiram”. Se não vendermos novas idéias para
que os alunos andem por novos caminhos, eles no máximo
conseguirão construir a história desses empresários, que
arrebentaram com sua saúde e seus sonhos.
Os empresários saíram um a um, observando atentamente os
mausoléus pelos quais passavam. Durante a travessia, alguns
lembraram que, do século XVI ao XIX, o inumano sistema
comprara seres humanos de pele negra como se fossem animais e
os encerrara nos porões funestos e fétidos dos navios,
transportando-os como escravos para lugares distantes, como a
Europa e as Américas. Atrás deles ficaram os amigos, os
filhos, a esposa, a liberdade. À frente deles estava o futuro
amedrontador, a dor, o trabalho forçado e uma saudade
incontrolável.
Nos tempos atuais, o sistema parece ter fabricado novos
escravos, só que lhes paga salários altos e dá-lhes uma série de
benefícios. Atrás deles têm ficado os filhos, a esposa, os amigos, os
sonhos. À frente deles está um futuro incerto, volátil, competitivo,
apreensivo e um trabalho mental forçado. Como nos tem dito o
vendedor de idéias: a história é cíclica.
As últimas conferências dadas pelo mestre, em especial no
Cemitério da Recoleta, ganharam um destaque maior ainda na
grande mídia. A sociedade local ficou impressionada pelo fato de
até empresários terem sidos magnetizados pelo enigmático homem.
Indagações que inquietavam a minha mente inundavam também a
mente das pessoas.
Algumas diziam que ele era o maior impostor de que se tinha
notícia, outras, um pensador muito à frente do seu tempo.
Algumas comentavam que era o maior destruidor da tranqüilidade
social, outras, ao contrário, o maior promotor dela. Algumas
comentavam que era um grande ateu, outras, o portador de uma
incompreensível espiritualidade. Algumas diziam que era de outro
mundo, outras, que era uma das raras pessoas que não perdera a
essência humana. Talvez fosse uma mistura de tudo isso ou nada
disso, pensavam determinadas pessoas. Discorrer sobre sua
identidade tornou-se, assim, uma das conversas mais excitantes
nos bares, restaurantes, nas salas de café das empresas e até em
escolas. As discussões eram apaixonadas.
Quanto mais sua fama crescia, mais suas dificuldades
aumentavam. Não dava entrevistas nem anunciava o roteiro do dia
seguinte, mas mesmo assim era noticiado, pois sempre discursava
em público. Quando ficávamos aborrecidos com as reportagens
que distorciam as suas idéias, ele nos acalmava, afirmando: ”Não
existe uma sociedade livre sem uma imprensa livre. A imprensa
comete erros, mas silencie a imprensa, que a sociedade viverá uma
noite sem luz, terá uma mente sem voz”.
Devido ao assédio social, não conseguia transitar pela
sociedade sem ser fotografado. O mestre não apreciava ser uma
celebridade. Estava estudando a possibilidade de mudar de
metrópole ou de país. Pensava em vender sonhos no Oriente
Médio, na Ásia ou em qualquer lugar em que as pessoas o vissem
apenas como um simples mortal.
Já não era mais possível fazer debates em lugares pequenos.
Ele era um pólo de atração social. Freqüentemente centenas de
pessoas se reuniam espontaneamente para ouvi-lo. Tinha que
elevar o tom de voz, e mesmo assim as camadas mais externas da
multidão não conseguiam discernir suas palavras. Seu
ensinamento era passado oralmente, de boca em boca. Não gostava
de fazer debates em anfiteatros fechados nem de usar recursos
multimídia; amava falar ao ar livre. Um dos motivos era para que
os que não apreciassem suas idéias tivessem liberdade de sair de
cena mais facilmente.
Observando o movimento em torno do mestre, algumas
empresas queriam associar a imagem delas à dele. Queriam fazer o
marketing de que eram inovadoras, ousadas, inexplicáveis. Mas ele
tinha calafrios diante dessa possibilidade. Depois de recusar
inúmeros presentes e ofertas de dinheiro pelo uso de sua imagem,
algo incomum aconteceu. Algumas pessoas muito bem-trajadas do
poderoso grupo Megasoft procuraram-nos separadamente, sem a
presença do mestre, e fizeram-nos uma proposta aparentemente
muito interessante.
O primeiro contato foi comigo, com Salomão e com Dimas.
Em primeiro lugar, elogiaram intensamente o trabalho social que o
mestre estava fazendo. A sociedade tornara-se mais solidária, mais
afetiva e mais humana depois que ele aparecera por esses ares,
disseram-nos. E acrescentaram:
— Sabemos que ele pauta sua vida pela humildade, que não
ama a fama, mas queremos lhe fazer uma grande surpresa, uma
homenagem por tudo o que ele tem feito pela sociedade. A
homenagem não é lhe dar bens materiais, pois sabemos que não
aceitaria, mas mostrar nosso reconhecimento oferecendo o maior
estádio coberto da cidade, que pertence a uma das empresas do
grupo, para que ele dê uma conferência para mais de cinqüenta
mil pessoas. Essa conferência seria televisionada e, depois,
retransmitida como um programa especial, num horário nobre,
para todo o país. Milhões de pessoas iriam ouvi-lo.
Ficamos animados e, ao mesmo tempo, pensativos com a
oferta. Mas os líderes do grupo empresarial pareciam dotados de
uma intenção pura. Para nos seduzir ainda mais, nos disseram:
— Por favor, não nos privem nem privem a sociedade desse
privilégio. Todos querem e precisam ouvir esse sábio vendedor de
sonhos. Há inúmeras pessoas se deprimindo, se angustiando,
pensando em suicídio, se drogando, vivendo ansiosamente, e que
poderiam ser ajudadas pelas suas palavras. Fazemos questão de
lhe prestar essa homenagem e de dar esse presente para a
população. A única coisa que pedimos é que ele não fique sabendo.
Reiteramos que queremos lhe fazer uma grande surpresa.
Como o assunto era delicado, conversamos com todo o grupo.
Depois de refletir sobre a proposta e analisar o benefício que a
sociedade teria, achamos que poderia ser bom. Afinal de conta,
milhões seriam atingidos. Também pensamos que já era tempo de
o mestre receber publicamente uma homenagem. Boquinha de Mel
e Barnabé ficaram excitadíssimos com a proposta. Jurema foi a
única pessoa que não gostou muito da idéia, justamente ela, que
tinha ações do grupo Megasoft. Mas, por fim, cedeu.
Tínhamos que armar um esquema para levar
disfarçadamente o mestre para o estádio. Organizamo-nos, e na
data marcada o conduzimos ao grandioso estádio. Logo que nos
aproximamos do local, vimos o trânsito congestionado e inúmeras
pessoas entrando pela porta central. Quando chegamos perto da
entrada privativa, o mestre achou estranho. Questionou:
— Por que devemos entrar nesse local? — E mostrou
desconforto.
Como não podíamos revelar a homenagem, pedimos que
acatasse em silêncio nossa solicitação. Falamos que iríamos a um
show. Como continuava nos questionando, nós o colocamos contra
a parede.
— Ao longo da caminhada, você nos fez inúmeros pedidos e
nós o ouvimos. Será que não pode acatar o que lhe pedimos?
Foi uma chantagem dizer isso, pois sabíamos que o mestre
muitas vezes nos ouvia e nos suportava. Pressionado, ele nos
seguiu silenciosamente.
Quando íamos entrar na sala vip, ele indagou
apreensivamente:
— Quem preparou o evento?
— Algumas pessoas que gostam muito de você. Espere e verá
— dissemos, sem lhe dar maior explicação.
Os executivos do grupo Megasoft estavam numa sala especial,
preparando o evento. Na sala em que nos encontrávamos, havia
uma rica mesa de frutas, frios e sucos. O mestre não comeu.
Estava compenetrado, introvertido, reflexivo. Começamos a comer
como esfomeados.
Barnabé pegou um grande cacho de uvas sem semente e,
socando vários bagos na boca ao mesmo tempo, expressou quase
incompreensivelmente: — Essa turma é gente fina.
Bartolomeu, com três fatias de salame na boca e duas de
presunto, balbuciou:
— Estou gostando desses empresários. — Em seguida
começou a cantarolar para despistar o que falara.
Fizemos um sinal para que comessem quietos. O mestre
percebeu alguma coisa no ar. Inquieto, olhava para o alto, como se
se desligasse do ambiente para meditar. Passados longos vinte
minutos, chegou o momento da conferência. Três moças
muitíssimo bem-trajadas nos conduziram até o palco. O mestre
caminhava lentamente pelos corredores, diferentemente do seu
andar corriqueiro.
Antes de nos dirigirmos para os nossos assentos, os
organizadores do evento, trajando ternos impecáveis, vieram ao
nosso encontro e nos cumprimentaram. Por último,
cumprimentaram o mestre. Eram cinco executivos. O último deles
parecia ser o líder, talvez o diretor-presidente de uma das
empresas do grupo. Ao cumprimentá-lo, apertou sua mão e lhe
disse em tom de brincadeira:
— Bem-vindo a este estádio. Obrigado por seus delírios.
Grandes homens têm grandes sonhos.
O mestre, sempre bem-humorado, nunca se importara que
dissessem que seus sonhos fossem delírios, mas, aparentemente
incomodado com o ambiente, fitou o executivo e dessa vez não lhe
agradeceu pelas palavras, apenas penetrou profundamente nos
olhos dele. O líder ficou desconcertado. Até então o mestre talvez
realmente pensasse que assistiria a um show. Após os
cumprimentos, os organizadores foram se sentar em frente ao
palco, do lado direito, e nós fomos nos sentar do lado esquerdo.
Na parte alta do palco, havia um enorme telão de oito metros
de altura por dezesseis de largura. Outros telões estavam
espalhados pelo estádio. Subitamente apareceu o apresentador do
evento no palco, trajando um terno preto. Não citou o nome dos
executivos nem da empresa patrocinadora. Fez tudo com
simplicidade, como deveria ser. Com uma voz vibrante, começou
diretamente a apresentar o vendedor de sonhos. A imensa platéia
silenciou.
— Senhoras e senhores, temos a enorme satisfação de
apresentar-lhes a pessoa mais complexa e inovadora que surgiu
nesta sociedade nas últimas décadas. Um homem que, sem cartão
de crédito, sem uma equipe de marketing, sem dinheiro, sem
revelar sua origem e sua cultura acadêmica, e sem títulos sociais,
contagiou a sociedade com sua sensibilidade e altruísmo.
Conseguiu conquistar um prestígio que muitos políticos, com toda
a máquina pública, não conquistaram. Conseguiu uma fama
invejada por celebridades. Ele é um fenômeno social!
Nesse momento, fazendo eco às suas palavras, as pessoas
interromperam a apresentação para aplaudir o homenageado.
Olhamos para o mestre e percebemos que não estava feliz. Ele, que
sempre se sentira bem em qualquer lugar, que tinha uma exímia
capacidade de se adaptar aos mais diversos ambientes, parecia
incomodado com os elogios. Mas era indubitável que era um
fenômeno social. Nós o seguíamos porque era uma pessoa
excepcional. O apresentador continuou:
— Grandes e pequenos o seguem. Anônimos e ícones sociais
o ouvem. Esse homem tem deixado a esquerda política atônita e a
direita pasma. Não conhecemos sua identidade. Estamos há meses
perplexos. A imprensa, as autoridades e até as pessoas perguntam:
de onde ele veio? O que viveu? Quais foram os capítulos mais
importantes de sua história? Por que procura abalar os pilares da
sociedade? Qual o seu objetivo? Não sabemos. Ele se diz apenas
um vendedor de sonhos, um mercador de idéias numa sociedade
que deixou de sonhar.
Após definir o indefinível homem que seguíamos, ele chamou
o mestre até o palco, fazendo uma espécie de brincadeira que levou
a platéia a sorrir:
— Com vocês, o vendedor de pesadelos! Disse que estávamos
ali para homenageá-lo. Constrangido, ele se levantou e se dirigiu
até o centro do palco. Foi então que começou a perceber o que
estava acontecendo. Foi comovente ver as pessoas aplaudi-lo
prolongadamente. Nós, seus discípulos, em sintonia com a platéia,
também o aplaudimos emocionadamente.
Por sua vez, enquanto caminhava, ele mexia os lábios, e
parecia dizer para si mesmo continuamente: ”Eu não mereço. Eu
não mereço”. Rapidamente lhe colocaram um microfone de lapela,
ainda sob o som dos aplausos.
Parecia incrível que um homem vestindo um velho paletó
preto com dois remendos brancos, um na frente, outro nas costas,
camisa amarela sem engomar, cabelos semilongos levemente
despenteados e barba por fazer, que fazia debates em público mas
amava o anonimato, fosse tão querido. Após os aplausos, as
pessoas aguardavam suas palavras.
No palco, olhou para os líderes do evento e não os felicitou
pelo acontecimento. Em seguida, deu alguns passos e, fitando a
multidão, iniciou sua fala com estas palavras:
— Muitos se dobram diante de reis devido ao seu poder.
Outros se curvam diante de milionários devido ao seu dinheiro.
Outros ainda se prostram diante de celebridades devido a
sua fama, mas eu, com muita humildade, me curvo diante de
todos vocês. Não mereço essa homenagem.
A multidão que estava no estádio foi ao delírio. As pessoas se
levantaram novamente e o aplaudiram. Nunca haviam visto um
homenageado homenagear solenemente a platéia que lhe assistia.
Silenciosamente, esperou que as pessoas diminuíssem os aplausos
para continuar suas palavras. Quando ia iniciá-las, o apresentador
o interrompeu. Não entendemos o motivo da interrupção, pois
parecia que a apresentação tinha sido completa, mas ele nos
surpreendeu dizendo:
— Senhores e senhoras, antes que esse misterioso e
inteligente homem nos brinde com suas magníficas palavras,
gostaria de lhe fazer um tributo por tudo o que ele tem feito pelo
sistema social.
Em seguida, olhou para o mestre e pediu gentilmente que
continuasse no centro do palco, e apenas se virasse para assistir a
um inusitado filme que passaria no enorme telão do estádio. Nesse
momento, desligaram seu microfone.
Começaram a passar um filme. Esperávamos campos, flores,
vales e montanhas para homenagear o mestre. Mas o filme não
mostrava a primavera, e sim o rigor do inverno; mas não um
inverno físico, e sim um dramático inverno psíquico. Mostrava a
entrada principal de um grande e envelhecido hospital. Não era um
hospital geral, era um hospital psiquiátrico, um dos poucos que
sobrara naquela região. As paredes externas tinham cor marromescura,
com manchas desbotadas. Havia diversas rachaduras em
forma de estrias horizontais. O edifício tinha três andares, e sua
arquitetura era retilínea, contrastando com as formas da psique,
que não eram retilíneas, previsíveis nem lógicas. A imagem não
encantava os olhos.
Em seguida, o olho da câmera adentrou pelos espaços do
hospital e começou a mostrar alguns pacientes psicóticos
conversando sozinhos, outros tremulando as mãos, esses
impregnados com medicamentos. O olho da câmera penetrou nos
corredores e revelou outros pacientes sentados em bancos
desconfortáveis, com o olhar fixo no infinito ou com a cabeça entre
as pernas. Nenhuma das imagens tinha som, nem fundo musical.
Achamos estranhíssimo aquilo. Pensávamos que se tratasse
de um filme de ficção, mas não era bem filmado. O cinegrafista
tremia a câmera, parecia amador. De vez em quando se
interrompia rapidamente o filme, e a câmera do estádio colocava a
face do mestre na tela. Ele meneava a cabeça, parecia estar
descontente. Não sabíamos o que se passava na sua mente, se
estava mais confuso do que nós ou se estava entendendo a
homenagem por um ângulo que não conseguíamos enxergar, ou se
estava condoído dos pacientes exibidos na tela. Talvez mais
adiante o filme o mostrasse irrigando aquele lugar com seus
sonhos, afeto e solidariedade.
De repente, como num filme de terror, o som começou a
aparecer. Todo o estádio levou um susto ao ouvir alguém gritando
no interior de um quarto, dizendo:
— Não! Não! Vá embora!
Era um paciente psiquiátrico desesperado. A câmera
direcionou seu foco para a porta desse quarto. Ela se abriu
lentamente e mostrou um paciente agoniado no fundo do quarto,
sentado na cama com as mãos tampando o rosto. Não parava de
gritar: ”Vá embora! Saia da minha vida!”. Estava muito aflito, num
estado de ansiedade incontrolável, e tentava afugentar os monstros
que assombravam a sua mente. Suas mãos continuavam sobre o
rosto. Flexionava o corpo sem parar, como algumas crianças
autistas. Vestia uma camiseta branca amarrotada, cujos botões
estavam presos nas posições erradas. Seu cabelo estava
desgrenhado, revelando descuido consigo mesmo, um marcante
auto-abandono.
A pessoa que o filmava perguntou-lhe:
— Que imagem o está deprimindo? ; O som não estava
perfeito, mas era possível ouvir:
— Tenho medo! Tenho medo! Socorro! Meus filhos vão
morrer! Ajudem-me a tirá-los desse lugar! — bradava ofegante,
dominado por um pânico indecifrável. Quem o filmava insistia na
pergunta:
— Estou aqui para ajudá-lo. Calma. O que o angustia?
Abalado, disse:
— Estou dentro de uma casa que está desabando. A casa está
lutando contra si mesma. — Em seguida, alucinando, o paciente
falou com os personagens que só ele via e ouvia. — Não! Não se
destruam! Vou ser soterrado! Não me deixem sem ar!
As pessoas do estádio ficaram mudas. Algumas começaram
se sentir asfixiadas. Nós também sentimos a garganta apertar. O
paciente começou a dizer que as estruturas da casa começavam a
lutar vorazmente entre si. Estávamos confusos com o filme.
Ninguém entedia nada. Nunca ouvíramos falar das partes de uma
casa digladiando uma com a outra. Era o ápice da loucura. Nem
mesmo entendíamos por que o cineasta filmara o caos psíquico
desse paciente. Não sabíamos nem se era um profissional de saúde
mental que usaria o filme para futura análise e tratamento do
paciente. Será que o mestre vai aparecer e resgatar esse paciente?,
pensei.
— Fale-me sobre suas visões — solicitou o câmera.
Sem tirar as mãos do rosto, o paciente, com a voz trêmula,
expressou:
— O teto está gritando: ”Eu sou a parte mais importante
dessa casa! Eu a protejo. Eu, somente eu, suporto o sol e as
tormentas”.
O cineasta, tentando extrair mais dados sobre as alucinações
do paciente, insistiu:
— Fale mais. Quanto mais falar, mais se aliviará. O paciente,
contorcendo-se de medo, bradou:
— As obras de arte estão me deixando surdo. Protestam,
protestam sem parar!
— O que elas dizem?
— Somos únicas nessa casa. Somos as mais caras. Todos os
que entram pela porta principal nos observam. Admiram-nos em
primeiro lugar! — Suando frio, o paciente tentou expelir a voz que
o ensurdecia: — Saia da minha mente! Deixe-me em paz!
Nesse momento, lembrei-me de mim mesmo no alto do
Edifício San Pablo. Não perdi a racionalidade, não fui seqüestrado
por alucinações, não me senti um moribundo enclausurado numa
masmorra fantasmagórica junto com meus filhos. Se eu vivera um
drama indizível, imagine a dor desse homem, que penetrara em
todas as fronteiras da loucura. Sua aflição causava arrepios em
mim e em toda a platéia.
Mônica, que também já tinha experimentado os vales
profundos da miséria emocional, falou de maneira assustada e
quase inaudível:
— Como pode a mente humana entrar em colapso e
desespero a esse nível?
O sofrimento exposto na tela era tão grande e cativava tanto
nossa atenção que por instantes esquecemos o que estávamos
fazendo naquele ambiente. O mestre continuava no centro do
palco, de costas para nós, com o olhar fixo na tela. Não era
possível definir seus sentimentos. Devia estar condoído da miséria
expressa solenemente na tela.
O paciente psiquiátrico disse, com a cabeça voltada para a
parede:
— Ninguém me entende! Só me dão remédios! — Em seguida
relatou que a mobília queria praticar canibalismo contra as outras
partes dessa casa. Bradou: — A mobília sob ataque de raiva quer
engolir as obras de arte. Grita contra elas: Eu sou a única parte
digna dessa casa. Eu dou conforto! Eu decoro!
De repente, olhei para os executivos do grupo Megasoft e os vi
sorrindo. Pensei comigo: não é possível uma reação dessas diante
de tanta dor. Esses caras sabem que o final será suave, regado a
felicidade. Certamente não são psicopatas. Como pode alguém
sorrir diante da desgraça dos outros?
E para completar a macabra filmagem, o paciente
assombrara-se com outra parte da casa. Dessa surgiu uma voz
mais orgulhosa, mais imponente e mais dominadora. O câmera,
interessado em captar os mínimos detalhes da sua mazela
psíquica, perguntou mais uma vez:
— Quem o está inquietando?
O paciente deu as costas para a câmera, tirou as mãos do
rosto e colocou-as contra a parede. Seus pulmões procuravam
desesperadamente o ar. A flutuação da camisa denunciava que
estava ofegante. O câmera insistiu, sem brandura:
— Fale sobre esses fantasmas! É sua chance de vomitar seus
monstros.
O paciente retomou suas reações iniciais. Gritou:
— Tenho medo! Tenho medo! O cofre ameaça destruir tudo.
Ameaça devorar toda a estrutura. Brada com voz de trovão: Eu
financio tudo. Eu comprei vocês. Eu os trouxe à existência.
Curvem-se diante do meu poder. Eu sou o deus dessa casa!
A respiração do paciente parecia a de um asmático. Jamais
eu vira alguém tão fragilizado. Jamais vira alguém tão necessitado.
Estava preste a ter um enfarto. Nesse momento, tentando sair do
calabouço, o paciente virou o rosto para a câmera e começou a
gritar desesperadamente:
— Vamos morrer soterrados. Tenho medo! Tenho medo!
Socorro! Tudo vai desabar.
Como pela primeira vez sua face ficou descoberta, o cineasta
deu um zoom e a captou num dose único. Seu rosto em pânico
ficou nas dimensões gigantescas do telão. Ao contemplarmos sua
face, não foi a sua casa que desabou, foi nosso mundo. Perdemos o
chão. Ficamos trêmulos. Perdemos a voz. Ficamos paralisados. A
cena era inacreditável, surreal. O paciente do filme era o mestre...
Não tive reação exterior, mas interiormente minha mente foi
invadida por uma enorme tempestade. Em pânico, eu gritava
dentro de mim: ”Não é possível! Seguimos um doente mental, um
psicótico. Não é possível!”. A experiência sociológica implodiu.
Fomos enganados. O ímpeto revolucionário revestiu-se da mais
plena fragilidade. Eu não sabia se tinha raiva de quem eu estava
seguindo ou compaixão por sua miséria. Não sabia se me punia ou
se me cobria de vergonha.
A platéia estava atônita. Assim como eu, as pessoas não
conseguiam acreditar que o personagem do palco fosse o mesmo
do filme, pois, apesar da semelhança, aquele que nós reputávamos
como mestre tinha barba um pouco mais comprida. Meus amigos
apertavam os braços uns dos outros, querendo ser acordados de
um sono que jamais queriam ter dormido.
O apresentador, para não deixar dúvidas, fez um gesto para
ligar o microfone do vendedor de sonhos. E como se estivesse num
tribunal de inquisição, perguntou:
— O senhor poderia confirmar ser o personagem do filme é o
senhor?
Todos fizeram silêncio. Torcíamos muito, mas muito mesmo,
para que ele dissesse que não. Que havia um engano, que era seu
sósia ou quem sabe um irmão gêmeo. Mas, fiel à sua consciência,
ele se virou para a multidão, depois fixou os olhos no seu grupo de
amigos, e, deixando escapar algumas lágrimas, disse sem meias
palavras:
— Sou eu. Sim, sou eu.
Em seguida, cortaram o som do seu microfone. Não
precisava, pois ele não ensaiou se defender.
O locutor fez um ar de deboche e disse em tom menor:
— Um doente mental — e mexeu a cabeça com ar de
satisfação. Logo após, elevou o tom de voz, voltou-se para uma
câmera de TV que filmava o evento e disse assoberbadamente:
— Senhoras e senhores, descobrimos a identidade do homem
que amotinava esta grande metrópole. Descobrimos as origens
daquele que incendiava a mente de milhares de pessoas. De fato,
ele é um grande fenômeno social. — E, apontando o dedo indicador
direito para ele, enfatizou com sarcasmo: — Eis aí o maior
impostor de todos os tempos. O maior espertalhão da sociedade. O
maior golpista, o maior ilusionista e o maior herege deste século.
E, para mostrar nossa gratidão, lhe entregamos o título de honra
de maior vendedor de loucura, pesadelo, lixo, falsidade, estupidez
que esta sociedade já produziu.
Nesse momento, fotos e mais fotos foram tiradas pelos
jornalistas convidados. Uma belíssima modelo saiu ao seu
encontrou e lhe entregou o diploma. Os organizadores tinham
planejado tudo nos mínimos detalhes. Por incrível que pareça, ele
não o recusou. Delicadamente o recebeu. Os discípulos estavam
perplexos, a platéia estava paralisada, não se ouvia nenhuma
conversa paralela.
Os músculos da minha face não se mexiam, meu raciocínio
estava aprisionado. Minha mente borbulhava perguntas: Todas as
idéias que ouvimos e que nos arrebataram saíram da mente de um
psicótico? Como é possível? O que fiz da minha vida? Mergulhei
num mar de sonhos ou de pesadelos? Saí de um suicídio físico e
entrei num suicídio intelectual? Psicótico ou sábio?
Após a revelação de que o paciente do filme era o homem que
seguíamos, os organizadores do evento dirigiram o rosto
prazerosamente para nós, querendo nos dizer que éramos o mais
excelente bando de trouxas, o maior grupo de otários que a
sociedade conhecera. Pareciam querer se vingar. Mas do quê? O
que estava por detrás dessa armadilha? Por que arrasar um
homem publicamente? Qual o motivo de tanta raiva contra um ser
humano aparentemente inofensivo?
Só mais tarde ficamos sabendo que, por ”culpa” de um dos
ousados discursos do mestre, ocorrera um desastre no valor das
ações da gigante internacional da moda La Femme, pertencente ao
grupo Megasoft. O desabamento do valor das ações se deu logo
após o mestre ter enfaticamente recomendado, no ”templo da
moda”, que nas etiquetas das grifes e no interior das lojas de
roupas deveria haver tarjas orientando que a beleza não pode ser
padronizada, que toda mulher tem sua beleza particular e que elas
jamais deveriam se identificar com modelos que representavam a
exceção genética na espécie humana.
O grande problema era que o diretor-presidente da gigante da
moda, que fora um dos organizadores do evento no estádio,
escrevera uma nota na imprensa dizendo que a proposta era um
absurdo, coisa de maluco. Não bastasse isso, cometera o erro de
colocar em destaque nessa nota uma frase infeliz de um brilhante
poeta, frase essa que cultivava o desastre da síndrome de Barbie.
Dizia: ”Que me desculpem as feias, mas beleza é fundamental”. A
nota havia corrido o mundo não apenas por meio da imprensa
escrita, mas também da internet, gerando debates acalorados na
mídia e produzindo uma reação de repúdio em cadeia à empresa.
Milhares de pessoas tinham enviado mensagens para as inúmeras
lojas do grupo La Femme espalhadas pelo mundo, contrapondo-se
à sua filosofia.
O resultado foi que as ações da empresa caíram trinta por
cento em dois meses, gerando perdas de mais um bilhão e
quinhentos milhões de dólares. Foi um acidente econômico. O
fenômeno da vingança, que só existe na espécie humana, mostrou
suas garras. Desmascarar o homem que causara tanto dano virou
questão de honra para os líderes dessa companhia, uma questão
de sobrevivência. Queriam um desmascaramento público para
reconquistar a credibilidade perdida.
Não sabíamos onde enfiar a cara no estádio. Perdemos a
coragem, o glamour e o entusiasmo. Eu, particularmente,
aprendera a amar esse homem, mas minhas energias se
esgotaram. Agora entendia a dor contida na simplista e impactante
frase de John Lennon, quando se dissolveram os Beatles: o sonho
acabou. ”Nosso movimento também se diluirá inevitavelmente”,
pensei. Mas quando imaginava que fosse esse o sentimento de todo
o grupo, me surpreendi com as mulheres, Mônica e Jurema. Eram
elas mais fortes que os homens? Não sei, mas sei que mostraram
um romantismo irracional. Disseram:
— Não importa se o mestre foi ou é psicótico. Estivemos com
ele nos aplausos, também estaremos nas vaias.
Dois homens também mostram um afeto ilógico:
— Sou mais louco que o chefinho. Pra onde vou? —
expressou Bartolomeu, completamente perdido.
Barnabé não ficou para trás. Enfatizou:
— Se ele é doido não sei, mas sei que me fez sentir-me gente.
Não o abandonarei. Também sou mais maluco que ele.
— E, espetando Bartolomeu, disse: — Mas menos maluco que
você, Boquinha.
— Thank you, amigo — respondeu, sentindo-se elogiado. O
mestre se preparou para sair. Deu as costas e tomou a direção da
entrada. A multidão ficou alvoroçada. Pensávamos que queriam
linchá-lo. De repente, ouvimos as pessoas gritarem em coro:
— Fale! Fale! Fale!
O estádio parecia que viria abaixo. Os executivos ficaram
preocupadíssimos. Para não provocarem um gravíssimo acidente
com tumultos e pisoteios e macularem ainda mais a imagem da
empresa, ligaram novamente o microfone dele e fizeram um gesto
para que retornasse e falasse. Certamente pensaram que ele
sujaria as próprias mãos dando explicações superficiais,
argumentos sem fundamentos. Desprezavam, assim, o doente
mental que tinham difamado. Verdadeiramente, não o conheciam.
Fitando a platéia e depois o grupo que o seguia, ele alçou
suavemente a voz e, sem medo de si mesmo e da imagem que
fariam dele, dissecou sua história como um microcirurgião disseca
pequeníssimas artérias e nervos.
Delicadamente nos contou uma história, a mais dramática
que já ouvi. Só que dessa vez não era uma parábola, mas a sua
história real, crua, desnuda. O homem que eu seguira mostrava
pela primeira vez as entranhas do seu ser. Fiquei cônscio de que
eu também verdadeiramente não o conhecia.
— Sim, fui doente mental, ou ainda sou. Os psiquiatras e
psicólogos, bem como vocês, é que devem me julgar. Internaramme
porque tive uma depressão gravíssima acompanhada por
confusão mental e alucinações. Minha crise depressiva foi regada
com o mais contundente sentimento de culpa. Uma culpa pelos
erros indecifráveis que cometi com pessoas que amava muitíssimo.
Nesse momento, fez uma pausa para respirar. Parecia que
queria reunir seu ser despedaçado, organizar o pensamento para
contar sua história dilacerada. ”Que erros o vendedor de sonhos
cometeu que o desequilibraram?”, refleti. ”Não era ele forte e
generoso? Não viveu o ápice da solidariedade e tolerância?” Para
nossa surpresa, ele declarou:
— Fui um homem rico, muito rico, e também poderoso.
Ultrapassei a todos os da minha geração. Jovens e idosos vinham
se aconselhar comigo. Onde eu colocava as mãos, meus negócios
prosperavam. Chamavam-me de Midas. Era criativo, ousado,
visionário, intuitivo, não tinha medo de caminhar por terrenos
inexplorados. Minha capacidade de me adaptar às intempéries e
reagir com mais vigor quando derrotado deixava a todos pasmos.
Mas, aos poucos, o sucesso que sempre achei que eu controlava
passou a me controlar, me envenenou, penetrou nos espaços
íntimos da minha mente. Assim, sem que me desse conta, perdi
minha simplicidade e me tornei um deus, um falso deus.
Estávamos pasmos com suas palavras. Ponderei: ”Será que
ele foi mesmo rico? Que poder era esse que ele teve? Será que não
está delirando de novo? Não andava com vestes rasgadas? Não
dependíamos da benevolência dos outros para sobreviver?”. Ao
ouvir a declaração do mestre, o humor de Bartolomeu voltou como
um raio:
— Esse é meu chefinho. Não dou tiro errado. Sabia que era
milionário. — Em seguida caiu em si, cocou a cabeça e perguntou,
inconformado: — Mas por que vivíamos na dureza?
Não havia explicação. ”Talvez tivesse falido, como tantos
empresários”, pensei. ”Mas pode uma falência financeira
desencadear uma grave doença psíquica? Pode ela levar ao
rompimento da sanidade e imergir nos terrenos da loucura?”
Interrompendo meus pensamentos, ele continuou seu relato. Teve
a coragem de confessar:
— Progredir, competir, ser o primeiro, ser o melhor, ainda que
dentro dos limites da ética, era meu alvo. Não queria ser mais um,
queria ser único. Tornei-me uma das mais excelentes máquinas de
trabalhar e fazer dinheiro. O problema não é quando possuímos
dinheiro, ainda que muito, o problema é quando o dinheiro nos
possui. Quando isso ocorreu na minha história foi que entendi que
o dinheiro pode empobrecer. Tornei-me o mais miserável dos
homens.
Enquanto o ouvia, fiquei embasbacado diante de um homem
supostamente poderoso, mas que tirara a maquiagem, despira as
máscaras e honestamente se tornara crítico de si mesmo. Procurei
me lembrar dos grandes políticos da história, e não me veio à
mente ninguém com tal coragem. Olhei para mim e percebi que
também não tinha tal ousadia. Suas palavras audaciosas
começaram a me trazer alento. Comecei novamente a admirar o
homem que seguíamos. Em seguida nos relatou que ele, sua
esposa, seu casal de filhos e mais dois casais de amigos iriam fazer
um ecoturismo, uma excitante viagem de férias para conhecer uma
das grandes florestas do planeta que ainda estava preservada.
Mas tempo para ele era um escasso artigo, nos falou. Por isso
programou a viagem meses antes na sua concorrida agenda.
Estava tudo certo, mas, como sempre, mais um grande
compromisso surgiu: teve de fazer às pressas uma
videoconferência internacional para investidores. Envolvia somas
enormes de dinheiro. Sua família e o grupo de amigos adiaram a
viagem por um dia para esperá-lo. No dia seguinte, teve de resolver
às pressas um negócio que já vinha se arrastando: tinha de
realizar a compra de outra grande empresa, caso contrário poderia
perdê-la para os concorrentes. Centenas de milhões de dólares
estavam em jogo. Adiaram outra vez a viagem. No dia em que
viajariam, os diretores de sua companhia de petróleo apresentaram
uma nova problemática. Decisões fundamentais teriam de ser
tomadas. Após essa exposição, ele comentou, inconsolado, para a
platéia do estádio:
— Para não adiar a viagem mais uma vez, pedi mil desculpas
e solicitei que meus filhos, esposa e amigos fossem na frente, que
depois iria encontrá-los num vôo particular. Minha querida esposa
estava inconformada. Julieta, minha querida filha de sete anos,
apesar de estar entristecida, me beijou e me disse:
”Papai, você é o melhor pai do mundo”. Fernando, meu
amável filho de nove anos, também me beijou e me disse: ”Você é o
melhor pai do mundo, mas o mais ocupado também”. Respondi:
”Obrigado, meu filhos, mas um dia o papai terá mais tempo
para os melhores filhos do mundo”. — E mudando o semblante do
rosto, deu um grande suspiro e disse: — Mas não deu tempo...
— Fez uma pausa e começou a chorar. Com a voz embargada,
falou para a multidão comovida:
— Enquanto eu estava na reunião de trabalho, horas depois
que pegaram o vôo, fui interrompido pela minha secretaria, que
disse que um grande avião havia caído. Meu coração começou a
palpitar. Atento aos noticiários televisivos, entrei em desespero,
pois noticiavam que um avião caíra numa densa floresta e não
sabiam se havia sobreviventes. Era o avião em que eles estavam.
Meu corpo desfaleceu. Chorava inconsoladamente. Perdi tudo o
que tinha. Não tinha ar para respirar, solo para caminhar e razão
para viver. Entre lágrimas e dor, reuni equipes de resgate, mas não
encontraram os corpos deles; o avião tinha se incendiado. Nem ao
menos pude me despedir das pessoas mais importantes da minha
vida, olhar nos olhos deles e tocar na sua pele. Parece que não se
foram.
Do dia para a noite, o homem invejado tornou-se objeto de
penúria, o homem imbatível tornou-se o mais frágil dos seres. E
como sobremesa da sua indecifrável dor, tinha que lidar
diariamente com pensamentos que o torturavam de sentimento de
culpa.
— Os psicólogos que me assistiram queriam eliminar minha
culpabilidade. Tentaram me dizer que não tive responsabilidade
nessa perda. Direta não, mas indireta sim. Tentaram me proteger
em vez de me fazer enfrentar o monstro da culpa, assumi-lo,
trabalhá-lo, usá-lo, domesticá-lo. Fiz também alguns tratamentos
psiquiátricos. Os medicamentos entravam em meu cérebro, mas
não no território da culpa. Não aliviavam minha autopunição.
Eram bons profissionais, mas eu era resistente. Enclausurei-me
em meu mundo.
Em seguida, continuou a penetrar nos capítulos insólitos do
seu passado. E começou a se questionar:
— O que construí? Por que não dei prioridade ao que mais
amava? Por que nunca tive coragem de fazer uma cirurgia em
minha agenda? Quando é tempo de desacelerar? O que é mais
inadiável do que a própria vida? O que adianta ganhar todo o ouro
do mundo e perdê-la?
Que perdas! Que peso emocional! Que dor insuportável!
Enquanto o ouvia, comecei a entender que todos nós, por mais
sucesso que tenhamos, perdemos. Ninguém voa para sempre num
céu de brigadeiro, ninguém navega eternamente numa lagoa
plácida. Uns perdem mais, outros menos, uns sofrem perdas
evitáveis, outros inevitáveis. Uns perdem no teatro social, outros
no teatro psíquico. E se alguém conseguir passar ileso pela vida,
uma coisa perderá: a juventude. Fui um homem de perdas e
seguia um mestre em perdas. Mas, de repente, rememorando os
últimos meses em que estivéramos juntos, fiquei pasmo. Esse
homem está mutilado diante de uma imensa platéia. Mas como
conseguia dançar? Por que era o mais alegre dos caminhantes? Por
que seu humor nos contagiava? Como conseguia ser tolerante se a
vida lhe fora intolerante? Como vivia suavemente, se carregava
pesos insuportáveis?
Enquanto fazia esses questionamentos, subitamente olhei
para os organizadores do evento e os vi abaladíssimos; parece que
eles desconheciam quem era o homem que tinham desmascarado.
Não sabiam a verdadeira identidade do psicótico de quem eles
tinham debochado. Olhei para a multidão e vi pessoas chorando,
seja porque tinham se condoído dele, seja porque tivessem viajado
também pelo território das suas perdas. Nesse ínterim, a
professora Jurema segurou minhas mãos e, apertando-as, me
perturbou ainda mais. Disse-me:
— Mas eu conheço essa história. É ele!
Sua voz se sufocou, e minha mente contraiu-se. Indaguei aos
seus ouvidos:
— O que você está me dizendo, professora?
— É ele! Os pequenos sargentos prepararam uma emboscada
para o seu grande general. Como isso é possível? — falou em
código, indignada. Jurema estava tão emocionada que não
conseguia expandir seu raciocínio.
— Não estou entendendo! Quem é o mestre? — indaguei
novamente.
Ela olhou fixamente para os líderes que tinham organizado o
evento e disse algo que me abalou.
— É incrível. Ele está pisando no palco que lhe pertence. —
Depois disso não conseguiu dizer mais nada.
A minha mente entrou em parafuso, como pipas que sofrem
queda livre quando rompem as linhas que as sustentam no ar. Ao
repetir a última frase: ”Ele está pisando num palco que é seu”,
comecei a entender o que a professora queria dizer. ”Inacreditável!
Ele é o proprietário do poderoso grupo Megasoft? Os sargentos
prepararam uma armadilha para seu próprio general, pensando
que fosse um soldado raso? Não é isto um absurdo? Mas ele está
morto? Ou esteve ilhado?”, pensei. ”Mas o mestre não criticara
drasticamente o líder desse grupo no jantar na casa de dona
Jurema? Não é possível! Estamos delirando”, ponderei.
Um filme começou a rodar em minha mente. Veio-me à
memória que o mestre se envolvera em muitos eventos ligados a
essa corporação. Ele me resgatara no San Pablo, um edifício do
grupo Megasoft. E misteriosamente fora quase baleado nesse
edifício. Fora espancado no templo da informática aparentemente a
pedido de um executivo do mesmo grupo e se calara. Fora
caluniado por um jornalista do sistema de comunicação desse
grupo e silenciara. Agora era humilhado por líderes da mesma
corporação e não se rebelara. O que estava acontecendo? O que
tudo isso significava?
Respirei profundamente, tentando ordenar o turbilhão de
idéias. Coloquei as mãos no rosto e disse para mim: ”Isso não pode
ser verdade! Ou é? Não, não pode ser! Somos especialistas em
inventar fatos quando estamos estressados!” Peguei no braço
direito da professora Jurema e indaguei:
— Como pode um dos homens mais poderosos do planeta
dormir debaixo de pontes? Como pode um bilionário comer sobras
de alimentos? Isso é o supra-sumo da ilógica! — A professora
movimentou a cabeça, revelando que estava tão perturbada e
confusa quanto eu.
E antes que eu me aventurasse a me perder mais ainda no
carretel das minhas indagações, o homem que seguíamos cruzou
as avenidas dos nossos pensamentos e nos disse que, devido às
suas dramáticas perdas, suas crises se tornaram tão intensas que
começou a perder a racionalidade. Comentou que suas idéias não
conseguiam se organizar. Recusava-se a se alimentar, corria risco
de vida e, por fim, fora internado num hospital psiquiátrico. No
hospital, começara a ter a visão fantasmagórica que o filme
mostrara. Seu cérebro parecia que iria implodir.
Num tom mais seguro, retomou a história que os
organizadores tinham usado para destruí-lo publicamente. Contou
a segunda parte, que certamente desconheciam.
— Depois do teto, do cofre e de outras estruturas que
disputavam agressivamente entre si para mostrar sua supremacia,
ouvi outra área da casa se manifestando, mas dessa vez era uma
voz suave, meiga, singela. Era uma voz que sussurrava debaixo da
terra e não me aterrorizava.
E olhando para a platéia, o mestre afirmou: — Era a voz do
alicerce. Diferentemente de todas as demais estruturas dessa
grande casa, o alicerce não queria ser a maior, a melhor nem a
mais importante. Queria ser apenas reconhecido como parte do
conjunto.
Eu esforçava-me para entender o que o misterioso homem
que eu seguira queria revelar, mas era difícil. Começando a clarear
nosso intelecto, acrescentou:
— Todavia, ao ouvir a voz do alicerce, todas as partes o
condenaram veementemente. O cofre foi o primeiro. Saturado de
orgulho, disse: ”Você nos envergonha, pois é a parte mais suja
desta casa”. O teto, embriagado de soberba, o desprezou dizendo:
”Jamais alguém que entrou nesta casa perguntou sobre o
alicerce. Você não merece destaque”. As obras de arte declararam
arrogantemente: ”Você é indigno de reivindicar seu valor, assuma
sua posição inferior”. A mobília foi taxativa: ”Você é insignificante.
Olhe para onde está localizado”. E assim o alicerce foi rejeitado por
todas as demais estruturas dessa casa. Humilhado, rechaçado e
sem espaço para continuar fazendo parte daquela construção,
resolveu deixá-la. Qual o resultado? — perguntou à multidão.
Todos disseram coletivamente, até os adolescentes que estavam
presentes no estádio:
— A casa desabou!.
— Sim, a casa desmoronou. A minha casa, que representa a
minha personalidade, desmoronou porque desprezei o meu
alicerce. Quando desabou, eu briguei com Deus. Gritei: ”Quem é
você, que silencia diante do meu caos? Você não intervém porque
não existe? Ou existe e não se importa com a humanidade?”.
Briguei com os psiquiatras e psicólogos. Briguei com as teorias
psicológicas e com os medicamentos. Briguei com a vida. Achei-a
injusta comigo, um poço de incertezas. Briguei com meus bens.
Briguei com o tempo. Enfim, com tudo e com todos. Mas quando o
alicerce se manifestou, fui iluminado, tive um grande insight,
compreendi que estava profundamente errado. Antes de tudo,
havia brigado com meu alicerce. Havia atirado no lixo os meus
principais valores, as minhas prioridades.
Diante dessa explanação, começávamos a entender um pouco
alguns dos segredos desse fascinante vendedor de sonhos. Sem
meias palavras, ele começou a interpretar a sua visão alucinatória.
Disse que valorizara muitíssimo o poder financeiro, representado
pelo cofre. Dera importância fenomenal à sua capacidade
intelectual para suportar os desafios, representada pelo teto.
Exaltara o prestígio social e a fama, representados pelas obras de
arte. Regalara-se no conforto e nos prazeres da vida, representados
pela mobília. E afirmou:
— Mas traí e neguei meus alicerces. Coloquei o amor dos
meus filhos e de minha esposa debaixo do tapete das minhas
atividades e preocupações. Dei tudo para eles, mas esqueci de dar
o que para mim era um detalhe, mas para eles era fundamental: a
mim mesmo. Meus amigos ficaram em terceiro plano, meus sonhos
em último. Como é possível ser um bom pai, um bom amante e um
bom amigo, se as pessoas que amamos estão fora da nossa
agenda? Só um hipócrita acreditaria nisso. Fui um hipócrita, um
notável hipócrita que muitos admiravam e em quem se
espelhavam.
Disse com intrepidez que escondia seus erros, suas falhas,
suas atitudes estúpidas, que representavam a parte suja do seu
alicerce, mas que eram fundamentais para a estrutura da sua
personalidade. Agora entendo o que ele queria dizer com o
pensamento: ”Quem não reconhece suas mazelas tem uma dívida
impagável consigo mesmo. Esfacela a sua humanidade”.
Ao ouvir suas cortantes palavras, comecei a compreender o
homem que me arrebatara. Não podia ser um homem comum.
Tinha de ser mais do que um pensador, mais do que uma mente
brilhante, uma cultura incomum. Pois um homem com tais
características poderia ter minha admiração, mas não me
cativaria, não aplainaria meu ego infectado de orgulho. Tinha de
ser alguém que visitara os vales escabrosos do medo, que se
atolara no charco dos conflitos psíquicos e sociais, que fora
dilacerado pelos predadores da mente e se perdera nos labirintos
da loucura. E depois de tudo isso se reconstruíra com uma força
incomum e escrevera um romance com a própria existência. Sim,
tal homem é que eu seguira.
Suas idéias eram penetrantes como as de um filósofo, e seu
humor, vibrante como o de um palhaço. Suas reações eram
paradoxais, flutuavam entre os extremos. Era procurado por
ícones da sociedade, mas não fazia diferença entre uma prostituta
e um puritano, entre um intelectual e um doente mental. Sua
sensibilidade chocava-nos.
Toda vez que eu via alguém preso pela polícia diante das
câmeras de TV, ele escondia o rosto, queria proteger sua imagem.
O homem que estava à minha frente não se escondia. Lembro-me
do que dissera ao psiquiatra, no edifício em que nos conhecemos,
que havia dois tipos de loucura — e ousara dizer que a dele era
visível. Agora, quando lhe haviam preparado, com a nossa ajuda, a
mais desumana emboscada, ele, sem vergonha do seu passado,
novamente declarara suas chagas diante de mais de cinqüenta mil
pessoas. Sua honestidade era cristalina.
Quando o ouvi confessar que traíra seu alicerce, minha
mente foi invadida por fenômenos sociológicos. Quem não é
traidor? Que puritano não é em alguns momentos um crápula
consigo mesmo? Que religioso não trai a Deus com sua soberba e
suas intenções subjacentes? Que idealista não fere seus ideais
políticos em nome de interesses subterrâneos? Que ser humano
não trai sua saúde por algumas horas trabalhadas a mais? Quem
não trai seu sono por transformar a cama em um leito de tensões?
Quem não trai os filhos por suas ambições, com argumentos de
que trabalha para eles? Quem não trai o amor do homem ou da
mulher de sua vida com seus prejulgamentos ou pela escassez de
diálogo e tolerância?
Traímos a ciência com nossas verdades absolutas, traímos
nossos alunos com nossa incapacidade de ouvi-los, traímos a
natureza com nosso desenvolvimento. Como o mestre nos alertou,
traímos a humanidade quando hasteamos a bandeira de que
somos judeus, palestinos, americanos, europeus, chineses,
brancos, negros, cristãos, mulçumanos. Somos todos traidores que
precisam desesperadamente comprar sonhos. Temos todos um
”Judas” alojado em nossa psique. Especialista em esconder seu
alicerce debaixo do tapete do ativismo, da ética, da moralidade, da
justiça social.
Parecia que ele lia meus pensamentos. Percebendo minha
introspecção, ele fitou meus olhos e depois elevou os dele para a
platéia, abordando-a:
— A interpretação da visão — que não importa que alguns
chamem de alucinação — me fez reconhecer que meu adoecimento
psíquico era muito anterior às minhas perdas. — E indicando que
era um ser humano que saiu das cinzas, resgatou o bom humor e
brincou com a multidão: — Cuidado, senhoras e senhores, quem
lhes fala é um desvairado de longa data.
A platéia saiu do estado de comoção para o sorriso. Era uma
cena difícil de descrever.
— Depois que tive ciência de que havia traído meus alicerces,
eu precisava encontrar os fundamentos da minha personalidade.
Foi então que saí do hospital sozinho e me isolei por um longo
período para procurar por mim mesmo. Foi uma longa trajetória.
Perdi-me muitas vezes durante o percurso. Após esse tempo, saí do
meu casulo e me tornei uma pequena andorinha que plana sobre
as ruas e avenidas, estimulando as pessoas a procurarem seu
próprio ser. — E novamente expressou bom humor dizendo: —
Cuidado, amigos, essa loucura é contagiante.
As pessoas sorriram novamente e irromperam em aplausos,
como se aspirassem a esse contágio, tal qual eu, Bartolomeu,
Barnabé, Jurema, Mônica, Dimas e tantos outros. Recordo como
se fosse hoje o dia em que, querendo eu desistir de tudo, ele me
bombardeou com uma poesia cujos pensamentos me fizeram
reconciliar-me com meus alicerces. Até hoje alguns desses
pensamentos ecoam em minha mente:
Seja anulado no parêntese do tempo o dia em que
este homem nasceu!
Que na manhã desse dia sejam dissipados os
orvalhos
que umedeciam a relva!
Que a noite em que este homem foi concebido seja
usurpada pela angústia
Resgate-se dessa noite o brilho das estrelas que
pontilhavam o céu!
Recolham-se da sua infância seus sorrisos e seus
medos!
Anulem-se da sua meninice suas peripécias e suas
aventuras!
Risquem-se da sua maturidade seus sonhos e
pesadelos,
sua lucidez e suas loucuras.
Fomos contagiados por um vendedor de idéias que nos
ensinou a não negar o que somos. Antes desse contágio, éramos
todos ”normais”, estávamos todos doentes. Queríamos de alguma
forma ser deuses, sem saber que ser deus é andar sobrecarregado,
tenso, pesado, com o compromisso neurótico de ser perfeito, de se
preocupar com a imagem social, de dar importância vital para a
opinião alheia, de se cobrar, se punir, exigir. Perdemos a leveza do
ser. Parecíamos zumbis engessados pelos nossos pensamentos
estreitos. Fomos educados para trabalhar, crescer, progredir e
infelizmente também para ser especialistas em trair a nossa
essência no diminuto parêntese do tempo em que existimos. Em
que fábrica de loucura vivemos?

Se eu pudesse voltar no tempo

Após revelar e interpretar a história da grande casa, o mestre,
sob forte inspiração, proferiu suas últimas idéias. Mais uma vez
não exaltou sua grandeza, mas sua pequenez. Mais uma vez fez
poesia no deserto, quando seus lábios ainda estavam sedentos.
Olhou para o vazio, como se estivesse em outra esfera, e confundiu
nossa mente. Demonstrou um relacionamento informal diante de
um Deus desconhecido para mim. Esquecendo que estava perante
o grande estádio, bradou:
— Deus, quem és tu? Por que esconde sua face atrás do
lençol do tempo e não acusa as minhas insanidades? Falta-me
sabedoria, e tu o sabes muito bem. Com os pés, piso na superfície
do solo, mas com a mente caminho na superfície do conhecimento.
Estou mortalmente abatido pela soberba, achando que sei alguma
coisa. Até quando digo que não sei, manifesto minha soberba de
que sei que não sei.
Depois dessas palavras, abaixou os olhos, observou
rapidamente os líderes que o odiavam e depois a platéia, e fez um
discurso filosófico que penetrou sorrateiramente nos recônditos do
nosso ser.
— A vida é longuíssima para se errar, mas assombrosamente
curta para se viver. A consciência da brevidade da vida perturba a
vaidade dos meus neurônios e me faz ver que sou um caminhante
que cintila nas curvas da existência e se dissipa aos primeiros
raios do tempo. Nesse breve intervalo entre cintilar e dissipar, ando
à procura de quem sou. Procurei-me em muitos lugares, mas me
achei num lugar anônimo, no único lugar onde as vaias e os
aplausos são a mesma coisa, o único lugar onde ninguém pode
entrar sem permitirmos, nem nós mesmos.
”Ah! Se eu pudesse retornar no tempo! Conquistaria menos
poder e teria mais poder de conquistar. Beberia algumas doses de
irresponsabilidade, me colocaria menos como aparelho de resolver
problemas e me permitiria relaxar, pensar no abstrato, refletir
sobre os mistérios que me cercam.
”Se eu pudesse retornar no tempo, procuraria meus amigos
da juventude. Onde estão? Quem está vivo? Eu os procuraria e
reviveria as experiências singelas colhidas no jardim da
simplicidade, onde não havia as ervas daninhas do status nem a
sedução do poder financeiro.
”Se eu pudesse retornar, daria mais telefonemas para a
mulher da minha vida nos intervalos das reuniões. Procuraria ser
um profissional mais estúpido e um amante mais intenso. Seria
mais bem-humorado e menos pragmático, menos lógico e mais
romântico. Escreveria poesias tolas de amor. Diria mais vezes ’eu
te amo!’. Reconheceria sem medo: ’Perdoe-me por trocá-la pelas
reuniões de trabalho! Não desista de mim’.
”Ah, se eu pudesse retornar nas asas do tempo! Beijaria mais
meus filhos, brincaria muito mais, curtiria sua infância como a
terra seca absorve a água. Sairia na chuva com eles, andaria
descalço na terra, subiria em árvores. Teria menos medo que se
ferissem e se gripassem, e mais medo de que se contaminassem
com o sistema social. Seria mais livre no presente e menos escravo
do futuro. Trabalharia menos para lhes dar o mundo e me
esforçaria muito mais para lhes dar o meu mundo.”
E observando atentamente o esplendoroso estádio, suas
colunas, teto, assento, completou, intensamente comovido:
— Se eu pudesse retornar no tempo, daria todo o meu
dinheiro para ter mais um dia com eles e faria desse dia um
momento eterno. Mas eles se foram; as únicas vozes que ouço são
as que ficaram ocultas nos escombros da minha memória: ”Papai,
você é o melhor pai do mundo, mas o mais ocupado também”.
Após declamar essa poesia, lágrimas escorriam
volumosamente pela sua face, ratificando que os grandes homens
também choram. E finalizou com estas palavras:
— O passado é meu algoz, não me permite o retorno, mas o
presente levanta generosamente meu semblante descaído e me faz
enxergar que não posso mudar o que fui, mas posso construir o
que serei. Podem me chamar de louco, psicótico, maluco, não
importa. O que importa é que, como todo mortal, um dia
terminarei o show da existência no pequeno palco de um túmulo,
diante de uma platéia em lágrimas.
Esse último pensamento tocou as raízes da minha mente.
Respirando profundamente, finalizou suas palavras:
— Nesse dia, não quero que digam: ”Eis que nesse túmulo
repousa um homem rico, famoso e poderoso, cujos feitos estão nos
anais da história”. E nem que digam: ”Eis que jaz nele um homem
ético e justo”. Pois isso é mera obrigação. Mas espero que digam:
”Eis que nesse túmulo repousa um simples caminhante que
entendeu um pouco o que é ser um ser humano, que aprendeu um
pouco a ser apaixonado pela humanidade e conseguiu um pouco
vender sonhos para outros passantes...”.
Nesse momento, deu as costas para a platéia e saiu sem se
despedir. A multidão presente no estádio rompeu o silêncio,
levantou-se e começou a aplaudi-lo ininterruptamente. Seus
discípulos não suportaram, verteram lágrimas. Estávamos
aprendendo também a perder o medo de nos emocionar em
público. Os seus supostos inimigos também se levantaram. Dois
deles o aplaudiram. O diretor-presidente ficou inerte, não sabia
onde enfiar a cara.
De repente, um garoto rompeu o esquema de segurança,
subiu no palco e correu atrás dele. Deu-lhe um abraço afetivo e
prolongado. Era Antônio, o jovem de doze anos que estivera
desesperado no velório do seu pai, velório esse que o vendedor de
sonhos havia transformado num ato solene de homenagem. Depois
do abraço, ele disse:
— Perdi meu pai, mas você me ensinou a não perder a fé na
vida. Muito obrigado.
O mestre olhou para o jovem e, comovido, o surpreendeu.
— Perdi meus filhos, mas você também me ensinou a não
perder a fé na vida. Muito obrigado.
— Deixe-me segui-lo — pediu o jovem.
— Há quanto tempo a escola está em você?
— Estou na sexta série.
— Você não entendeu a pergunta. Não disse em que ano você
está na escola, mas há quanto tempo a escola está em você.
Eu, um professor que havia feito da arte de ensinar meu
mundo, nunca vi alguém formular essa pergunta, ainda mais a um
jovem. O garoto ficou perdido.
— Não entendo a pergunta.
Suspirando e fitando-o, o mercador de idéias disse-lhe:
— Pois o dia em que entender, você se tornará um vendedor
de sonhos tal como eu, e nas horas disponíveis poderá me seguir.
O jovem saiu pensativo e confuso do palco. Mas, enquanto
caminhava, um fenômeno aconteceu. Sua mente foi iluminada. A
câmera do estádio o filmava. Ela captou a mudança de seu
semblante. Estava irradiante de alegria. Em vez de ir para seu
lugar, ele se juntou a nós. Todos queríamos entender o que
ocorrera, mas não entendemos naquele momento.
O mestre continuou a sair. Partiu sem direção, sem agenda,
vivendo cada dia sem pressa, sem mapa, como o vento que sopra e
ninguém sabe de onde vem, nem para onde vai. Dessa vez saiu
sem nos convidar a segui-lo. Ficamos profundamente
entristecidos.
Será que nos separaremos para sempre? Será que o sonho de
vender sonhos acabou? O que faremos? Para onde vamos?
Escreverei outras histórias? Não sabemos. Só sabemos que somos
meninos brincando no anfiteatro do tempo e que entendem muito
pouco os mistérios da existência.
Quem realmente é o mestre? De onde procede? Qual a sua
formação acadêmica? É ele um dos homens mais poderosos do
mundo ou um miserável com uma inteligência incomum? Também
continuamos sem saber até este momento. Mas não importa. O
que importa é que rompemos o cárcere da rotina, também saímos
do casulo e nos tornamos pequenos caminhantes.
Bartolomeu e Barnabé tocaram em meus ombros. Não sei se
haviam entendido tudo o que ocorrera no estádio ou se não
entenderam nada. Honestos, disseram para mim:
— Não nos siga. Estamos perdidos.
Abracei-os calorosamente. Aprendi a amar homens de um
modo não previsto nos textos de psicologia e sociologia. Apesar das
incertezas em relação ao nosso futuro, olhamos uns para os outros
e dissemos:
— Ah! Eu adoro esta vida!
Os demais membros do grupo se juntaram ao abraço. Talvez
estivéssemos nos despedindo ali para sempre. Todavia, no último
passo antes de sair do palco, o mestre se virou e olhou para nós.
Nossos olhares se cruzaram lenta e intensamente. Nossas retinas
entraram em êxtase diante dessa imagem. Imediatamente nosso
sonho se reacendeu. Entramos no palco e saímos em seu encalço,
sabendo que imprevisíveis aventuras estariam à nossa frente e
vendáveis inesperados também. Saímos cantando euforicamente
nossa canção:
Sou apenas um caminhante Que perdeu o medo de se perder
Estou seguro de que sou imperfeito Podem me chamar de louco
Podem zombar das minhas idéias Não importa!
O que importa é que sou um caminhante Que vende sonhos
para os passantes , Não tenho bússola nem agenda Não tenho
nada, mas tenho tudo Sou apenas um caminhante À procura de
mim mesmo.
FIM. Augusto Cury