sábado, 29 de janeiro de 2011

A Odisseia


Na raiz da cultura ocidental (daquilo que somos, pensamos, lemos e escrevemos) existe um mistério chamado Homero. Mais que um personagem histórico, esse nome conjura um símbolo que nos alimenta e uma cifra que nos desafia – uma confluência de significados e sensações, tão vastos e indefiníveis quanto as palavras “humanidade” e “poesia”. Figura gigantesca, ubíqua, fantasticamente imprecisa, ele deixou um legado que transcende conceitos, atordoa a história e estonteia a literatura.

Apesar do traço de gênio que unifica a Ilíada e a Odisseia, estudiosos modernos afirmam que Homero jamais existiu, ou o multiplicam até a aniquilação: os poemas a ele atribuídos seriam obra de gerações de bardos da Idade do Bronze, transcritas em eras menos iletradas por escribas igualmente desconhecidos. Assim como Ulisses, Homero pode ter sido muitos, e pode ter sido ninguém.

Nos últimos três séculos, negar Homero se tornou um dileto esporte intelectual, quase um clichê erudito: um escândalo hoje tão inócuo quanto pintar bigodes em reproduções da Mona Lisa. Ainda assim, gerações consecutivas de leitores continuam a perceber ou a imaginar o vulto descomunal de uma única mente por trás da Ilíada e da Odisseia. Homero pode ser uma criação coletiva de todos os seus leitores em todas eras – e talvez por isso mesmo seja um autor infi nito, cujo apelo vai ao cerne da imaginação humana, lá onde os juízos dos críticos e as elucubrações dos arqueólogos têm pouca ou nenhuma importância.

Homero é, acima de tudo, o supremo escritor imaginativo, capaz de criar seu próprio mundo e impô-lo à realidade com selvagem maestria – conforme notou seu mais brilhante tradutor, o inglês Alexander Pope. “A faculdade inventiva de Homero continua até hoje sem rivais”, escreveu Pope em 1713, no prefácio a sua magnífi ca tradução da Ilíada. “E é a capacidade de invenção, em seus diversos graus, que distingue todos os gênios: nem a máxima extensão do estudo, do aprendizado e do labor humanos – que abarcam todo o resto – pode competir com isso.”

Homero
Que ele tenha existido de fato ou não, hoje é apenas um detalhe a ser especulado por eruditos. Mas a potência épica dos versos atribuídos a Homero ainda hoje ressoa na melhor poesia ocidental.


O mendigo cego
Desconstruir Homero é uma obsessão moderna – os antigos gregos (mais bem resolvidos que nós) não tinham problemas em aceitar a existência do grande gênio fundador. De acordo com a lenda, o poeta teria vivido menos de 200 anos após o saque de Troia, tradicionalmente datado em 1184 a.C. Uma das versões mais difundidas de sua biografi a afi rma que ele nasceu em Esmirna, na Ásia Menor (atual Turquia), às margens do rio Meles. Seu verdadeiro nome seria Melesígenes – uma referência ao local de nascimento. Ainda jovem, Melesígenes aprendeu a cantar versos; e, na mesma época, perdeu a visão.

Cego, pobre e cheio de ideias, ele se tornou um aedo: espécie de bardo itinerante, que dependia da generosidade de sua audiência para ganhar teto e comida. Levou uma vida de memoráveis desventuras e miserável heroísmo. Durante uma viagem à Ciméria (atual Cáucaso), teria ganhado o apelido zombeteiro de homeros – que, no dialeto local, significava “mendigo cego”. Por desforra, Melesígenes adotou a alcunha e tornou-a imortal. Ainda em vida, ganhou fama como o bardo mais talentoso da Grécia, graças, principalmente, a seus relatos sobre a guerra de Troia e as jornadas de Ulisses.

Se Homero realmente viveu no século 10 a.C., então seus poemas foram compostos e transmitidos oralmente, pois na época os gregos eram iletrados. É possível, por outro lado, que o grande bardo tenha vivido no século 8 a.C., quando os gregos desenvolveram um sistema de escrita baseado no alfabeto fenício. Alguns sugerem que, sendo cego, ele tenha ditado seus versos a um ajudante – como faria, milênios depois, o igualmente cego John Milton ao compor outro épico inesquecível, Paraíso Perdido. Seja como for, a Ilíada e a Odisseia chegaram ao período clássico da Grécia (o século 5 a.C., época de Péricles e Platão) devidamente transcritas em pergaminhos de papiro. Cultuadas e imitadas no Império Romano, as epopeias homéricas desapareceram da Europa após as invasões bárbaras. Foram preservadas pelos eruditos de Bizâncio e só voltaram a desembarcar em solo europeu dez séculos depois. Para chegar até nós, os dois poemas máximos do Ocidente viveram jornadas dignas de Ulisses – o mais emblemático personagem de Homero e o mais radical viajante da literatura ocidental.


Trapaceiro azarado
“Aquele homem, pelas várias artes da sabedoria renomado, e longamente versado em pesares, oh Musa, ressoa!” Já nesses famosos versos iniciais da Odisseia, Homero pincela os traços que fizeram de Ulisses uma das figuras mais recorrentes na imaginação de leitores e escritores através dos séculos: a astúcia heroica e a fantástica má sorte. Rei de Ítaca (uma ilha do mar Jônico), Ulisses foi um dos numerosos heróis gregos que acorreram ao cerco de Troia, na costa da Ásia Menor. Contam as lendas que a guerra durou dez anos; Homero detém-se em apenas 45 dias do confl ito para criar seu relato de hipnóticas matanças, paixões incontroláveis e destinos obsessivos. Ao longo dos 27 cantos da Ilíada, acompanhamos mesmerizados as oscilações no titânico humor de Aquiles; os acessos de culpa e de luxúria da irresistível Helena; as tragicômicas galanterias de Páris, espécie de dândi da Idade do Bronze; a silenciosa dignidade de Heitor; as lágrimas de Hécuba, os vaticínios de Cassandra. E somos introduzidos, naturalmente, às artes e aos engenhos de Odisseu-Ulisses.

É graças a Ulisses que o funesto destino de Troia se completa: dele foi a ideia de oferecer aos inimigos, com engenho, a estátua de um cavalo de madeira, recheada de guerreiros escondidos. Após o saque e a destruição da cidade, os chefes gregos atravessam o mar e voltam a suas casas – todos menos Ulisses, condenado a soçobrar por dez anos entre a terra e o mar, o céu e o inferno, sonhando sempre com sua Ítaca inatingível.

Em sua busca tantalizante e alucinatória pelo “dia do retorno”, Ulisses terá de enfrentar as mirabolantes crueldades do destino com apenas duas armas: a engenhosidade e a teimosia de viver. Espécie de trapaceiro honesto, amaldiçoado pelos deuses e perseguido pelo acaso, Ulisses é um herói gloriosamente azarado; mais que um paradigma de virtudes aristocráticas, mais que o guerreiro que despreza a morte, ele é o homem capaz de driblar a dor e a solidão e de sobreviver à própria vida.

Relato dessa guerra de espertezas entre Ulisses e o universo, a Odisseia é um espelho de narrativas e reviravoltas: como as Mil e Uma Noites, é também um conto de contos, uma história sobre a arte de contar histórias (ou estórias, para usar uma palavra inexplicavelmente escorraçada de nossa língua). Jornada múltipla, pois nela não acompanhamos apenas as peripécias de Ulisses. Com efeito, o poema começa contando a busca desesperada do príncipe Telêmaco, que roda os mares procurando o pai, sem jamais encontrá-lo; e também a longa espera da rainha Penélope, que aguarda o retorno do marido enquanto pretendentes arrogantes ameaçam tomá-la à força. Só depois é que saltamos à narrativa do próprio Ulisses, que nos conta em primeira pessoa suas incríveis andanças: mas esse narrador é célebre por suas trapaças, e como teremos certeza de que agora fala a verdade? Como se pode perceber, cabem muitas odisseias dentro dessa Odisseia.


Todos e ninguém
Num certo sentido, esse relato de muitas vozes é o grande romance-rio da experiência: a simples enumeração dos descaminhos de Ulisses já contém a sugestão de um mundo inesgotável, o arrepio de infinitas descobertas possíveis.

Escutemos, portanto, a narrativa do mais admirável dos mentirosos. Tão logo partiu de Troia, Ulisses desembarcou casualmente na ilha dos Lotófagos, habitada por homens desmemoriados e felizes: são náufragos que comeram a fruta do lótus, guloseima que apaga todas as lembranças e anula as saudades do lar. Fugindo desse paraíso ameaçador, Ulisses e seus marinheiros vão parar na ilha dos cíclopes. Lá, são aprisionados por Polifemo, gigante antropófago de um olho só; sabendo das preferências gastronômicas de seu captor, Ulisses consegue engambelá- lo diplomaticamente, com a ajuda de uma taça de vinho grego. “Como te chamas?”, pergunta o cíclope embriagado, num estranho momento de cordialidade (pois é evidente que planeja degustar o hóspede logo em seguida). E Ulisses responde, com típica presença de espírito: “Ninguém”.

Quando o cíclope desmaia nos vapores etílicios, Ninguém trespassa seu único olho com uma acha de lenha. Um ato heroico, mas ominoso: Polifemo é filho de Netuno, deus dos mares. Por ter mutilado a traição esse monstro de alta estirpe, Ulisses cairá vítima da fúria divina e terá de vagar sobre as águas por muitos anos. Perdido numa geografia de maravilhas e pesadelos, ele oscila entre monstros que parecem rochedos, tempestades que parecem demônios e ninfas cruelmente amorosas; vê seus amigos serem transformados em porcos, escuta o canto das sereias, desce até os Infernos e assiste à dança macabra dos mortos.

Enquanto a Ilíada é a história de muitos homens em mútua matança, a Odisseia é o relato de um solitário herói lutando contra (e seduzido por) sua própria dissolução. Um tema moderníssimo, que ainda cala fundo no coração de todos. Quando finalmente desembarca em Ítaca, Ulisses não a reconhece: será ele o mesmo homem que partiu, ou terá se tornado Ninguém? Chegando em casa, é reconhecido apenas por seu velho cachorro Argos, que morre do coração ao farejar o dono sumido por tantos anos. Mas, finalmente, após outras tantas reviravoltas, o andarilho esfarrapado se revela como o rei desaparecido, retornando ao trono de Ítaca e à cama da fiel Penélope.


Viagem sem fim
Final feliz? Talvez. Mas a Odisseia tem muitos desfechos possíveis – ao menos, na imaginação da posteridade. Os leitores dos milênios seguintes não permitiram que Ulisses descansasse em sua verde e modesta Ítaca. Na Divina Comédia, Dante fez Odisseu partir novamente, navegando em busca das bordas do mundo, até morrer devorado por um redemoinho. Em um poema de Tennyson, o envelhecido rei de Ítaca parte “rumo ao pôr do sol” numa fuga sem fim, para lugar nenhum. Segundo lendas apócrifas, o inveterado andarilho acabou aportando na antiga Lusitânia. Lá fundou a cidade de Ulisseia ou Olisipo, mais tarde rebatizada como Lisboa – relato ecoado nos versos de Camões e Fernando Pessoa.

A permanência de Ulisses entre nós – ou sua eterna fuga e seu eterno retorno – têm muitas causas possíveis; fiquemos com apenas duas. A Fortuna talvez prefira os arrogantes e os valorosos, mas a poesia tem mais a dizer sobre os párias do destino – conforme atesta o próprio Homero em um verso da Odisseia: “Há algo de sagrado na desgraça”. Além disso, o homem que se torna Ninguém é também aquele que pode ser todos. Herói extraviado pelo destino, despojado de nome e fortuna, sempre em busca do impossível e ameaçado de perder sua memória e sua identidade, Ulisses é, nas palavras de James Joyce, o único “personagem total” da literatura. Pois os destinos que nunca se completam são aqueles que se prolongam no futuro: infinitamente.