sábado, 29 de janeiro de 2011

Por que festejamos o Ano-Novo?


Essa celebração está simbolicamente associada à renovação da vida e faz parte da tradição de diversos povos. O Ano-Novo nem sempre acontece no dia 1º- de janeiro. Essa data é válida para a maioria dos países, mas em algumas nações, como China e Vietnã, que seguem o calendário lunar, a passagem do ano não tem uma data fixa.Um dos registros mais antigos de comemoração do Ano-Novo é um festival chamado Zagmuk, realizado há cerca de 4 mil anos na Mesopotâmia, região do Oriente Médio que abrigava uma das mais antigas civilizações do planeta. Para eles, esse era um momento crucial de suas vidas.Com a chegada do inverno, os mesopotâmios acreditavam que os monstros ficavam irados e que tal fúria só seria aplacada por sua maior divindade, conhecida como Marduk – além dele, os mesopotâmios adoravam vários outros deuses. Assim, o festival de Ano-Novo, que tinha 12 dias de duração, era realizado com o objetivo de ajudar Marduk em sua batalha contra as forças do mal. Ritual semelhante foi incorporado por outros povos, como persas e babilônicos.Gregos e romanos também se inspiraram na cultura da Mesopotâmia e passaram a comemorar o Ano-Novo. Os romanos, por exemplo, tinham um festival chamado Saturnália, em homenagem a Saturno, que se estendia de 17 de dezembro a 1º- de janeiro.

Todos os povos comemoram o Ano Novo?


A maioria das culturas celebra a passagem de um ano para o outro. A data, em todas as civilizações, está simbolicamente associada à renovação da vida, ao começo de um novo ciclo. O mais antigo registro de comemoração pertence aos babilônios, povo que viveu no Oriente Médio há cerca de 4 mil anos. Hoje, a data do Ano Novo varia muito de uma cultura para outra. O dia mais celebrado é o 31 de dezembro, comemorado com fogos de artifício nos quatro cantos do planeta. Sua origem remonta à época do Império Romano, mas só ganhou o mundo em 1582, quando o calendário gregoriano, usado atualmente em quase todo o globo, foi oficialmente adotado pela Igreja Católica Romana. Alguns países do Oriente, no entanto, seguem um calendário diferente e celebram a passagem de ano em outra data. É o caso dos chineses, que são regidos pelo calendário lunar – e não o solar, como nós do Ocidente. O Ano Novo na China, conhecido como Festa da Primavera, não tem data fixa e costuma ocorrer em janeiro ou fevereiro. Judeus e muçulmanos também seguem o calendário lunar. Para os judeus a passagem de ano, chamada de Rosh Hashaná, normalmente cai em setembro ou outubro. Já para os muçulmanos, a data festiva acontece em junho ou julho.

A humildade.


O filósofo grego Sócrates foi um dos poucos personagens históricos que mudaram os rumos do pensamento humano sem ter deixado uma única linha por escrito. Outros membros desse seleto clube são Buda e Jesus Cristo; ao contrário deles, Sócrates não fundou religião alguma, mas sua vida e personalidade estão até hoje cercadas por uma aura de mistério muito próxima à dos místicos e dos santos (no Islã medieval, aliás, ele era conhecido como o “profeta da Grécia antiga”). Considerado por alguns historiadores como o fundador da filosofia ocidental, ele é até hoje uma das figuras mais controversas e obscuras na história das ideias: tudo o que sabemos sobre ele é um punhado de fatos esparsos, relatados nas obras nada imparciais de seus fervorosos discípulos e seus igualmente entusiasmados detratores. O amor e o ódio a Sócrates, por sinal, são dois vetores constantes na história da filosofia: um jogo de veneração e repulsa que já rendeu muito arranca-rabo metafísico.

Grande parte do que sabemos sobre Sócrates está contido na obra de seu discípulo mais famoso, Platão – nos textos conhecidos como Diálogos, ele retratou as incansáveis discussões filosóficas entabuladas pelo mestre. Uma das questões mais espinhosas na história da filosofia é, precisamente, fazer a distinção entre o pensamento de Sócrates e o de seu discípulo-biógrafo. Contudo, por mais difícil que seja determinar o teor exato das ideias socráticas, o que ninguém nega é a importância descomunal do método de filosofar empregado por ele: a dialética ou, tirando em miúdos, a arte do diálogo. Para compreendê- la, é preciso dar uma olhadela no fascinante mundo em que Sócrates viveu e filosofou – a Grécia do século 5 a.C.

Quando Sócrates nasceu, por volta de 469 a.C., os gregos haviam acabado de derrotar a Pérsia – a superpotência expansionista da época – nas chamadas Guerras Médicas. O triunfo militar abriu as portas para um dos períodos mais férteis da civilização ocidental. Atenas se tornou senhora de um vasto império marítimo e centro de uma cultura efervescente. Por meio de uma série de reformas políticas, os atenienses aperfeiçoaram o sistema de governo que haviam adotado no século 6 a.C.: a democracia. A cada mês, os cidadãos com mais de 30 anos se reuniam em uma grande Assembleia para debater leis e escolher magistrados. Cada um tinha o direito de defender suas ideias em discursos públicos. Por isso, a arte de falar bem – para convencer, para dissuadir ou mesmo para engambelar – se tornou uma das ocupações favoritas entre os atenienses de todas as classes.

A arte do diálogo
É nesse contexto que surgem os sofistas – trupe de intelectuais itinerantes que, em troca de remunerações graúdas, ensinavam as manhas da retórica aos jovens atenienses com ambições políticas. Até então, a filosofia grega se ocupava principalmente de assuntos cosmológicos, como a natureza dos astros e a origem do universo. Os sofistas mudaram essa equação: para eles, o objeto da reflexão filosófica era o próprio homem. Foi um sofista chamado Protágoras quem cunhou uma das frases hoje utilizadas para descrever o espírito daquela época: “O homem é a medida de todas as coisas”. Outra grande inovação introduzida por eles foi o uso do diálogo como método de reflexão e persuasão. Até então, pensadores e políticos costumavam deslindar suas ideias em longos monólogos, emitidos do alto de tribunas, para audiências que podiam interferir apenas com aplausos ou apupos. Já os sofistas preferiam exibir suas habilidades lógicas e seus floreios argumentativos em debates cara a cara, em que dois ou mais interlocutores se digladiavam na defesa de ideias opostas. Esse método dinâmico e vivaz fez grande sucesso em meio à juventude ateniense, que acorria em pencas para assistir aos animados duelos de eloquência protagonizados por Protágoras e sua turma.

Em meio às entusiasmadas audiências dos diálogos sofistas, havia um sujeito pobretão, excêntrico e dono de uma feiura proverbial. Antes de ganhar celebridade como filósofo, Sócrates já era famoso como o maior esquisitão de Atenas. Filho de um escultor e de uma parteira, ele se dedicou por alguns anos ao ofício do pai. Mas, ao que tudo indica, o patrono da filosofia ocidental não era, digamos, um sujeito muito trabalhador. Sua principal ocupação era sondar a alma humana, e pouco tempo lhe restava para questões rotineiras, como ganhar a vida. Costumava andar pelas ruas de Atenas metido em roupas puídas, com as grandes barbas descabeladas e sempre perdido em reflexões. Às vezes, tinha acessos de abstração que pareciam loucura: em determinada ocasião, passou mais de 24 horas parado ao relento, entregue a alguma complexa ponderação metafísica. Também afirmava ouvir uma voz misteriosa que lhe ditava regras de conduta – entre outras coisas, esse estranho anjo da guarda teria proibido Sócrates de se envolver em política (para o filósofo, nenhum homem justo pode enveredar por esse escuro pantanal da atividade humana sem perder a alma ou a vida).

Sócrates aprendeu a filosofar assistindo às preleções dos sofistas, mas logo acabou se afastando dos antigos mestres. Com o tempo, o desgrenhado pensador compreendeu que o excesso de truques retóricos de seus concidadãos servia muitas vezes para ornamentar mentes vazias (qualquer semelhança com o universo acadêmico de hoje não é mera coincidência). Cheia de intelectuais falastrões e de políticos oportunistas, Atenas havia se tornado uma cidade excessivamente satisfeita consigo mesma – e Sócrates decidiu que caberia a ele fustigar a soberba de seus contemporâneos. Mas, para abraçar plenamente sua vocação à insolência, ele precisou de um empurrãozinho divino.

Quando confrontados pelos aspectos mais obscuros ou espinhosos da existência, os antigos gregos costumavam consultar os deuses (naquela época, não havia psicanalistas). Para isso, existiam os oráculos – locais sagrados onde os seres imortais se manifestavam, devidamente encarnados em suas sacerdotisas. Certa vez, talvez por brincadeira, um ateniense perguntou ao conceituado oráculo de Delfos se haveria na Grécia alguém mais sábio que o esquisitão Sócrates. A resposta foi sumária: “Não”.

Saber e não saber
O inesperado elogio divino chegou aos ouvidos de Sócrates, causando-lhe uma profunda sensação de estranheza. Afinal de contas, ele jamais havia se considerado um grande sábio. Pelo contrário: considerava-se tão ignorante quanto o resto da humanidade. Após muito meditar sobre as palavras do oráculo, Sócrates chegou à conclusão de que mudaria sua vida (e a história do pensamento). Se ele era o homem mais sábio da Grécia, então o verdadeiro sábio é aquele que tem consciência da própria ignorância. Para colocar à prova sua descoberta, ele foi ter com um dos figurões intelectuais da época. Após algumas horas de conversa, percebeu que a autoproclamada sabedoria do sujeito era uma casca vazia. E concluiu: “Mais sábio que esse homem eu sou. É provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um tantinho mais sábio que ele exatamente por não supor saber o que não sei”. A partir daí, Sócrates começou uma cruzada pessoal contra a falsa sabedoria humana – e não havia melhor palco para essa empreitada que a vaidosíssima Atenas. Em suas próprias palavras, ele se tornou um “vagabundo loquaz” – uma usina ambulante de insolência iluminadora, movida pelo célebre bordão que Sócrates legou à posteridade: “Só sei que nada sei”.

Para sua tarefa audaz, Sócrates empregou o método aprendido com os professores sofistas. Mas havia grandes diferenças entre a dialética de Sócrates e a de seus antigos mestres. Em primeiro lugar, Sócrates não cobrava dinheiro por suas “lições” – aceitava conversar com qualquer pessoa, desde escravos até políticos poderosos, sem ganhar um tostão. Além disso, os diálogos de Sócrates não serviam para defender essa ou aquela posição ideológica, mas para questionar a tudo e a todos sem distinção. Ele geralmente começava seus debates com perguntas diretas sobre temas elementares: “O que é o Amor?” “O que é a Virtude?” “O que é a Mentira?” Em seguida, destrinchava as respostas que lhe eram dadas, questionando o significado de cada palavra. E continuava fazendo perguntas em cima de perguntas, até levar os exaustos interlocutores a conclusões opostas às que haviam dado inicialmente – e tudo isso num tom perfeitamente amigável. Assim, o pensador demonstrava uma verdade que até hoje continua universal: na maior parte do tempo, a grande maioria das pessoas (especialmente as que se consideram mais sabichonas) não sabe do que está falando.

Para muitos ouvintes, o efeito do diálogo socrático era a catarse – uma experiência de purificação espiritual em que as portas do autoconhecimento se escancaram.

Deixando de lado a casca das ideias preconcebidas e os clichês, o discípulo estava pronto para a perigosa aventura de pensar por si mesmo. Às vezes, os argumentos desse conversador incansável eram tão azucrinantes que alguns ouvintes o atacavam no meio da rua, com chutes e pontapés. Perante tais indignidades, ele se limitava a responder com invulnerável ironia: “Não se costuma revidar contra os jumentos que nos escoiceiam”.

Tamanha independência de espírito pode ser algo bem arriscado – tanto na Antiguidade quanto hoje em dia. As patotas políticas não sabiam como lidar com aquele homem que questionava e irritava a todos com o mesmo sorriso de implacável gentileza, sem se deixar aliciar por ninguém. Em 399 a.C., seus desafetos conseguiram levá-lo a julgamento. O filósofo foi acusado de desrespeitar os deuses oficiais da cidade e de “corromper a juventude”: na prática, o que estava sob ataque era sua mania de fustigar a tudo e a todos sem pruridos. Ameaçado com a pena de morte, ele retrucou: “Ninguém sabe o que é a morte. Talvez seja, para o homem, o maior dos bens. Mas todos fogem dela como se fosse o maior dos males. Haverá ignorância maior do que essa – a de pensar saber-se o que não se sabe?” Com sua recusa a retratar-se perante a assembleia, o filósofo foi condenado a morrer por envenenamento. No dia de sua execução, reuniu- se com os amigos, trocou pilhérias e, naturalmente, entregou-se a discussões filosóficas. O carcereiro, ao lhe trazer a taça com cicuta, estava chorando. Mas Sócrates tinha os olhos secos. Bebeu o veneno como quem toma um remédio, despediu-se dos amigos com cavalheiresca tranquilidade e se esticou no catre, como se fosse dormir. E só então seu gênio insolente se calou.

O “vagabundo loquaz” de Atenas foi a primeira figura célebre na história do pensamento a morrer por suas ideias – e sua execução é um dos mitos fundadores da filosofia ocidental. A relevância de Sócrates, contudo, transcende o universo dos filósofos especializados ele se tornou, em grande medida, um modelo de conduta humana. Sua modéstia, numa época de vaidade intelectual, é um aviso aos navegantes de todos os séculos: por mais poder e desenvolvimento que uma civilização tenha atingido, o fato é que, no fundo, continuamos todos humanamente estúpidos. E a negação de nossa própria estupidez pode nos transformar em monstros. Escapar à ignorância congênita da espécie é possível, sim – mas essa é uma tarefa que não se realiza sozinho. A verdade (se é que ela existe) só pode surgir pelo confronto direto e implacável (mas sempre amigável) entre duas ou mais criaturas racionais. Pensar por si mesmo e a si mesmo, olhando no espelho do outro: eis a lição aparentemente simples, mas hoje tão esquecida, legada por uma das figuras mais intrigantes na história da humanidade.

Sócrates
Um dos fundadores da filosofia ocidental, o pensador morreu em 399 a.C. Como Buda e Cristo, que não deixaram escritos, Sócrates é conhecido hoje pelos textos de seus discípulos

Platão: as ideias e as formas.


“Toda a filosofia ocidental é uma nota de rodapé à obra de Platão.” A célebre frase, cunhada pelo matemático britânico Alfred North Whitehead, é certamente uma hipérbole, mas isso não significa que seja absolutamente falsa. Afinal de contas, a própria verdade muitas vezes é assim, hiperbólica – e não há dúvida de que poucos filósofos tiveram tanta influência sobre o pensamento ocidental quanto Platão. A grandeza de suas ideias escapa ao domínio da filosofia: ele foi um dos poucos pensadores que moldaram civilizações com a força póstuma de seu gênio. Após o fim do mundo antigo, as doutrinas platônicas entraram na corrente sanguínea do cristianismo, repercutiram no judaísmo e no Islã, geraram inúmeros seguidores e detratores e, de uma forma ou de outra, ainda marcam profundamente a maneira como encaramos o mundo.

Discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles, Platão é o elo central no grande triunvirato do pensamento grego – o eixo que articula um dos períodos mais intensos e produtivos na história da mente humana. É graças às obras de Platão que conhecemos as ideias de Sócrates; e foi com base nas teorias platônicas (e muitas vezes para contrariá-las ou corrigi-las) que Aristóteles elaborou grande parte de sua filosofia. Sem Platão, é possível que conhecêssemos Sócrates apenas como um personagem curioso e obscuro – e talvez a grande mente de Aristóteles tivesse se ocupado apenas com as ciências naturais, em vez de produzir o eclético legado que pautou os rumos do Ocidente por milênios. Aristóteles foi o filósofo do bom senso, da moderação e do rigor metódico; Platão foi o pensador do sublime, meio poeta e meio vate, autor de uma obra suspensa entre a ciência e a religião, entre o intelecto e a epifania. Por isso mesmo, a filosofia platônica acabou desacreditada – e às vezes até ridicularizada – ao longo dos últimos 100 anos. Aristóteles, com seu intelecto sisudamente ponderado, parece-nos mais lúcido e confiável. Mas é a obra de Platão, com seu ritmo ora poético, ora dramático e narrativo, que continua enfeitiçando leitores século após século. No eterno duelo entre Platão e Aristóteles, concorda-se facilmente com as razões do discípulo – contudo, é mais fácil é encantar-se com os voos oníricos do mestre.

Um aristocrata do espírito

Platão nasceu em 427 a.C. em uma família de aristocratas. Quando adolescente, pouco se interessava pelos assuntos do espírito. Forte e vigoroso, ele dedicou seus verdes anos ao atletismo e chegou a vencer campeonatos de luta. Também sonhava com glórias militares, como convinha a um membro da nobreza guerreira. A propósito: o verdadeiro nome do filósofo era Arístocles. O apelido “Platão”, que em grego significa algo como “Grandalhão”, era uma referência a seus largos ombros de atleta. É possível que Arístocles tivesse passado a vida a ganhar medalhas nas arenas, se não fosse pela picada do mosquito metafísico que, naquela época, andava zumbindo por Atenas. Com cerca de 16 anos, o belo e belicoso Arístocles deparou, nas ruas da cidade, com um sujeito pobre e feio, esfarrapado como um mendigo, mas dono de uma sabedoria hipnótica. Sempre cercado de ávidos ouvintes, aquela espécie de eremita tagarela – que respondia pelo nome de Sócrates – entregava-se diariamente a debates públicos, questionando seus interlocutores sobre o real significado de palavras aparentemente comuns – como Amor, Justiça, Verdade. O objetivo declarado de Sócrates era mostrar a ignorância essencial de todos os homens – espezinhando-os com perguntas irônicas e insistentes. Daí o apelido que dava a si mesmo: o mosquito de Atenas. Assistindo àquele plebeu sujo e mal vestido desconcertar a cidade mais poderosa da Grécia, o elegante e empertigado Arístocles concluiu que havia uma virtude maior que o sangue azul e a excelência física. O mosquito instilara fatalmente seu veneno: o Grandalhão decidiu virar filósofo.

Durante os 12 anos seguintes, Platão foi o discípulo mais fervoroso de Sócrates – até que, em 399 a.C., o petulante mosquito ateniense foi acusado de ofender os deuses gregos e condenado à morte por envenenamento. Amargurado com a execução do mestre, Platão partiu em uma viagem de 12 anos pelo mundo. Perambulou pela Grécia e pela atual Turquia, visitou o Egito e a Itália; talvez tenha andado pela Judeia e pela Babilônia, e há quem diga que chegou a molhar os pés nas águas do Ganges. Bebeu na fonte de diversas culturas, amadureceu entre gentes e costumes estranhos e retornou a Atenas aos 40 anos de idade, decidido a continuar a missão filosófica de seu professor. Para isso, fundou a Academia, uma escola gratuita de filosofia e matemática, considerada por muitos como a primeira universidade da história. Até sua morte, em 347 a.C., ele viveu debatendo com seus discípulos e compondo suas obras – os Diálogos, textos em que as mais variadas questões filosóficas são apresentadas na forma de debates entre personagens famosos da antiga Atenas. Lê-los não é apenas adentrar tópicos atemporais, mas também mergulhar no testemunho minucioso e imaginativo de um dos períodos mais extraordinários do intelecto humano; é andar pelas ruas de Atenas, trocar ideias e partilhar o vinho dos simpósios com Sócrates e Alcibíades, Xenofonte e Zenão de Eleia. Ótimas companhias, legadas a nós na prosa poética de um dos grandes autores do Ocidente.

Uma grande teoria

E aqueles antigos atenienses conversavam sobre tudo: nos 36 Diálogos que nos deixou, Platão aborda um feixe tão amplo de assuntos que, 23 séculos depois, Emerson exclamaria: “Platão é a filosofia, e a filosofia é Platão”. Com efeito, a semente de quase tudo o que viria depois está lá: os labirintos do corpo e da alma, da linguagem e da memória; a busca de utopias políticas e sociais; o questionamento sobre o real significado de nossa passagem por este mundo, ao mesmo tempo tão encantador e imperfeito. Todos esses temas se entrelaçam na grande questão metafísica que, lançada por Platão em seus diálogos tardios, haveria de dominar a filosofia pelos séculos vindouros: a “doutrina das Ideias”.

Essa grande teoria platônica é uma espécie de síntese magistral do pensamento antigo – e, para compreendê-la, vale a pena deslindar as raízes que lhe deram forma e as perguntas que tentou responder. Sócrates, como já vimos, expôs o grão de ignorância que está no centro de toda ciência humana. Outros pensadores daquele período, como Crátilo, foram ainda mais longe: afirmavam que o conhecimento da realidade é impossível, pois vivemos em um universo instável, onde tudo se transforma e nada se fixa. Uma árvore é apenas um estágio entre a semente e a madeira morta; qualquer ser humano é uma etapa entre o feto e o cadáver... Como podemos afirmar qualquer coisa sobre um determinado objeto, se a constante mudança do universo é mais rápida que nossa mente? Eis a charada que a doutrina platônica tenta resolver: o mundo revelado pelos sentidos parece inapreensível, mas precisamos de um fundamento sólido, eterno e universal, para erigirmos o conhecimento seguro (em grego, epistême).

Para encontrar um ponto fixo no aparente pantanal cósmico, Platão bifurcou a realidade. O mundo que vemos, sentimos e ouvimos – argumenta ele – não é plenamente real. Todas as coisas que conhecemos por meio dos sentidos – como nossos corpos, ou esta mesa, ou aquela árvore – são cópias da “verdadeira realidade”, que é incorpórea, imutável e eterna: as Ideias ou Formas. Criadas por alguma divindade misteriosa, inteligente e anônima, as Ideias existem fora do plano físico e, portanto, não podem ser apreendidas por nossos olhos e ouvidos – mas apenas compreendidas pelo intelecto. De um lado, portanto, há o mundo sensível – que é efêmero, enganoso e impermeável ao conhecimento. Do outro lado, há o mundo inteligível – cuja contemplação é a chave da verdadeira sabedoria.

Mas o que são essas Formas transcendentais, nos quais o nosso mundo se espelha foscamente? Esse perturbador museu de seres perfeitos e algo assustadores, dos quais somos reflexos empobrecidos, pode ser mais bem compreendido do ponto de vista da linguagem. Por exemplo: aplicamos a palavra “gato” a inúmeros seres que, embora parecidos, não são iguais. Logo, a palavra não pode referir-se a nenhum dos gatos individuais, tampouco à soma de todos – mas a um tipo de “felinidade” universal, que permanece sempre inalterado, enquanto os infinitos gatinhos do mundo sensível nascem, crescem, miam e morrem. Para Platão, o significado real de cada palavra não corresponde a convenções humanas, mas aos modelos criados ou imaginados por Deus. Os seres humanos são inúmeros, radicalmente diferentes, desesperadamente semelhantes, estonteados por sua própria multiplicidade – mas a Ideia de Humanidade é uma só. O Ser Humano platônico é verdadeiramente real; nós somos pobres aparências, fantasmas de carne e osso, cegos para a verdadeira face do mundo... A menos, é claro, que consigamos nos livrar da miragem dos sentidos e ascender à contemplação das Formas divinas. Um processo que o poeta-filósofo ilustra, tipicamente, com uma metáfora.

O mito, enfim

Foi no Livro VII da República que Platão elaborou a alegoria mais célebre da literatura. Conforme seu costume, o autor coloca a teoria na boca de Sócrates – mas é provável que essa narrativa, assim como a doutrina por ela ilustrada, seja de exclusiva autoria de Platão. Na República, Sócrates diz a um discípulo chamado Gláucon: “Imagina uma grande cova subterrânea, provida de uma grande entrada para a luz; e imagina um grupo de homens, presos desde meninos no interior da caverna, amarrados pelos pés, pelas mãos e pelo pescoço; não podem virar a cabeça, e são obrigados a olhar constantemente para o fundo da cova”. Incapazes de observar o mundo lá fora, os prisioneiros da caverna veem apenas as sombras que se desenham na parede de pedra – e, acostumados com a própria cegueira, tomam aquelas sombras pela realidade. “Que estranha situação, e que estranhos prisioneiros!”, exclama Gláucon. Sócrates replica: “Estranhos como nós mesmos”.

Eventualmente – prossegue a alegoria –, um dos prisioneiros consegue escapar aos grilhões e sair à luz do sol. Inicialmente ofuscado, ele pouco a pouco se acostuma à visão das coisas como elas realmente são. Caso permaneça lá em cima, esquecendo para sempre sua anterior existência de escuridão, ele se tornará um místico; caso retorne às profundezas, para tentar libertar seus irmãos da cegueira existencial, ele se tornará um filósofo. E correrá o risco de ser tomado por tolo ou subversivo: pois a reação natural dos prisioneiros é acreditar que apenas as sombras existem; e o homem que viu a luz, desacostumado às trevas, chegará até eles tropeçando como um inválido.

Execrar a doutrina das Ideias tem sido um dos lugares comuns do pensamento moderno (e do pós-moderno, e do hipermoderno; não levemos tão a sério a etiqueta dessas nomenclaturas). O fato, contudo, é que o próprio Platão havia previsto os limites de sua teoria. Em um de seus últimos diálogos, o Parmênides, ele se pergunta: no mundo das coisas idealmente perfeitas, haverá também a Forma da Feiura ou a Forma da Imperfeição? Acrescente-se: se tudo o que existe é reflexo de uma Ideia divinamente concebida, então deve haver um Lodo ideal, uma Pústula ideal ou – por que não? – um Idiota ideal... Platão deixa a questão em aberto – como, por sinal, faz com a maior parte dos temas que tocou. Eis aí uma contradição reveladora: modelo do pensador com aspirações sublimes e com sede pelo absoluto, Platão não nos deixou soluções, mas debates infinitos. Em seus diá logos, jamais sabemos ao certo quem está falando a verdade, quem está gracejando ou quem está sendo alvo da zombaria do autor. E, em meio às muitas vozes que ecoam em seus textos, ele semeou intuições originais que ainda desafiam o pensamento. Diz-nos ele à distância de séculos: este mundo, que tentamos inutilmente apreender com nossos sentidos e descrever com a linguagem, não é a realidade. E temos de admitir: talvez não seja, mesmo. Mas, nesse caso, onde está o real inegável, incondicionado, final? Não nos voltemos a Platão em busca de ajuda, pois ele não nos legou uma resposta definitiva, mas uma tentação, um farol que pisca e oscila, um horizonte demasiado distante, mas que ainda nos atrai como o canto das sereias (ou das Sereias?): a esperança da transcendência.

A Odisseia


Na raiz da cultura ocidental (daquilo que somos, pensamos, lemos e escrevemos) existe um mistério chamado Homero. Mais que um personagem histórico, esse nome conjura um símbolo que nos alimenta e uma cifra que nos desafia – uma confluência de significados e sensações, tão vastos e indefiníveis quanto as palavras “humanidade” e “poesia”. Figura gigantesca, ubíqua, fantasticamente imprecisa, ele deixou um legado que transcende conceitos, atordoa a história e estonteia a literatura.

Apesar do traço de gênio que unifica a Ilíada e a Odisseia, estudiosos modernos afirmam que Homero jamais existiu, ou o multiplicam até a aniquilação: os poemas a ele atribuídos seriam obra de gerações de bardos da Idade do Bronze, transcritas em eras menos iletradas por escribas igualmente desconhecidos. Assim como Ulisses, Homero pode ter sido muitos, e pode ter sido ninguém.

Nos últimos três séculos, negar Homero se tornou um dileto esporte intelectual, quase um clichê erudito: um escândalo hoje tão inócuo quanto pintar bigodes em reproduções da Mona Lisa. Ainda assim, gerações consecutivas de leitores continuam a perceber ou a imaginar o vulto descomunal de uma única mente por trás da Ilíada e da Odisseia. Homero pode ser uma criação coletiva de todos os seus leitores em todas eras – e talvez por isso mesmo seja um autor infi nito, cujo apelo vai ao cerne da imaginação humana, lá onde os juízos dos críticos e as elucubrações dos arqueólogos têm pouca ou nenhuma importância.

Homero é, acima de tudo, o supremo escritor imaginativo, capaz de criar seu próprio mundo e impô-lo à realidade com selvagem maestria – conforme notou seu mais brilhante tradutor, o inglês Alexander Pope. “A faculdade inventiva de Homero continua até hoje sem rivais”, escreveu Pope em 1713, no prefácio a sua magnífi ca tradução da Ilíada. “E é a capacidade de invenção, em seus diversos graus, que distingue todos os gênios: nem a máxima extensão do estudo, do aprendizado e do labor humanos – que abarcam todo o resto – pode competir com isso.”

Homero
Que ele tenha existido de fato ou não, hoje é apenas um detalhe a ser especulado por eruditos. Mas a potência épica dos versos atribuídos a Homero ainda hoje ressoa na melhor poesia ocidental.


O mendigo cego
Desconstruir Homero é uma obsessão moderna – os antigos gregos (mais bem resolvidos que nós) não tinham problemas em aceitar a existência do grande gênio fundador. De acordo com a lenda, o poeta teria vivido menos de 200 anos após o saque de Troia, tradicionalmente datado em 1184 a.C. Uma das versões mais difundidas de sua biografi a afi rma que ele nasceu em Esmirna, na Ásia Menor (atual Turquia), às margens do rio Meles. Seu verdadeiro nome seria Melesígenes – uma referência ao local de nascimento. Ainda jovem, Melesígenes aprendeu a cantar versos; e, na mesma época, perdeu a visão.

Cego, pobre e cheio de ideias, ele se tornou um aedo: espécie de bardo itinerante, que dependia da generosidade de sua audiência para ganhar teto e comida. Levou uma vida de memoráveis desventuras e miserável heroísmo. Durante uma viagem à Ciméria (atual Cáucaso), teria ganhado o apelido zombeteiro de homeros – que, no dialeto local, significava “mendigo cego”. Por desforra, Melesígenes adotou a alcunha e tornou-a imortal. Ainda em vida, ganhou fama como o bardo mais talentoso da Grécia, graças, principalmente, a seus relatos sobre a guerra de Troia e as jornadas de Ulisses.

Se Homero realmente viveu no século 10 a.C., então seus poemas foram compostos e transmitidos oralmente, pois na época os gregos eram iletrados. É possível, por outro lado, que o grande bardo tenha vivido no século 8 a.C., quando os gregos desenvolveram um sistema de escrita baseado no alfabeto fenício. Alguns sugerem que, sendo cego, ele tenha ditado seus versos a um ajudante – como faria, milênios depois, o igualmente cego John Milton ao compor outro épico inesquecível, Paraíso Perdido. Seja como for, a Ilíada e a Odisseia chegaram ao período clássico da Grécia (o século 5 a.C., época de Péricles e Platão) devidamente transcritas em pergaminhos de papiro. Cultuadas e imitadas no Império Romano, as epopeias homéricas desapareceram da Europa após as invasões bárbaras. Foram preservadas pelos eruditos de Bizâncio e só voltaram a desembarcar em solo europeu dez séculos depois. Para chegar até nós, os dois poemas máximos do Ocidente viveram jornadas dignas de Ulisses – o mais emblemático personagem de Homero e o mais radical viajante da literatura ocidental.


Trapaceiro azarado
“Aquele homem, pelas várias artes da sabedoria renomado, e longamente versado em pesares, oh Musa, ressoa!” Já nesses famosos versos iniciais da Odisseia, Homero pincela os traços que fizeram de Ulisses uma das figuras mais recorrentes na imaginação de leitores e escritores através dos séculos: a astúcia heroica e a fantástica má sorte. Rei de Ítaca (uma ilha do mar Jônico), Ulisses foi um dos numerosos heróis gregos que acorreram ao cerco de Troia, na costa da Ásia Menor. Contam as lendas que a guerra durou dez anos; Homero detém-se em apenas 45 dias do confl ito para criar seu relato de hipnóticas matanças, paixões incontroláveis e destinos obsessivos. Ao longo dos 27 cantos da Ilíada, acompanhamos mesmerizados as oscilações no titânico humor de Aquiles; os acessos de culpa e de luxúria da irresistível Helena; as tragicômicas galanterias de Páris, espécie de dândi da Idade do Bronze; a silenciosa dignidade de Heitor; as lágrimas de Hécuba, os vaticínios de Cassandra. E somos introduzidos, naturalmente, às artes e aos engenhos de Odisseu-Ulisses.

É graças a Ulisses que o funesto destino de Troia se completa: dele foi a ideia de oferecer aos inimigos, com engenho, a estátua de um cavalo de madeira, recheada de guerreiros escondidos. Após o saque e a destruição da cidade, os chefes gregos atravessam o mar e voltam a suas casas – todos menos Ulisses, condenado a soçobrar por dez anos entre a terra e o mar, o céu e o inferno, sonhando sempre com sua Ítaca inatingível.

Em sua busca tantalizante e alucinatória pelo “dia do retorno”, Ulisses terá de enfrentar as mirabolantes crueldades do destino com apenas duas armas: a engenhosidade e a teimosia de viver. Espécie de trapaceiro honesto, amaldiçoado pelos deuses e perseguido pelo acaso, Ulisses é um herói gloriosamente azarado; mais que um paradigma de virtudes aristocráticas, mais que o guerreiro que despreza a morte, ele é o homem capaz de driblar a dor e a solidão e de sobreviver à própria vida.

Relato dessa guerra de espertezas entre Ulisses e o universo, a Odisseia é um espelho de narrativas e reviravoltas: como as Mil e Uma Noites, é também um conto de contos, uma história sobre a arte de contar histórias (ou estórias, para usar uma palavra inexplicavelmente escorraçada de nossa língua). Jornada múltipla, pois nela não acompanhamos apenas as peripécias de Ulisses. Com efeito, o poema começa contando a busca desesperada do príncipe Telêmaco, que roda os mares procurando o pai, sem jamais encontrá-lo; e também a longa espera da rainha Penélope, que aguarda o retorno do marido enquanto pretendentes arrogantes ameaçam tomá-la à força. Só depois é que saltamos à narrativa do próprio Ulisses, que nos conta em primeira pessoa suas incríveis andanças: mas esse narrador é célebre por suas trapaças, e como teremos certeza de que agora fala a verdade? Como se pode perceber, cabem muitas odisseias dentro dessa Odisseia.


Todos e ninguém
Num certo sentido, esse relato de muitas vozes é o grande romance-rio da experiência: a simples enumeração dos descaminhos de Ulisses já contém a sugestão de um mundo inesgotável, o arrepio de infinitas descobertas possíveis.

Escutemos, portanto, a narrativa do mais admirável dos mentirosos. Tão logo partiu de Troia, Ulisses desembarcou casualmente na ilha dos Lotófagos, habitada por homens desmemoriados e felizes: são náufragos que comeram a fruta do lótus, guloseima que apaga todas as lembranças e anula as saudades do lar. Fugindo desse paraíso ameaçador, Ulisses e seus marinheiros vão parar na ilha dos cíclopes. Lá, são aprisionados por Polifemo, gigante antropófago de um olho só; sabendo das preferências gastronômicas de seu captor, Ulisses consegue engambelá- lo diplomaticamente, com a ajuda de uma taça de vinho grego. “Como te chamas?”, pergunta o cíclope embriagado, num estranho momento de cordialidade (pois é evidente que planeja degustar o hóspede logo em seguida). E Ulisses responde, com típica presença de espírito: “Ninguém”.

Quando o cíclope desmaia nos vapores etílicios, Ninguém trespassa seu único olho com uma acha de lenha. Um ato heroico, mas ominoso: Polifemo é filho de Netuno, deus dos mares. Por ter mutilado a traição esse monstro de alta estirpe, Ulisses cairá vítima da fúria divina e terá de vagar sobre as águas por muitos anos. Perdido numa geografia de maravilhas e pesadelos, ele oscila entre monstros que parecem rochedos, tempestades que parecem demônios e ninfas cruelmente amorosas; vê seus amigos serem transformados em porcos, escuta o canto das sereias, desce até os Infernos e assiste à dança macabra dos mortos.

Enquanto a Ilíada é a história de muitos homens em mútua matança, a Odisseia é o relato de um solitário herói lutando contra (e seduzido por) sua própria dissolução. Um tema moderníssimo, que ainda cala fundo no coração de todos. Quando finalmente desembarca em Ítaca, Ulisses não a reconhece: será ele o mesmo homem que partiu, ou terá se tornado Ninguém? Chegando em casa, é reconhecido apenas por seu velho cachorro Argos, que morre do coração ao farejar o dono sumido por tantos anos. Mas, finalmente, após outras tantas reviravoltas, o andarilho esfarrapado se revela como o rei desaparecido, retornando ao trono de Ítaca e à cama da fiel Penélope.


Viagem sem fim
Final feliz? Talvez. Mas a Odisseia tem muitos desfechos possíveis – ao menos, na imaginação da posteridade. Os leitores dos milênios seguintes não permitiram que Ulisses descansasse em sua verde e modesta Ítaca. Na Divina Comédia, Dante fez Odisseu partir novamente, navegando em busca das bordas do mundo, até morrer devorado por um redemoinho. Em um poema de Tennyson, o envelhecido rei de Ítaca parte “rumo ao pôr do sol” numa fuga sem fim, para lugar nenhum. Segundo lendas apócrifas, o inveterado andarilho acabou aportando na antiga Lusitânia. Lá fundou a cidade de Ulisseia ou Olisipo, mais tarde rebatizada como Lisboa – relato ecoado nos versos de Camões e Fernando Pessoa.

A permanência de Ulisses entre nós – ou sua eterna fuga e seu eterno retorno – têm muitas causas possíveis; fiquemos com apenas duas. A Fortuna talvez prefira os arrogantes e os valorosos, mas a poesia tem mais a dizer sobre os párias do destino – conforme atesta o próprio Homero em um verso da Odisseia: “Há algo de sagrado na desgraça”. Além disso, o homem que se torna Ninguém é também aquele que pode ser todos. Herói extraviado pelo destino, despojado de nome e fortuna, sempre em busca do impossível e ameaçado de perder sua memória e sua identidade, Ulisses é, nas palavras de James Joyce, o único “personagem total” da literatura. Pois os destinos que nunca se completam são aqueles que se prolongam no futuro: infinitamente.

Generoso e inconveniente

Tal qual os egoístas, os generosos podem causar antipatia nos colegas de trabalho. Saiba como não ultrapassar esse limite e alinhar seu comportamento

Você é daquelas pessoas que se voluntariam para as mais diversas tarefas? Está sempre disposta a ajudar? Pensa o tempo inteiro em como se antecipar às necessidades do negócio? Se a resposta é "sim", então é bom tomar cuidado.

Um estudo recente realizado pelos pesquisadores americanos Craig Parks, da Universidade Estadual de Washington, e Asako Stone, do Instituto de Pesquisa do Deserto de Nevada, concluiu que profissionais excessivamente disponíveis podem irritar colegas a ponto de causar aversão.

Intitulado O Desejo de Expulsar Membros Altruístas do Grupo (The Desire to Expel Unselfi sh People from the Group), o estudo revela que pessoas generosas demais podem ser mal interpretadas e fazer com que seus colegas se sintam inferiorizados perante um desempenho mais virtuoso.

A reação desses colegas pode ser puxar a pessoa para baixo ou marginalizar o profissional. Ou seja, uma atitude teoricamente positiva — a generosidade — pode acabar sendo prejudicial ao desempenho do indivíduo no ambiente de trabalho.

A raiz do problema é que o excesso de disposição acaba por gerar descarreira confi ança dentro de um grupo. O profissional que está sempre cedendo, que é muito altruísta, pode passar a sensação de que quer alguma coisa em troca, voluntária ou involuntariamente. "Pode parecer que a pessoa é generosa com segundas intenções, com o desejo de crescer mais rápido", diz Débora Dado, gerente de desenvolvimento de pessoas da Visa Vale, empresa de benefícios, em Barueri, na Grande São Paulo.

O efeito prejudicial para a carreira é que as pessoas se afastam de quem abusa da disposição em ajudar. "O profissional passa a ter dificuldade para trabalhar em equipe", diz Gilberto Martelli, diretor de recursos humanos e vice-presidente da Marsh Brasil, empresa de serviços na área de seguros, de São Paulo. Em geral, esse comportamento pega mal entre os colegas quando é destinado apenas ao chefe ou a algum superior que pode ter influência na promoção do profissional. Se as manifestações de generosidade e disposição são dirigidas igualmente a pares e subordinados, a reação do grupo tende a ser mais justa.

"Qualquer comportamento que contenha um quê de exagero pode causar implicações no relacionamento de um profissional com seu grupo", diz Karin Parodi, presidente da consultoria Career Center. Mas como ajustar essa atitude de forma a não tolher um espírito com iniciativa? Para começar, se você quer ajudar uma pessoa, pergunte educadamente se ela quer sua ajuda. Segundo Maíra Habimorad, diretora da consultoria grupo DMRH, também é importante observar o comportamento dos colegas: eles resistem em compartilhar trabalhos com você? Você é sempre um dos últimos a ir embora? Verifique sinais como esses, que indicam que as tarefas não estão sendo divididas com coerência.

Quando quiser ajudar, procure diferenciar generosidade de proatividade, essa, sim, uma qualidade importante no trabalho. "São coisas diferentes", adverte o psicólogo e consultor de carreira Cristiano Amorim, da consultoria Fellipelli, de São Paulo. "Ser proativo não está ligado a atender outra pessoa, como a generosidade", explica o consultor. Num comportamento proativo, você exercita um olhar para o mercado e para a empresa e se antecipa. "Enxergar uma oportunidade de negócio e desenvolvê-la é uma atitude positiva", diz Cristiano. Deixe claro que sua intenção é contribuir para o negócio, e não se destacar individualmente apenas. Não espere reconhecimento por isso. Se alguma coisa vier, ponto para você.

COMO FOI FEITO O ESTUDO
Para demonstrar que generosidade em excesso atrapalha, os pesquisadores convidaram estudantes para participar de jogos por computador. O programa mostrava aos participantes que todos os jogadores contribuíam para o grupo, exceto um deles, que era falso. Numa segunda rodada, um jogador falso comportava-se com extrema generosidade.

Após o fim dos jogos, os pesquisadores perguntaram aos estudantes com quem eles não gostariam mais de jogar. O egoísta foi o escolhido. Mas os cientistas notaram que os estudantes também desenvolveram antipatia pelo jogador generoso, o que gerou uma nova pesquisa, para estudar o altruísta.

Conclusão: diante de um generoso, os participantes estavam avaliando a própria reputação em relação à atitude de outros jogadores. E sentiram que, comparado ao do altruísta, o comportamento deles havia deixado a desejar, o que os magoava e os deixava na defensiva.

CHECKLIST DO GENEROSO
PARA SABER SE VOCÊ ESTÁ EXAGERANDO NA DISPOSIÇÃO, ANALISE SEU COMPORTAMENTO:

LEIA O AMBIENTE – É preciso compreender os verdadeiros valores em jogo no ambiente de trabalho. Confira se você não está contrariando códigos hierárquicos. Quebrar limites é uma atitude importante, mas nas ocasiões certas.

CHEQUE A EMPATIA – Coloque-se no lugar das pessoas e veja se realmente elas estão interessadas na sua ajuda. Verifique se você não está forçando a barra.

PERGUNTE AOS OUTROS – Se você desconfia que os colegas estão reagindo de um modo estranho na sua presença, peça feedback e comece a refletir sobre as características de sua própria personalidade.