quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A CABANA


PREFÁCIO

Quem não duvidaria ao ouvir um homem afirmar que passou
um fim de semana inteiro com Deus e, ainda mais, em uma
cabana? Principalmente naquela cabana.
Conheço Mack há pouco mais de 20 anos, desde o dia em que
nós dois fomos à casa de um vizinho para ajudá-lo a embalar feno
para suas poucas vacas. A partir de então a gente se encontra
compartilhando um café — ou, para mim, um chá tailandês
superquente, com soja. Nossas conversas nos dão um prazer
profundo e são sempre salpicadas de muito riso e de vez em
quando de uma ou duas lágrimas. Francamente, quanto mais
velhos ficamos, mais a gente se dá bem, se é que você me entende.
O nome completo dele é Mackenzie Allen Phillips, mas a
maioria das pessoas o chama de Allen.
É uma tradição de família: todos os homens têm o primeiro
nome igual, mas são conhecidos pelo nome do meio,
provavelmente para evitar a ostentação do I, II e III ou Júnior e
Sênior. Assim, ele, o avô, o pai e agora o filho mais velho têm o
nome de Mackenzie, mas só Nan, a mulher dele, e os amigos
íntimos o chamam de Mack.
Ele nasceu em uma fazenda do Meio-Oeste, numa família
irlandesa-americana de mãos calejadas e regras rigorosas. Ainda
que aparentemente religioso e exageradamente rígido, seu pai
bebia muito, sobretudo quando a chuva não vinha ou quando
vinha cedo demais, e quase sempre entre uma coisa e outra. Mack
nunca fala muito sobre o pai, mas quando O menciona a emoção
abandona seu rosto, como se fosse uma maré vazante, deixando
seus olhos sombrios e sem vida.
Pelo pouco que Mack me contou, sei que seu pai não era o
tipo de alcoólatra que cai num sono rápido e feliz, e sim um
bêbado perverso que batia na mulher e depois pedia perdão a
Deus.
A coisa (chegou a tal ponto que, aos 13 anos e com certa
relutância, Mack abriu o coração para um líder da igreja durante
um encontro de jovens. Dominado pelo clima do momento, Mack
confessou chorando que nunca fizera nada para ajudar a mãe nas
várias vezes em que testemunhara o pai bêbado lhe dar uma surra
até deixá-la inconsciente. O que Mack não pensou foi que seu
confessor freqüentava a mesma igreja que seu pai. Quando chegou
em casa, o pai o esperava na varanda e a mãe e as irmãs não
estavam. Mais tarde, Mack ficou sabendo que elas tinham sido
mandadas à casa da tia May para que o pai pudesse ter liberdade
para dar ao filho rebelde uma lição inesquecível. Durante quase
dois dias, amarrado ao grande carvalho nos fundos da casa, ele foi
castigado com um cinto e com versículos da Bíblia todas as vezes
que o pai acordava de sua bebedeira e largava a garrafa.
Duas semanas depois, quando enfim conseguiu ficar em pé,
Mack simplesmente se levantou e foi embora de casa. Mas antes de
partir colocou veneno de rato em cada garrafa de bebida que
conseguiu encontrar na fazenda. Depois desenterrou de perto da
latrina externa a pequena lata onde guardava todos os seus
tesouros: uma foto da família em que o pai estava meio afastado,
uma figurinha de beisebol do Luke Easter de 1950, uma garrafinha
com mais ou menos 30ml de Ma Griffe (o único perfume que sua
mãe havia usado), um carretel de linha e duas agulhas, um
pequeno jato F-86 da Força Aérea americana em metal fundido e
todas as economias de sua vida: 15 dólares e 13 centavos.
Esgueirou-se pela sala e enfiou um bilhete debaixo do travesseiro
da mãe, enquanto o pai roncava, curtindo mais um porre. O
bilhete dizia simplesmente: "Um dia espero que você possa me
perdoar." Jurou que nunca mais olharia para trás e não olhou —
durante um longo tempo.
Treze anos é muito pouco, porém Mack não tinha muitas
opções e se adaptou rapidamente. Ele não fala muito sobre os anos
seguintes. A maior parte foi passada fora do país, trabalhando pelo
mundo, mandando dinheiro para os avós, que o repassavam à
mãe. Acho que num desses países distantes chegou a pegar em
armas e participar de algum conflito terrível; desde que o conheço,
ele odeia a guerra com um fervor sinistro. Seja lá o que for que
tenha acontecido, aos 20 e poucos anos foi parar num seminário
na Austrália. Quando Mack se fartou de teologia e filosofia,
retornou aos Estados Unidos, fez as pazes com a mãe e as irmãs e
se mudou para o Oregon, onde conheceu Nannete A. Samuelson e
se casou com ela.
Neste mundo de faladores, Mack é pensador e fazedor. Não
diz muita coisa, a não ser que alguém pergunte, o que pouca gente
faz. Quando fala, dá a impressão de ser uma espécie de alienígena
que vê a paisagem das idéias e experiências humanas de modo
diferente de todas as outras pessoas.
O que acontece é que as coisas que ele diz causam um certo
desconforto em um mundo onde a maioria das pessoas prefere
escutar o que está acostumada a ouvir, o que freqüentemente não
é grande coisa. Os que o conhecem geralmente gostam muito de
Mack, desde que ele mantenha guardados seus pensamentos.
Porque as coisas que Mack diz nem sempre deixam as pessoas
muito satisfeitas com elas mesmas.
Uma vez Mack me contou que quando era jovem costumava
se abrir com mais liberdade, mas admitiu que a maior parte dessas
conversas era um mecanismo de sobrevivência para encobrir suas
feridas. Freqüentemente acabava derramando a dor sobre quem
estivesse por perto. Disse que tinha prazer em apontar as falhas
das pessoas e humilhá-las para manter seu sentimento de falso
poder e controle. Nada muito elogiável.
Enquanto escrevo estas palavras, reflito sobre o Mack que
sempre conheci: um sujeito bastante comum e certamente sem
nada de especial, a não ser para os que o conhecem de verdade.
Vai fazer 56 anos e não chama a atenção, está ligeiramente acima
do peso, é meio careca, baixo e branco — uma descrição que serve
para muitos homens dessas redondezas. Você provavelmente não o
notaria numa multidão nem se sentiria incomodado sentado ao
seu lado enquanto ele cochila no trem que o leva à cidade para a
reunião semanal de vendas. Faz a maior parte de seu trabalho
num pequeno escritório em sua casa na Wildcat Road, Vende
alguma engenhoca de alta tecnologia que eu não pretendo
entender: trecos eletrônicos que de algum modo fazem tudo andar
mais depressa, como se a vida já não fosse rápida demais.
Você só percebe como Mack é inteligente quando, por acaso,
escuta diálogo dele com um especialista. Já vivi algumas situações
dessas quando a língua falada mal parecia com a nossa e eu me
via lutando para captar os conceitos que jorravam como um rio de
jóias despencando de uma cachoeira. Ele consegue falar com
inteligência sob re quase tudo e, apesar da força de suas
convicções, Mack tem um modo gentil e respeitoso que deixa você
manter as suas.
Seus assuntos prediletos são Deus, a Criação e por que as
pessoas acreditam em determinadas coisas. Seus olhos se
iluminam e seu sorriso repuxa os cantos dos lábios para cima. De
repente, como se fosse um garotinho, o cansaço se dissolve e ele
rejuvenesce, praticamente incapaz de se conter. Mas, ao mesmo
tempo, Mack não é muito religioso. Parece ter uma relação de amor
e ódio com a religião e talvez até com Deus, que ele imagina como
um ser mal-humorado, distante e altivo. Pequenas gotas de
sarcasmo escorrem às vezes pelas rachaduras de seu reservatório,
como dardos cortantes cheios de veneno. Embora algumas vezes
nós dois vamos juntos à mesma igreja, dá para ver que ele não se
sente muito à vontade lá.
Mack está casado com Nan há pouco mais de 33 anos — na
maior parte do tempo, eles são felizes. Diz que ela salvou sua vida
e pagou um preço alto por isso. Por algum motivo que não dá para
compreender, Nan parece amá-lo agora mais do que nunca, apesar
de eu ter a sensação de que ele a magoou de algum modo terrível
nos primeiros anos. Acho que, assim como a maior parte das
nossas feridas tem origem em nossos relacionamentos, o mesmo
acontece com as curas, e sei que quem olha de fora não percebe
essa bênção.
De qualquer modo, Mack se casou. Nan é a argamassa que
mantém juntos os ladrilhos de sua família. Enquanto Mack lutou
num mundo com muitos tons de cinza, o dela é principalmente
preto e branco.
O bom senso é tão natural para Nan que ela nem consegue
perceber o dom que isso representa. Ter uma família a impediu de
realizar seu sonho de ser médica, mas ela se destacou como
enfermeira e obteve um reconhecimento considerável em seu
trabalho com pacientes terminais com câncer. Enquanto o
relacionamento de Mack com Deus é amplo, o de Nan é profundo.
Esse casal contraditório teve cinco filhos de beleza incomum.
Mack gosta de dizer que todos pegaram a beleza dele, "... porque
Nan ainda conserva a dela". Dois dos três meninos já saíram de
casa: Jon, casado há pouco, trabalha como vendedor de uma
empresa local, e Tyler, recém-formado na faculdade, está fazendo
mestrado. Josh e uma das duas garotas, Katherine (Kate),
cursaram a escola comunitária local. E a que chegou por último é
Melissa — ou Missy, como gostávamos de chamá-la. Ela... bem,
você vai conhecer melhor alguns dos filhos de Mack ao longo deste
livro.
Os últimos anos foram... como é que posso dizer...
notavelmente peculiares. Mack mudou: agora está ainda mais
diferente e especial. Durante todos os nossos anos de convívio ele
sempre foi bastante gentil e amável, mas desde a estada no
hospital há três anos ficou... bem, melhor ainda. Tornou-se uma
daquelas raras pessoas que estão totalmente à vontade dentro da
própria pele. E eu também me sinto mais à vontade perto dele do
que de qualquer outra pessoa. Cada vez que nos separamos, tenho
a sensação de ter tido a melhor conversa da minha vida, mesmo
que eu tenha falado mais. E, a respeito de Deus, Mack não é mais
simplesmente amplo. Ficou muito profundo. Mas o mergulho
custou caro.
Os dias de hoje são muito diferentes de há sete ou oito anos,
quando a Grande Tristeza entrou em sua vida e ele quase parou de
falar. Mais ou menos nessa época, e por quase dois anos, nossos
encontros foram interrompidos, como se por um acordo mútuo não
verbalizado. Eu só via Mack de vez em quando na mercearia ou,
mais raramente ainda, na igreja. E, embora em geral trocássemos
um abraço educado, não falávamos de muita coisa importante.
Para ele era até difícil me encarar. Talvez não quisesse entrar
numa conversa capaz de arrancar a casca de seu coração ferido.
Porém tudo isso mudou depois de um acidente feio com...
Mas lá vou eu outra vez botando o carro na frente dos bois. Vamos
chegar lá no devido tempo. Basta dizer que estes últimos anos
parecem ter devolvido a vida de Mack e tirado o fardo da Grande
Tristeza. O que aconteceu há três anos mudou totalmente a
melodia de sua vida e é uma canção que mal posso esperar para
tocar.
Apesar de se comunicar bastante bem verbalmente, Mack não
se sente seguro sobre sua capacidade de escrever — algo que ele
sabe que me apaixona. Por isso, perguntou se eu escreveria esta
história, a história dele "para as crianças e para a Nan". Queria
uma narrativa que o ajudasse a expressar para eles a
profundidade de seu amor e que os ajudasse a entender o que
havia se passado em seu mundo interior. Você conhece o lugar: é
onde você está sozinho — e talvez com Deus, se acredita Nele. É
claro que Deus pode estar lá, mesmo que você não acredite. Isso
seria bem o jeito de Deus. Não é à toa que ele é chamado de O
Grande Intrometido.
A história que você vai ler é resultado de uma luta minha e do
Mack para, durante muitos meses, colocar em palavras o que ele
viveu. Tem um lado um pouco... digamos, muito fantástico. Não
vou julgar se algumas partes são verdadeiras ou não. Prefiro dizer
que, mesmo que algumas coisas não possam ser cientificamente
provadas, talvez sejam verdadeiras. Mas preciso afirmar
honestamente que fazer parte desta história me afetou de modo
profundo, desvendando detalhes meus que eu desconhecia.
Confesso que desejo desesperadamente que tudo o que Mack me
contou seja verdade. Na maioria das vezes eu me sinto próximo
dele, mas em outras — quando o mundo visível de concreto e
computadores parece ser o real — perco o contato e tenho dúvidas.
Algumas observações finais. Mack gostaria que eu lhe
transmitisse o seguinte recado: "Se você odiar esta história,
desculpe, ela não foi escrita para você." Mas eu quero acrescentar:
afinal, talvez tenha sido. O que você vai ler é o máximo que Mack
consegue recordar daquilo que aconteceu. Esta é a história dele,
não a minha. Por isso, nas poucas vezes em que apareço, vou me
referir a mim mesmo na terceira pessoa — e do ponto de vista de
Mack.
Às vezes a memória pode ser uma companheira enganosa, em
especial com relação ao acidente, e eu não ficarei surpreso se,
apesar de nosso esforço conjunto para contar a história com
exatidão, alguns fatos e lembranças aparecerem distorcidos nestas
páginas. Não é intencional. Garanto que as conversas e eventos
foram registrados do modo mais fiel possível, de acordo com as
lembranças de Mack. Portanto, por favor, tente não se aborrecer
com ele. Como você verá, essas coisas não são fáceis de contar.
- Willie


1. UMA CONFLUÊNCIA DE CAMINHOS
Duas estradas se bifurcaram no meio da minha
vida,
Ouvi um sábio dizer.
Peguei a estrada menos usada.
E isso fez toda a diferença cada noite e cada dia.
— Larry Norman (pedindo desculpas a Robert
Frost)
Março desatou uma torrente de chuvas depois de um inverno
de secura anormal. Uma frente fria desceu do Canadá e foi contida
por rajadas de vento que rugiam pelo desfiladeiro, vindas do Leste
do Oregon. Ainda que a primavera certamente estivesse logo ali,
depois da esquina, o deus do inverno não iria abandonar sem luta
seu domínio conquistado com dificuldade. Havia um cobertor de
neve recente nas Cascades, e agora a chuva congelava ao bater no
chão do lado de fora da casa. Motivo suficiente para Mack se
enroscar com um livro e uma sidra quente, aconchegando-se no
calor do fogo que estalava na lareira.
Mas, em vez disso, ele passou a maior parte da manhã no
computador. Sentado confortavelmente no escritório de casa,
usando calças de pijama e uma camiseta, ele deu telefonemas de
vendas. Parava com freqüência, ouvindo o som da chuva cristalina
tilintar na janela e vendo o acúmulo vagaroso mas constante do
gelo lá fora. Estava se tornando inexoravelmente prisioneiro do
gelo em sua própria casa — e com muito prazer.
Há algo agradável nas tempestades que interrompem a rotina.
A neve ou a chuva gélida nos liberam subitamente das
expectativas, das exigências de resultados e da tirania dos
compromissos e dos horários. Ao contrário da doença, esta é uma
experiência mais coletiva do que individual. Quase podemos ouvir
um suspiro de alívio erguer-se em uníssono na cidade próxima e
no campo, onde a natureza interveio para dar uma folga aos
exaustos seres humanos. Todos os afetados pela tempestade são
unidos por uma desculpa mútua. De súbito e inesperadamente o
coração fica um pouco mais leve. Não serão necessárias desculpas
por não comparecer a algum compromisso. Todos entendem e
compartilham a mesma justificativa, e a retirada súbita de
qualquer pressão alegra a alma.
É claro que as tempestades também interrompem negócios, e,
embora umas poucas empresas tenham um ganho extra, outras
perdem dinheiro — o que significa que existem os que não sentem
júbilo quando tudo fecha temporariamente. Mas é impossível
culpar alguém pela perda de produção ou por não conseguir
chegar ao escritório. Mesmo que a situação só dure um ou dois
dias, de algum modo cada pessoa se sente dona do seu mundo
simplesmente porque aquelas gotinhas de água congelam ao bater
no chão.
Até as atividades comuns se tornam extraordinárias. Ações
rotineiras se transformam em aventuras e freqüentemente são
vivenciadas com maior clareza. No fim da tarde, Mack se encheu
de agasalhos e saiu para lutar com os quase 100 metros da
comprida entrada de veículos que vai até a caixa de correio. O gelo
havia convertido magicamente essa tarefa simples do dia-a-dia
numa batalha contra os elementos: levantou o punho em
contestação à força bruta da natureza e, num ato de desafio, riu
na cara dela. O fato de que ninguém notaria nem se incomodaria
com seu gesto pouco importava para ele — só o pensamento o fez
rir por dentro.
As pelotas de chuva gelada ardiam no rosto e nas mãos
enquanto ele subia e descia com cuidado as pequenas ondulações
do caminho. Mack se divertia pensando que parecia um
marinheiro bêbado indo com cuidado para o próximo boteco.
Quando você enfrenta a força de uma tempestade de gelo, não
caminha exatamente com ousadia, demonstrando uma confiança
incontida. Mack teve de se levantar duas vezes antes de finalmente
conseguir abraçar a caixa de correio como se fosse um amigo
desaparecido há muito.
Parou para apreciar a beleza de um mundo engolfado em
cristal. Tudo refletia luz e colaborava para o brilho crescente do fim
de tarde. As árvores no campo do vizinho tinham-se coberto com
mantos translúcidos, e agora cada uma parecia única ao seu olhar.
Era um mundo radiante e, por um momento, seu esplendor luzidio
quase retirou, ainda que por apenas alguns segundos, a Grande
Tristeza dos ombros de Mack.
Demorou quase um minuto para arrancar o gelo que havia
lacrado a tampa da caixa de correio. A recompensa por seus
esforços foi um único envelope onde havia apenas seu primeiro
nome escrito à máquina do lado de fora; sem selo, sem carimbo e
sem remetente. Curioso, ele rasgou a borda do envelope, tarefa que
não foi fácil, pois os dedos começavam a se enrijecer de frio. Dando
as costas para o vento que lhe tirava o fôlego, finalmente
conseguiu arrancar do ninho um pequeno retângulo de papel sem
dobra. A mensagem datilografada dizia simplesmente:
Mackenzie
Já faz um tempo. Senti sua falta.
Estarei na cabana no fim de semana que vem, se
você quiser me encontrar.
Papai
Mack se enrijeceu enquanto uma onda de náusea percorria
seu corpo e, com igual rapidez, se transmutava em ira. Esforçavase
para pensar o mínimo possível na cabana e, mesmo quando ela
lhe vinha à mente, seus pensamentos não eram agradáveis nem
bons. Se aquilo era uma piada de mau gosto, a pessoa realmente
havia se superado. E assinar “Papai” só tornava a coisa ainda mais
horrenda.
— Idiota — resmungou, pensando em Tony, o carteiro: um
italiano exageradamente amigável, com grande coração mas pouco
tato. Por que ele entregaria um envelope tão ridículo? Nem estava
selado. Mack enfiou com raiva o envelope e o bilhete no bolso do
casaco e virou-se para começar a deslizar na direção de casa. Os
sopros fortes do vento, que a princípio haviam diminuído de
intensidade, agora o empurravam, encurtando o tempo necessário
para atravessar a minigeleira que engrossava sob seus pés.
Estava se saindo bem, obrigado, até chegar à entrada de
veículos, que se inclinava um pouco para baixo e à esquerda. Sem
qualquer esforço ou intenção, começou a aumentar a velocidade,
deslizando com sapatos que tinham praticamente tanta firmeza
quanto um pato pousando num lago gelado. Com os braços
balançando loucamente na esperança de, não sabia como, manter
o equilíbrio, Mack se viu adernando de encontro à única árvore de
tamanho substancial que ladeava a entrada de veículos — a única
cujos galhos mais baixos ele havia cortado uns poucos meses
antes. Agora ela se erguia ansiosa para abraçá-lo, seminua e
aparentemente desejosa de uma pequena retribuição. Numa fração
de segundo, ele escolheu o caminho da covardia e tentou
despencar no chão, permitindo que os pés escorregassem — o que
eles de qualquer modo fariam. Melhor ter a bunda dolorida do que
arrancar lascas do rosto.
Mas a descarga de adrenalina o fez compensar
exageradamente, e em câmara lenta Mack viu os pés se erguerem à
sua frente, como se puxados para cima por alguma armadilha da
selva. Bateu com força, primeiro com a nuca, e escorregou até um
monte na base da árvore brilhosa, que pareceu se erguer acima
dele com uma expressão de presunção e nojo, além de uma certa
decepção.
O mundo pareceu ficar escuro por um instante. Ele
permaneceu ali deitado, tonto e olhando o céu, franzindo os olhos
enquanto a precipitação gelada esfriava rapidamente seu rosto
vermelho. Durante uma pausa ligeira, tudo pareceu
estranhamente quente e pacífico, com sua cólera
momentaneamente nocauteada pelo impacto.
— Agora, quem é o idiota? — murmurou consigo mesmo,
esperando que ninguém estivesse olhando.
O frio se entranhava rapidamente pelo casaco e pelo suéter, e
Mack soube que a chuva gelada que estava ao mesmo tempo se
derretendo e se congelando embaixo dele iria logo se tornar um
enorme desconforto. Gemendo e sentindo-se muito velho, rolou
apoiando-se nas mãos e nos joelhos. Foi então que viu a marca de
um vermelho forte traçando sua jornada desde o ponto de impacto
até o destino final. Como se gerado pela súbita percepção do
ferimento, um martelar surdo começou a subir pela nuca.
Instintivamente ele procurou a fonte das batidas de tambor e
trouxe de volta a mão ensangüentada.
Com o gelo áspero e o cascalho afiado cortando as mãos e os
joelhos, Mack meio engatinhou, meio escorregou, até conseguir
chegar a uma parte plana da entrada de veículos.
Com um esforço considerável, finalmente pôde ficar de pé e
avançar cautelosamente, centímetro a centímetro, em direção à
casa, humilhado pelos poderes do gelo e da gravidade.
Assim que entrou, Mack se livrou metodicamente e do melhor
modo que pôde das camadas de roupa de frio, cornos dedos meio
congelados reagindo com quase tanta destreza quanto se fossem
porretes enormes na ponta dos braços. Decidiu largar aquela
bagunça molhada e manchada de sangue ali mesmo na entrada,
onde a deixara cair, e avançou dolorosamente até o banheiro para
examinar os ferimentos. Não existia dúvida de que o caminho
gelado havia vencido. Do talho na nuca escorria sangue ao redor
de algumas pedrinhas ainda encravadas no couro cabeludo. Como
havia temido, um galo significativo tinha se formado, emergindo
como uma baleia-corcunda rompendo as ondas de seu cabelo ralo.
Enquanto tentava ver a nuca com um pequeno espelho de
mão que refletia uma imagem invertida do espelho do banheiro,
Mack achou difícil fazer um curativo. Depois de uma curta
frustração, desistiu, incapaz de obrigar as mãos a irem na direção
certa e sem saber qual dos dois espelhos mentia para ele. Tateando
com cuidado ao redor do talho encharcado, conseguiu tirar os
pedaços maiores de cascalho, até que a dor ficou forte demais para
continuar. Pegou um pouco de pomada de primeiros socorros e
tapou o ferimento do melhor modo que pôde. Em seguida amarrou
uma toalha de rosto na nuca usando um pouco de gaze que
encontrou numa gaveta do banheiro. Olhando-se no espelho,
pensou que se parecia um pouco com um marinheiro rude saído
do romance Moby Dick. Isso o fez rir, depois se encolher.
Teria de esperar até que Nan chegasse em casa para receber
qualquer atendimento médico verdadeiro, uma das muitas
vantagens de ser casado com uma enfermeira. De qualquer modo,
sabia que quanto pior fosse a aparência, mais solidariedade iria
receber.
Se prestarmos bastante atenção, sempre conseguiremos
descobrir alguma compensação no sofrimento. Engoliu dois
analgésicos para diminuir a dor e mancou até a porta da frente.
Nem por um instante Mack se esqueceu do bilhete.
Remexendo na pilha de roupas molhadas e ensangüentadas,
finalmente o encontrou no bolso do casaco. Olhou, voltou para o
escritório, achou o número da agência de correio e ligou. Como
esperava, Annie, a matronal chefe do correio e guardiã dos
segredos d a população local, atendeu.
— Oi, por acaso o Tony está aí?
— Oi, Mack, é você? Reconheci sua voz.
— Claro que reconheceu.
— Desculpe, mas o Tony ainda não voltou. Na verdade, acabo
de falar com ele pelo rádio. Está na metade da Wildcat, nem
chegou à sua casa ainda. O que você quer que eu diga a ele, se
conseguir voltar vivo?
— Na verdade você já respondeu à minha pergunta.
Houve uma pausa do outro lado.
— O que há de errado, Mack? Ainda está fumando muito
bagulho, ou só faz isso nas manhãs de domingo para conseguir
suportar o culto na igreja? — Ela começou a rir, encantada com o
brilho de seu próprio senso de humor.
— Bom, Annie, você sabe que eu não fumo bagulho. Nunca
fumei e nem quero.
Claro que Annie sabia disso, mas Mack não podia se arriscar.
Não seria a primeira vez em que o senso de humor de Annie se
transformaria numa boa história que logo se tornaria um "fato".
Ele podia ver seu nome sendo acrescentado à corrente de orações
da igreja.
— Tudo bem, eu falo com o Tony outra hora, não é
importante.
— Então está certo, e fique dentro de casa, que é mais
seguro. Você sabe, um cara velho como você pode perder o senso
de equilíbrio com o passar dos anos.
Do jeito que as coisas andam, talvez Tony não consiga chegar
à sua casa.
— Obrigado, Annie. Tentarei lembrar do seu conselho. Falo
com você mais tarde. Tchau.
Sua cabeça latejava cada vez mais, pequenos martelos de
forja batendo no ritmo do coração. "Estranho", pensou, "quem
ousaria colocar algo assim na nossa caixa de correio?" Os
analgésicos ainda não haviam surtido o efeito desejado, mas eram
suficientes para embotar o início de preocupação que ele estava
sentindo, e de repente Mack ficou muito cansado. Pousou a cabeça
na mesa e pensou que havia acabado de cair no sono quando o
telefone o acordou com um susto.
— Ah... alô?
— Oi, amor. Parece que você estava dormindo.
Ele sentiu na voz de Nan uma animação incomum, mesmo
percebendo a tristeza encoberta que espreitava logo abaixo da
superfície de cada conversa. Mack ligou a luminária da mesa e
olhou o relógio, surpreso ao constatar que dormira por cerca de
duas horas.
— Ah, desculpe. Acho que cochilei um pouco.
— É, você parece meio grogue. Tudo bem?
— Tudo. — Mesmo estando quase escuro lá fora, Mack podia
ver que a tempestade não havia amainado. Tinha até depositado
mais uns 5 centímetros de gelo. Os galhos das árvores pendiam
baixos e ele sabia que alguns acabariam se partindo com o peso,
principalmente se o vento aumentasse. — Tive um pequeno
entrevero na entrada de veículos quando fui pegar a
correspondência. Mas, fora isso, tudo bem. E você?
— Ainda estou na casa da Arlene e acho que eu e as crianças
vamos passar a noite aqui. É sempre bom para a Kate estar com a
família... parece que isso restaura um pouco o seu equilíbrio. —
Arlene era a irmã de Nan, que morava do outro lado do rio, em
Washington.
— De qualquer modo, está escorregadio demais para sair.
Espero que melhore de manhã. Queria ter chegado em casa antes
de o tempo ficar tão ruim, mas o que se há de fazer? — Houve uma
pausa. — Como está tudo por aí?
— Bem, está absolutamente, espantosamente lindo e
muitíssimo mais seguro de olhar do que de andar, acredite. Eu
certamente não quero que você tente chegar aqui nessa situação.
Nada se mexe. Acho que nem o Tony conseguiu trazer a
correspondência.
— Achei que você já tinha pegado a correspondência.
— Não, achei que o Tony tinha passado e fui pegar. E —
Mack hesitou, olhando o bilhete sobre a mesa — não havia
nenhuma correspondência. Liguei para Annie e ela disse que o
Tony provavelmente não ia conseguir subir a ladeira. De qualquer
modo — ele mudou rapidamente de assunto para evitar mais
perguntas —, como está a Kate?
Houve uma pausa e depois um longo suspiro. Quando Nan
falou, sua voz saiu num sussurro, e Mack percebeu que ela estava
tapando o bocal do outro lado.
— Mack, eu gostaria de saber. Por mais que eu tente, não
consigo. É como se eu falasse com uma pedra. Quando tem gente
da família por perto, ela parece sair um pouco da casca, mas
depois some de novo. Simplesmente não sei o que fazer. Rezei e
rezei para que Papai nos auxiliasse a encontrar um modo de
ajudá-la, mas... — Nan parou de novo — parece que ele não está
ouvindo.
Era assim. Papai era o nome com que Nan se referia a Deus e
expressava o deleite que lhe provocava sua amizade íntima com
ele.
— Querida, tenho certeza de que Deus sabe o que está
fazendo. Tudo vai dar certo. — Essas palavras não lhe trouxeram
conforto, mas ele esperava que pudessem aliviar a preocupação
que sentia na voz dela.
— Eu sei — Nan suspirou. — Só gostaria que ele andasse
mais depressa.
— Eu também — foi tudo o que Mack conseguiu dizer. —
Bom, você e as crianças fiquem aí, onde é seguro. Dê lembranças à
Arlene e ao Jimmy e agradeça a eles por mim. Espero ver você
amanhã.
— Eu também. Se cuide e me ligue se precisar de alguma
coisa. Tchau.
Mack sentou-se e olhou o bilhete. Era confuso e doloroso
tentar evitar a cacofonia de emoções perturbadoras e de imagens
sombrias que nublava sua mente — um milhão de pensamentos
viajando a um milhão de quilômetros por hora. Por fim desistiu,
dobrou o bilhete, enfiou-o numa pequena lata que ficava sobre a
mesa e apagou a luz.
Conseguiu encontrar algo para aquecer no microondas,
depois pegou alguns cobertores e travesseiros e foi para a sala de
estar. Ao olhar rapidamente para o relógio, viu que o programa de
Bill Moyer tinha acabado de começar; era seu programa predileto,
que ele tentava não perder nunca. Moyer era uma das
pouquíssimas pessoas que Mack adoraria conhecer: um homem
brilhante e franco, capaz de exprimir com clareza incomum uma
compaixão intensa pelas pessoas e pela verdade.
Quase sem pensar e sem afastar os olhos da televisão, Mack
estendeu a mão para a mesinha de canto, pegou um porta-retrato
com a imagem de uma menininha e o apertou contra o peito. Com
a outra mão puxou os cobertores até o queixo e se aninhou mais
fundo no sofá.
Logo o som de roncos suaves encheu o ar, enquanto o
aparelho exibia um estudante no Zimbábue, que fora espancado
por falar contra o governo. Mas Mack já havia saído da sala para
lutar com seus sonhos. Talvez essa noite não houvesse pesadelos,
só visões, quem sabe, de gelo, árvores e gravidade.


2. A ESCURIDÃO SE APROXIMA
Nada nos deixa tão solitários quanto nossos
segredos.
— Paul Tournier
Durante a noite um vento sudoeste soprou pelo vale de
Villamette, libertando a paisagem do aperto gélido da tempestade.
Em menos de 24 horas instalou-se um calor de início de verão.
Mack dormiu até tarde, um daqueles sonos sem sonhos que
parecem durar apenas um instante.
Quando finalmente se arrastou do sofá, surpreendeu-se ao
descobrir que as loucuras do gelo haviam se dissolvido tão
depressa, mas deliciou-se ao ver Nan e as crianças aparecerem
menos de uma hora depois. Primeiro veio a bronca previsível por
ele não ter posto as roupas sujas de sangue na lavanderia. Em
seguida, uma quantidade adequada de exclamações que
acompanharam o exame que ela fez no ferimento da cabeça. O
cuidado agradou imensamente a Mack e logo Nan o havia limpado,
remendado e alimentado. Mas não houve menção ao bilhete
sempre presente em sua mente. Ele ainda não sabia o que pensar
a respeito e não queria envolver Nan em algum tipo de piada cruel.
As pequenas distrações, como a tempestade de gelo, eram
uma trégua bem-vinda que afastava por instantes a presença
terrível de sua companheira constante: a Grande Tristeza, como ele
a chamava. Pouco depois do verão em que Missy desaparecera, a
Grande Tristeza havia pousado nos ombros de Mack como uma
capa invisível, mas quase palpável. O peso daquela presença
embotava seus olhos e curvava seus ombros. Até os esforços para
afastá-la eram exaustivos, como se os braços estivessem
costurados nas dobras escuras do desespero que agora, de algum
modo, tinha se tornado parte dele. Comia, trabalhava, amava,
sonhava e brincava sempre usando essa vestimenta, como se fosse
um roupão de chumbo.
Andava com dificuldade pela melancolia tenebrosa que
sugava a cor de tudo.
Às vezes ele podia sentir a Grande Tristeza se apertando
lentamente ao redor do peito e do coração, como os anéis
esmagadores de uma jibóia, espremendo líquido dos seus olhos até
ele achar que não existia mais nenhuma gota. Em outras ocasiões
sonhava que seus pés estavam presos em lama pegajosa, enquanto
tinha rápidos vislumbres de Missy correndo pelo caminho que
descia pela floresta à frente dele, o vestido vermelho de algodão
leve enfeitado pelas flores silvestres que piscavam entre as árvores.
Ela não fazia qualquer idéia da sombra escura que a seguia. Ainda
que Mack tentasse freneticamente gritar, nenhum som saía e ele
sempre chegava tarde demais e impotente demais para salvá-la.
Sentava-se empertigado na cama, o suor pingando do corpo
torturado, enquanto ondas de náusea, culpa e arrependimento
rolavam sobre ele como um maremoto surreal.
A história do desaparecimento de Missy infelizmente não é
como outras que a gente costuma ouvir. Tudo aconteceu no fim de
semana do Dia do Trabalho, o último brado de alegria do verão
antes de outro ano de escola e rotinas de outono. Mack decidiu
corajosamente levar as três crianças menores para um último
acampamento no lago Walowa, no Nordeste do Oregon. Nan já
estava inscrita num curso de reciclagem em Seattle, um dos dois
garotos mais velhos havia retornado à faculdade e o outro estava
trabalhando como monitor num acampamento de verão. Mas Mack
confiava na própria capacidade de combinar corretamente
conhecimentos de sobrevivência ao ar livre e habilidades maternas.
Afinal, Nan era uma boa professora e ele, um aluno aplicado.
O sentimento de aventura e a euforia do acampamento
tomaram conta de todos, e a casa virou um redemoinho de
atividades. Num determinado ponto da confusão, Mack decidiu
que precisava de uma trégua e se acomodou na cadeira do papai
depois de expulsar Judas, o gato da família. Já ia ligar a TV
quando Missy entrou correndo, segurando sua caixinha de plástico
transparente.
— Posso levar minha coleção de insetos para acampar com a
gente? — perguntou.
— Quer levar seus bichos? — grunhiu Mack, sem prestar
muita atenção.
— Pai, eles não são bichos. São insetos. Olha, tenho um
monte aqui.
Relutante, Mack deu atenção à filha, que, vendo-o
concentrado, começou a explicar o conteúdo do seu "baú" do
tesouro.
— Olha, tem dois gafanhotos. E olha aquela folha, é a minha
lagarta, e em algum lugar por aí... Ali! Está vendo minha joaninha?
E tenho uma mosca em algum lugar e umas formigas.
Enquanto ela fazia o inventário da coleção, Mack se esforçou
ao máximo para demonstrar que estava atento, balançando a
cabeça.
— Então — terminou Missy. — Você deixa eu levar?
— Claro que sim, querida. Talvez a gente possa soltá-los na
floresta quando estivermos lá.
— Não pode, não! — veio uma voz da cozinha. — Missy, você
tem de deixar a coleção em casa, querida. Acredite, eles estão mais
seguros aqui. — Nan esticou a cabeça pela quina da parede e
franziu a testa amorosamente para Mack, enquanto ele encolhia os
ombros.
— Eu tentei, querida — sussurrou ele para Missy.
— Grrr — rosnou Missy. E, sabendo que a batalha estava
perdida, pegou a caixa e saiu.
Na noite de quinta-feira a van estava lotada e a carretabarraca
de reboque presa, com luzes e freios testados. Na sexta de
manhã, depois de um último sermão de Nan para os filhos sobre
segurança, obediência, escovar os dentes de manhã, não pegar
gatos com listras brancas nas costas e todo tipo de outras coisas,
todos saíram: Nan para o norte e Mack e os três mosqueteiros para
o leste. O plano era voltar na noite de terça-feira, véspera do
primeiro dia de aula.
Mack e os filhos pararam na cachoeira Multnomah para
comprar um livro de colorir e lápis de cor para Missy e duas
máquinas fotográficas descartáveis e à prova d'água para Kate e
Josh. Depois decidiram subir a curta distância da trilha até a
ponte diante da cachoeira. Antigamente havia um caminho
rodeando o poço principal e entrando numa caverna rasa atrás da
queda-d'água, mas infelizmente ele tinha sido bloqueado pelas
autoridades do parque por causa da erosão. Missy adorava o lugar
e implorou ao pai para contar a lenda da bela jovem índia, filha de
um chefe da tribo Multnomah. Foi preciso um pouco de
insistência, mas por fim Mack cedeu e recontou a história
enquanto olhavam para a névoa que envolvia a cachoeira.
A história falava de uma princesa, a única filha que restava
ao pai idoso. O chefe adorava a filha e escolheu com cuidado um
marido para ela: um jovem chefe guerreiro da tribo Clatsop que a
amava. As duas tribos se juntaram para as comemorações do
casamento. Mas, antes do começo da festa, uma doença terrível
começou a matar muitos homens.
Os anciãos e os chefes se reuniram para discutir o que
poderiam fazer contra a doença devastadora que dizimava
rapidamente seus guerreiros. O curandeiro mais velho contou que
seu pai, perto de morrer, já bem idoso, havia previsto uma doença
terrível que mataria seus homens, uma doença que só poderia ser
vencida se a filha de um chefe, pura e inocente, oferecesse de boa
vontade a vida pelo seu povo. Para realizar a profecia, ela deveria
subir voluntariamente num penhasco acima do Grande Rio e pular
para a morte nas rochas abaixo.
Uma dúzia de jovens, todas filhas dos vários chefes, foram
trazidas diante do Conselho. Depois de demorados debates, os
anciãos decidiram que não poderiam pedir um sacrifício tão
precioso, sobretudo porque não sabiam se a lenda era verdadeira.
Mas a doença continuou se espalhando implacável entre os
homens, e finalmente o jovem chefe guerreiro, o futuro esposo,
caiu doente. A princesa, que o amava muito, soube no fundo do
coração que algo precisava ser feito e, depois de lhe dar um leve
beijo na testa, afastou-se.
Demorou toda a noite e todo o dia seguinte para chegar ao
local indicado na lenda, um penhasco altíssimo acima do Grande
Rio e das terras mais além. Depois de rezar e se entregar ao
Grande Espírito, ela cumpriu a profecia sem hesitar, pulando para
a morte nas rochas abaixo.
Nas aldeias, na manhã seguinte, os doentes se levantaram
saudáveis e fortes. Houve grande júbilo e comemoração, até que o
jovem guerreiro descobriu que sua adorada noiva havia sumido. À
medida que a percepção do que acontecera se espalhava
rapidamente entre o povo, muitos empreenderam a jornada até o
lugar onde sabiam que iriam encontrá-la. Enquanto se reuniam
em silêncio ao redor do corpo destroçado na base do penhasco, seu
pai, tomado pelo sofrimento, gritou para o Grande Espírito,
pedindo que o sacrifício dela fosse lembrado para sempre. Nesse
momento, do lugar de onde ela havia pulado começou a jorrar
água, transformando-se numa névoa fina que caía aos pés deles,
lentamente formando um lago maravilhoso.
Normalmente, Missy adorava a história. A narrativa possuía
todos os elementos de um verdadeiro conto de redenção, não muito
diferente da história de Jesus que ela conhecia tão bem. Falava de
um pai que amava a filha única e de um sacrifício anunciado por
um profeta. Por causa do amor, a jovem escolheu dar sua vida
para salvar o noivo e as tribos da morte certa.
Mas, dessa vez, Missy ficou quieta quando a história
terminou. Virou-se imediatamente e dirigiu-se para a van, como se
dissesse: "Tudo bem, não tenho mais nada para fazer aqui. Vamos
indo."
Deram uma parada rápida para um lanche junto ao rio Hood,
depois voltaram para a auto-estrada que iria levá-los pelos últimos
115 quilômetros até a cidade de Joseph. O lago o local de
acampamento ficavam poucos quilômetros depois de Joseph.
Quando chegaram, arrumaram tudo — não exatamente como Nan
teria preferido, mas do jeito que lhes pareceu melhor.
Naquele fim de tarde, sentado entre as três crianças que riam
assistindo a um dos maiores espetáculos da natureza, o coração de
Mack foi subitamente inundado por uma alegria inesperada. Um
pôr-do-sol de cores e padrões brilhantes destacava as poucas
nuvens que haviam esperado nas coxias para se tornarem os
atores centrais nessa apresentação única.
Ele era um homem rico, pensou, em todos os sentidos que
mais importavam.
Quando acabaram de limpar os restos do jantar, a noite havia
caído. Os cervos tinham ido para o lugar onde dormem. Seu turno
foi substituído pelos encrenqueiros noturnos: guaxinins, esquilos e
tâmias, que perambulavam em bandos procurando qualquer
recipiente ligeiramente aberto. Os Phillips sabiam disso por
experiência própria. A primeira noite que tinham passado nesses
locais de acampamento lhes custara quatro dúzias de barras de
cereal, uma caixa de chocolate e todos os biscoitos de creme de
amendoim.
Antes que ficasse muito tarde, os quatro deram uma pequena
caminhada para longe das fogueiras e das lanternas do
acampamento, até um lugar escuro e quieto onde pudessem se
deitar e olhar maravilhados a Via-Láctea, espantosa e intensa sem
a poluição das luzes da cidade. Mack era capaz de ficar horas
deitado olhando aquela vastidão. Sentia-se incrivelmente pequeno,
mas em paz. De todos os lugares em que a presença de Deus se
fazia sentir, era ali, rodeado pela natureza e sob as estrelas, um
dos mais tocantes. Quase podia ouvir o hino de adoração que os
astros faziam ao Criador, e em seu coração relutante ele
participava do melhor modo possível.
Então voltaram ao acampamento e, depois de várias viagens
aos banheiros, Mack enfiou os três na segurança de seus sacos de
dormir. Rezou brevemente com Josh antes de ir até onde Kate e
Missy estavam esperando. Quando chegou a vez de Missy rezar,
ela quis conversar com o pai.
— Papai, por que ela teve de morrer?
Mack demorou um momento para descobrir do que Missy
estava falando. Percebeu subitamente que a princesa índia devia
estar na cabeça da menina desde cedo, quando ele contara a
história.
— Querida, ela não teve de morrer. Ela escolheu morrer para
salvar seu povo. Eles estavam doentes e ela queria que se
curassem.
Houve um silêncio e Mack soube que outra pergunta estava
se formando no escuro.
— Isso aconteceu mesmo? — A pergunta agora vinha de Kate,
obvia mente interessada na conversa.
Mack pensou antes de falar.
— Não sei, Kate. É uma lenda, e às vezes as lendas são
histórias que ensinam uma lição.
— Então não aconteceu de verdade? — perguntou Missy.
— Pode ter acontecido, querida. Às vezes as lendas nascem de
histórias verdadeiras, coisas que aconteceram de fato.
De novo silêncio, e depois:
— Então a morte de Jesus é uma lenda?
Mack podia ouvir as engrenagens girando na mente de Kate.
— Não, querida, a história de Jesus é verdadeira. E sabe de
uma coisa? Acho que a história da princesa índia provavelmente
também é.
Mack esperou enquanto suas filhas processavam os
pensamentos. Missy foi a próxima a perguntar:
— O Grande Espírito é outro nome para Deus? Você sabe, o
pai de Jesus?
Mack sorriu no escuro. Obviamente as orações noturnas de
Nan estavam surtindo efeito.
— Acho que sim. É um bom nome para Deus, porque ele é
um espírito e é grande.
— Então por que ele é tão mau?
Ah, ali estava a pergunta que viera crescendo na cabecinha
da filha.
— Como assim, Missy?
— Bom, o Grande Espírito fez a princesa pular do penhasco e
fez Jesus morrer numa
cruz. Isso parece muito mau.
Mack ficou travado. Não sabia como responder. Com seis
anos e meio, Missy estava fazendo perguntas com as quais pessoas
sábias haviam lutado durante séculos.
— Querida, Jesus não achava que o pai dele era mau. Achava
que o pai era cheio de amor e que o amava muito. O pai dele não o
fez morrer. Jesus escolheu morrer porque ele e o pai amavam
muito você, eu e todas as pessoas. Ele nos salvou da doença, como
a princesa.
Agora veio o silêncio mais longo e Mack começou a imaginar
que a menina teria caído no sono. Quando ia se inclinar para lhes
dar um beijo, uma vozinha com um tremor perceptível rompeu a
quietude.
— Papai?
— Sim, querida?
— Algum dia eu vou ter de pular de um penhasco?
O coração de Mack doeu quando ele entendeu a verdadeira
questão. Abraçou a menininha e a apertou. Com a voz um pouco
mais rouca do que o usual, respondeu gentilmente:
— Não, querida. Nunca vou pedir para você pular de um
penhasco, nunca, nunca, jamais.
— Então Deus vai me pedir para pular de um penhasco?
— Não, Missy. Ele nunca pediria que você fizesse uma coisa
dessas.
Ela se aninhou mais fundo em seus braços.
— Está bem! Me dá um abraço apertado. Boa noite, papai. Eu
te amo.
— E apagou, caindo num sono profundo embalado por
sonhos bons e doces.
Depois de alguns minutos, Mack a colocou suavemente no
saco de dormir.
— Você está bem, Kate? — sussurrou enquanto lhe dava um
beijo.
— Estou — veio a resposta murmurada. — Pai?
— O que é, querida?
— A Missy faz perguntas boas, não é?
— Com certeza. É uma menininha especial. Você também é,
só que não é mais tão pequenininha. Agora durma, temos um
grande dia pela frente. Lindos sonhos, querida.
— Você também, pai. Te amo demais!
— Te amo também, de todo o coração. Boa noite.
Mack fechou o zíper do reboque ao sair, assoou o nariz e
enxugou as lágrimas que desciam pelo rosto. Fez uma oração
silenciosa de agradecimento a Deus e foi coar um pouco de c


3. O MERGULHO
A alma é curada ao estar com crianças.
— Fedor Dostoievski
O Parque Estadual do Lago Wallowa, no Oregon, e a área ao
redor têm sido chamados, com propriedade, de Pequena Suíça da
América. Montanhas escarpadas e agrestes erguem-se até quase 3
mil metros e, no meio delas, há inúmeros vales escondidos cheios
de riachos, trilhas de caminhada e altas campinas cobertas de
flores silvestres. O lago Wallowa é a passagem para a Área de
Recreação Nacional de Hells Canyon, onde está o maior
desfiladeiro da América do Norte. Esculpido no decorrer de séculos
pelo rio Snake, em alguns lugares tem mais de 3 quilômetros do
topo à base, e às vezes 16 quilômetros de uma borda à outra.
Na Área de Recreação há mais de 1.400 quilômetros de
trilhas de caminhada. Os vestígios da presença da tribo Nez Perce,
que antes dominava a região, estão espalhados por essa vastidão,
junto com os dos colonos brancos que passavam a caminho do
Oeste. A cidade de Joseph, ali perto, é assim chamada por causa
de um poderoso chefe tribal cujo nome indígena significava Trovão
Rolando Montanha Abaixo. A área oferece abundante flora e vida
selvagem, incluindo alces, ursos, cervos e cabritos monteses.
O lago Wallowa mede 8 quilômetros de comprimento e um e
meio de largura e foi formado, segundo alguns, por geleiras que ali
se encontravam há 9 milhões de anos. Fica a cerca de um
quilômetro e meio da cidade de Joseph, a uma altitude de 1.340
metros. A temperatura da água é de tirar o fôlego durante a maior
parte do ano, mas fica agradável no fim do verão para um nado
rápido perto da margem.
Mack e as crianças preencheram os três dias seguintes com
diversão e lazer. Missy, aparentemente satisfeita com as respostas
do pai, não voltou ao assunto da princesa, mesmo quando uma
caminhada diurna os levou perto de penhascos altíssimos.
Passaram algumas horas andando de pedalinho junto à
margem do lago, esforçaram-se ao máximo para ganhar um prêmio
no minigolfe, cavalgaram nas trilhas e visitaram as lojinhas da
cidade de Joseph.
Ao longo do fim de semana, duas outras famílias juntaram-se
magicamente ao mundo dos Phillips. Como acontece
freqüentemente, as crianças deram início à amizade. Josh gostou
especialmente de conhecer os Ducette, pois a filha mais velha,
Amber, era uma linda mocinha mais ou menos da sua idade. Kate
adorou implicar com o irmão mais velho por causa disso, e ele
reagiu indo irritado para a carreta-barraca, vociferando e
resmungando. Amber tinha uma irmã, Emmy, apenas um ano
mais nova do que Kate, e as duas passaram a brincar juntas.
Vicky e Emil Ducette tinham viajado de sua casa no Colorado,
onde Emil trabalhava como agente policial do Serviço de Pesca e
Vida Selvagem e Vicky cuidava do lar e do filho caçula, J. J., que
agora tinha quase um ano.
Os Ducette apresentaram Mack e os filhos a um casal
canadense que haviam conhecido antes, Jesse e Sarah Madison.
Pareciam tranqüilos, despretensiosos, e Mack gostou deles à
primeira vista. Os dois trabalhavam como consultores
independentes, Jesse na área de recursos humanos e Sarah na de
administração. Missy ligou-se logo a Sarah e as duas costumavam
ir ao acampamento dos Ducette para ajudar Vicky com J. J.
O domingo nasceu radioso e todo o grupo se empolgou com a
idéia de pegar o teleférico do lago Wallowa até o topo do monte
Howard — 2.484 metros acima do nível do mar. Jesse e Sarah
convidaram todos para almoçar em um restaurante no topo da
montanha. Depois passariam o resto do dia caminhando até os
cinco pontos de observação e os mirantes.
Armados de máquinas fotográficas, óculos escuros, garrafas
d'água e protetor solar, partiram no meio da manhã. Como já
imaginavam, fizeram uma verdadeira festa com hambúrgueres,
batatas fritas e milk-shakes no restaurante. A altitude estimulou o
apetite — até Missy seguiu devorar um hambúrguer inteiro e a
maior parte das outras guloseimas.
Depois do almoço, caminharam pelas trilhas até os mirantes
próximos. Dali se divisava um panorama deslumbrante que ia até
o horizonte, semeado de pequenas cidades. No fim da tarde
estavam todos cansados e felizes. Missy, que Jesse havia carregado
nos ombros até os dois últimos mirantes, dormia no colo do pai
enquanto chacoalhavam no teleférico de descida.
"Este é um daqueles momentos raros e preciosos", pensou
Mack, "que pegam a gente de surpresa e quase tiram o fôlego. Se
Nan estivesse aqui, seria realmente perfeito."
Ajeitou o peso de Missy numa posição mais confortável para
ela e tirou o cabelo do rosto da menina para olhá-la. A sujeira e o
suor do dia só faziam, estranhamente, aumentar seu ar de
inocência e sua beleza. "Por que eles têm de crescer?" pensou ao
dar um beijo na testa da filha.
Naquela noite, as três famílias se reuniram para um último
jantar juntos. Mais tarde, os adultos sentaram-se bebericando café
ao redor de uma fogueira, enquanto Emil contava suas aventuras
em operações contra quadrilhas de contrabando de animais em
extinção. Era um narrador hábil e sua profissão oferecia um
enorme elenco de histórias hilariantes. Tudo era fascínio e Mack
voltou a ser inundado por um intenso bem-estar.
Como acontece freqüentemente quando uma fogueira de
acampamento arde por muito tempo, a conversa passou do
humorístico para o mais pessoal. Sarah parecia ansiosa para
conhecer melhor o resto da família de Mack, especialmente Nan.
— Como ela é, Mackenzie?
Mack adorava exaltar as maravilhas de sua Nan.
— Modéstia à parte, Nan é linda por dentro e por fora. —
Sorriu encabulado e viu os dois olhando afetuosamente para ele.
Estava realmente com saudade de sua mulher. — O nome
completo dela é Nannette, mas quase todo mundo só a chama de
Nan. Tem uma tremenda reputação na comunidade médica, pelo
menos no Noroeste. É enfermeira e trabalha com pacientes
terminais de câncer. É um trabalho duro, mas ela adora. Bom,
Nan escreveu alguns textos e tem feito palestras em congressos.
— Verdade? — perguntou Sarah. — Sobre o que ela fala?
— Ela ajuda as pessoas que estão diante da morte a
pensarem no relacionamento com
Deus.
— Eu adoraria ouvir mais sobre isso — encorajou Jesse
enquanto atiçava o fogo com um graveto, fazendo-o avivar-se com
vigor renovado.
Mack hesitou. Por mais que se sentisse à vontade com
aqueles dois, não os conhecia de fato e a forma como a conversa se
aprofundara o deixava meio inquieto. Procurou responder de
maneira sucinta.
— Nan é muito melhor nisso do que eu. Acho que ela pensa
em Deus de modo diferente da maioria das pessoas. Ela até o
chama de Papai, porque se sente muito íntima dele, se é que isso
faz sentido para vocês.
— Claro que faz — exclamou Sarah, enquanto Jesse
confirmava com a cabeça. — Toda a sua família chama Deus de
Papai?
— Não — respondeu Mack rindo. — As crianças às vezes
chamam, mas eu não me sinto confortável com isso. Parece um
pouco familiar demais para mim. De qualquer modo, Nan tem um
pai maravilhoso e, por isso, acho que é mais fácil para ela.
A coisa havia escapado e Mack estremeceu por dentro
esperando que ninguém tivesse percebido; mas Jesse o olhava com
interesse.
— Seu pai não era maravilhoso? — perguntou com gentileza.
— É. — Mack fez uma pausa. — Acho que se pode dizer que
ele não era maravilhoso. Morreu quando eu era criança, de causas
naturais. — Riu, mas o som foi oco. Olhou para os dois. — Bebeu
até morrer.
— Lamentamos muito — disse Sarah afetuosamente.
— Bom — ele observou, forçando outro riso —, às vezes a
vida é dura, mas eu tenho muita coisa para agradecer.
Seguiu-se um silêncio incômodo e Mack se perguntou por que
estava falando sobre essas coisas com aqueles dois. Segundos
depois foi resgatado por um jorro de crianças que se derramaram
do trailer para o meio deles. Para alegria de Kate, ela e Emmy
haviam surpreendido Josh e Amber de mãos dadas no escuro e
queriam que todos soubessem.
Josh estava tão fascinado que nem chegou a protestar.
Quando os Madison se despediram de Mack e de seus filhos,
Sarah bateu carinhosamente no ombro do novo amigo. Depois
foram andando pela escuridão até o acampamento dos Ducette.
Mack ficou olhando-os até não conseguir mais escutar
seus sussurros e a luz oscilante da lanterna deles desaparecer.
Sorriu e virou-se para arrebanhar sua turma na direção dos sacos
de dormir.
As orações foram feitas, seguidas por beijos de boa noite e
risinhos de Kate conversando baixo com o irmão mais velho.
E, finalmente, silêncio.
Mack arrumou o que pôde usando a luz das lanternas e
decidiu deixar o resto para o dia seguinte. De qualquer modo, só
planejavam partir no início da tarde. Encheu seu último copo de
café e sentou-se, bebendo-o diante da fogueira que havia se
consumido até só restar uma massa faiscante de carvões
incandescentes. Estava sozinho, mas não solitário.
Esse não era o verso de uma música conhecida? Não tinha
certeza, mas, se conseguisse lembrar, procuraria o CD quando
chegasse em casa.
Hipnotizado pelo fogo e envolvido por seu calor, rezou,
principalmente orações de agradecimento. Tinha consciência dos
privilégios que recebera. Bênçãos provavelmente era a palavra
certa. Estava contente, descansado e em paz. Mack não sabia, mas
em menos de 24 horas suas orações mudariam. Drasticamente.
* * *
A manhã seguinte, apesar de ensolarada e quente, não
começou tão bem. Mack acordou cedo para surpreender as
crianças com um café da manhã especial, mas queimou dois dedos
quando tentava soltar as panquecas que haviam grudado na
frigideira. Reagindo à dor lancinante, derrubou o fogão, a frigideira
e a tigela de massa no chão arenoso. As crianças, acordadas pelo
barulho e pelos palavrões ditos em voz baixa, vieram ver o
que estava acontecendo. Começaram a rir quando descobriram o
que era, mas bastou um "Ei, isso não é engraçado!" de Mack para
voltarem para dentro da barraca, rindo escondidas enquanto
olhavam pelas janelas de tela.
Assim, em vez do planejado, o café da manhã se resumiu a
cereal frio com creme de leite diluído, já que o resto do leite fora
usado na massa de panqueca. Mack passou a hora seguinte
tentando arrumar o acampamento com dois dedos enfiados num
copo de água gelada. A notícia devia ter se espalhado, porque
Sarah Madison apareceu com material de primeiros socorros para
queimaduras. Minutos depois de ter seus dedos cobertos por um
líquido esbranquiçado, Mack sentiu a ardência diminuir.
Mais ou menos nessa hora, tendo terminado suas tarefas,
Josh e Kate vieram perguntar se poderiam dar um último passeio
na canoa dos Ducette, prometendo usar coletes salva-vidas. Depois
do inevitável "não" inicial e da insistência dos filhos,
Mack finalmente cedeu. Não estava muito preocupado. O
acampamento ficava pertinho do lago e eles prometeram não se
afastar da margem. Mack poderia vigiá-los enquanto continuava a
guardar as coisas.
Missy estava ocupada colorindo o livro da cachoeira
Multnomah.
Ela é linda demais, pensou Mack, olhando embevecido a filha
enquanto limpava a sujeira. A menina vestia a única roupa limpa
que lhe restara, um vestidinho vermelho de verão, com flores-docampo
bordadas, comprado em Joseph quando foram à cidade
no primeiro dia.
Cerca de 15 minutos depois, Mack levantou os olhos ao ouvir
uma voz familiar chamando do lago:
— Papai!
Era Kate. Ela e o irmão acenaram do bote. Ambos usavam os
coletes salva-vidas e Mack acenou de volta.
É estranho como um ato ou acontecimento aparentemente
insignificante pode mudar vidas inteiras. Levantando o remo para
acenar, Kate perdeu o equilíbrio e emborcou a canoa. Surgiu uma
expressão congelada de terror em seu rosto enquanto, quase em
silêncio e em câmara lenta, o barco virava. Josh se inclinou
freneticamente para tentar equilibrá-lo, mas era tarde demais e ele
desapareceu na água. Mack já corria para a beira do lago,
não pretendendo entrar, mas para estar perto quando eles
saíssem. Kate emergiu primeiro, tossindo e gritando, porém não
havia sinal de Josh. E de repente Mack viu uma erupção de água e
pernas e soube naquele momento que algo estava terrivelmente
errado.
Para seu espanto, todos os instintos que havia desenvolvido
como salva-vidas na adolescência voltaram instantaneamente. Em
questão de segundos ele caiu na água, tirando os sapatos e a
camisa. Nem se deu conta do choque gelado ao disparar na direção
da canoa virada, ignorando os soluços aterrorizados da filha. Ela
estava em segurança. Seu foco principal era Josh.
Respirando fundo, mergulhou. Apesar de toda a agitação, a
água continuava razoavelmente límpida. Encontrou Josh
rapidamente e logo descobriu a razão de seu problema. Uma
das tiras do colete salva-vidas se prendera na amarra da canoa.
Por mais que tentasse, Mack não conseguiu soltá-la e por isso fez
sinal para Josh entrar mais fundo sob a canoa, onde havia um
bolsão de ar. Mas o pobre garoto estava em pânico, tentando
livrar-se da tira que o prendia embaixo d'água sob a borda d a
canoa.
Mack veio à superfície, gritou para Kate nadar até a margem,
sugou todo o ar que pôde e mergulhou pela segunda vez. No
terceiro mergulho, sabendo que o tempo estava acabando,
percebeu que tinha duas alternativas: tentar livrar Josh do colete
ou virar a canoa. Escolheu a segunda opção. Se foram Deus e os
anjos, ou Deus e a adrenalina, ele jamais teve certeza, mas na
segunda tentativa conseguiu virar a canoa, libertando Josh da
amarra.
O colete manteve o rosto do garoto acima da água. Mack
emergiu atrás de Josh, agora frouxo e inconsciente, com sangue
escorrendo de um talho na cabeça, que a canoa acertara quando
Mack a virara de volta. Começou imediatamente a fazer respiração
boca a boca no filho, do melhor modo que podia, enquanto outras
pessoas o ajudavam a puxá-lo em direção à parte rasa.
Sem perceber os gritos ao redor, Mack se concentrou na
tarefa, com o ? borbulhando no peito. Quando os pés de Josh
tocaram terreno firme, o garoto começou a tossir e a vomitar água
e o café da manhã. Aplausos empolgados irromperam ao redor,
porém Mack não deu a mínima. Dominado pelo alívio e pela
descarga de adrenalina resultante do esforço, começou a chorar e,
de repente, Kate estava soluçando com os braços em volta de seu
pescoço, enquanto todos riam, choravam e se abraçavam.
Dentre os que haviam sido atraídos pelo barulho estavam
Jesse Madison e Emil Ducette. Em meio à confusão de gritos de
alegria e de alívio, Mack escutou a voz de Emil sussurrando:
— Desculpe... desculpe... desculpe.
A canoa era dele, poderiam ter sido seus filhos. Mack o
abraçou e disse quase gritando em seu ouvido:
— Pare com isso! Não foi culpa sua e estão todos bem.
Emil começou a soluçar, com as emoções subitamente
liberadas de uma represa de culpa e medo contidos.
Uma tragédia fora evitada. Pelo menos era o que Mack
pensava.


4. A GRANDE TRISTEZA
A tristeza é um muro entre dois jardins.
— Khalil Gibran
Mack continuava parado junto à margem, ainda tentando
recuperar o fôlego. Demorou alguns minutos antes de pensar em
Missy. Lembrando-se que ela ficara colorindo o livro, subiu pela
margem até onde podia ver seu acampamento, mas não havia sinal
da menina. Apressou o passo, correndo até a barraca, chamando
seu nome com o máximo de calma que conseguiu. Não houve
resposta. Ela não estava ali. Mesmo com o coração disparado, ele
racionalizou, pensando que na confusão alguém havia cuidado
dela, provavelmente Sarah Madison ou Vicky Ducette. Procurando
controlar a ansiedade e o pânico, foi ao encontro dos novos amigos
e perguntou se podiam ajudá-lo a procurar Missy. Os dois
dirigiram-se rapidamente para seus acampamentos. Jesse
retornou primeiro, anunciando que Sarah não tinha visto Missy
naquela manhã. Acompanhou Mack ao acampamento dos Ducette,
mas, antes de chegarem lá, Emil veio correndo em sua direção
com uma expressão claramente apreensiva no rosto.
— Ninguém viu Missy hoje e também não encontramos
Amber. Será que estão juntas? — Havia uma sugestão de pânico
na pergunta de Emil.
— Tenho certeza de que é isso — disse Mack, tentando se
tranqüilizar e acalmar Emil ao mesmo tempo. — Aonde você acha
que elas podem ter ido?
— Por que não verificamos os banheiros e chuveiros? —
sugeriu Jesse.
— Boa idéia — falou Mack. — Vou olhar no que fica mais
próximo da nossa área, o que meus filhos usam. Por que você e
Emil não verificam o que fica entre as duas áreas?
Eles concordaram e Mack foi numa corrida lenta para os
chuveiros mais próximos, notando pela primeira vez que estava
descalço e sem camisa.
"Que figura devo estar", pensou, e provavelmente teria achado
graça se sua mente não estivesse tão concentrada em Missy.
Quando chegou aos banheiros, perguntou a uma adolescente
que saía da parte feminina se tinha visto uma garotinha de vestido
vermelho lá dentro, ou talvez duas garotas. Ela disse que não
havia notado, mas que olharia de novo. Em menos de um minuto
estava de volta balançando a cabeça.
— Obrigado mesmo assim — disse Mack, e foi para a parte de
trás da construção, onde ficavam os chuveiros. Enquanto virava a
esquina, começou a chamar Missy em voz alta. Mack podia ouvir a
água correndo, mas ninguém respondeu. Imaginando se Missy
estaria em um dos chuveiros, começou a bater na porta de cada
um até obter resposta. Seis cubículos de chuveiro e nada de Missy.
Verificou os do banheiro masculino, mas ela não se encontrava em
lugar nenhum. Correu de volta na direção do acampamento de
Emil, incapaz de rezar qualquer coisa, a não ser repetir "Ah, meu
Deus, me ajude a achá-la... Ah, meu Deus, por favor, me ajude a
achá-la".
Quando o viu, Vicky correu ao seu encontro. Estivera
tentando conter o choro, mas não conseguiu quando se
abraçaram. De repente, Mack desejou desesperadamente que
Nan estivesse ali. Ela saberia o que fazer, pelo menos qual seria a
coisa certa. Ele se sentia totalmente perdido.
— Sarah levou Josh e Kate para o seu acampamento,
portanto não se preocupe com eles — disse Vicky em meio aos
soluços.
"Ah, meu Deus", pensou Mack, percebendo que tinha
esquecido completamente de seus outros dois filhos. "Que tipo de
pai eu sou?"
Mesmo sentindo-se aliviado porque Sarah estava cuidando
deles, desejou ainda mais intensamente que Nan estivesse ali.
Nesse momento, Emil e Jesse apareceram, Emil aparentando
alívio e Jesse parecendo tenso como uma corda esticada.
— Nós a encontramos — exclamou Emil, o rosto se
iluminando e depois ficando sombrio ao perceber o que estava
dizendo. — Quero dizer, encontramos Amber. Ela voltou do banho
que foi tomar em outro lugar, onde havia água quente. Disse que
tinha falado com a mãe, mas Vicky provavelmente não escutou...
— Sua voz parou no ar.
— Mas não encontramos Missy — acrescentou Jesse
rapidamente, respondendo à pergunta mais importante. — Amber
também não a viu hoje.
Emil, no auge da eficiência, assumiu o controle.
— Mack, temos de contatar as autoridades do camping
imediatamente e botar todo mundo procurando Missy. Talvez, no
meio da agitação, ela telha se assustado e se confundido e
simplesmente saiu andando e se perdeu, ou talvez estivesse
tentando nos encontrar e caminhou na direção errada. Você tem
uma foto dela? Talvez haja uma copiadora no Escritório e
poderíamos fazer algumas cópias para economizar tempo.
— É, tenho uma foto na carteira. — Mack enfiou a mão no
bolso de trás e por um segundo entrou em pânico ao não encontrar
nada ali. Achou que poderia estar no fundo do lago Wallowa, mas
então lembrou que a deixara no carro depois da viagem
de teleférico no dia anterior.
Os três voltaram ao acampamento de Mack. Jesse correu na
frente para avisar Sarah que Amber estava em segurança, mas que
Missy não fora encontrada. Chegando ao acampamento, Mack
abraçou Josh e Kate, tentando parecer calmo. Tirando a
roupa molhada, vestiu uma camiseta e jeans, meias secas e um
par de tênis. Sarah prometeu que ela e Vicky ficariam com seus
filhos mais velhos e sussurrou que estava rezando por ele e Missy.
Mack agradeceu dando-lhe um abraço rápido e depois de beijar os
filhos, juntou-se aos outros dois homens que corriam para o
escritório do camping.
A notícia do resgate na água havia chegado à pequena sede e
todos se mostravam animados. O clima mudou rapidamente
quando souberam do desaparecimento de Missy. No escritório
havia uma copiadora e Mack, depois de tirar várias cópias
do retrato da filha, as distribuiu.
O jovem subgerente, Jeremy Bellamy, ofereceu-se para ajudar
na busca. Então eles dividiram o camping em quatro áreas e cada
um saiu levando um mapa, a foto de Missy e um walkie-talkie.
Era um trabalho lento e metódico, lento demais para Mack,
mas ele sabia que esse era o modo mais lógico de encontrá-la se...
se ainda estivesse no camping. Enquanto andava entre barracas e
trailers, rezava e fazia promessas. Tinha consciência de que
prometer coisas a Deus era idiota e irracional, mas não conseguia
evitar. Estava desesperado para ter Missy de volta e sem dúvida
Deus sabia onde ela se encontrava.
Muitos campistas estavam acabando de arrumar suas
bagagens para irem embora.
Ninguém tinha visto Missy ou uma menina parecida com ela.
A pequenos intervalos, cada grupo de busca entrava em contato
com o escritório para saber se havia alguma novidade. Mas não
houve qualquer notícia até quase duas da tarde.
Mack estava terminando de vasculhar sua área quando veio o
chamado pelo walkie-talkie.
Jeremy, que cobria a área mais perto da entrada, achou que
encontrara algum indício. Foram todos ao seu encontro. Mack
chegou por último e viu Emil e Jeremy ouvindo atentamente um
rapaz desconhecido.
Emil disse a Mack rapidamente o que ouvira e o apresentou
ao rapaz. Seu nome era Virgil Thomas e ele estava acampado na
área com alguns colegas desde o início do verão.
Os outros dormiam pesadamente quando Virgil viu uma velha
picape verde-oliva saindo do camping e descendo na direção de
Joseph.
— Mais ou menos a que horas? — perguntou Mack.
— Foi antes do meio-dia, mas não tenho certeza, porque
estava de ressaca.
Mostrando a foto de Missy para o rapaz, Mack perguntou de
modo áspero:
— Você acha que viu essa menina?
Quando o outro cara me mostrou essa foto antes, ela não me
pareceu familiar — respondeu Virgil, olhando de novo. — Mas
então, quando ele disse que ela estava usando um vestido
vermelho-vivo, lembrei que a menininha na picape verde estava
com um vestido dessa cor. Vi que ela estava rindo ou berrando,
não dava para saber. E então tive a impressão de que o motorista
lhe deu um tapa ou a empurrou para baixo, mas acho que
ele também podia estar só brincando.
Mack ficou paralisado. Apesar de assustadora, infelizmente
essa informação era a única que até então fazia sentido. Explicava
por que não haviam encontrado nenhum traço de Missy. Mas tudo
dentro dele não queria que fosse verdade. Virou-se e começou a
correr para o escritório, mas foi contido pela voz de Emil.
— Mack, pára! Nós já falamos com o escritório pelo rádio e
avisamos o xerife de Joseph. Eles vão mandar alguém para cá
agora mesmo e estão emitindo um boletim de busca para a picape.
Nesse momento duas radiopatrulhas entraram no camping. A
primeira foi direto para o escritório e a outra para a área onde os
homens se encontravam. Mack correu ao encontro do policial, um
rapaz de cerca de 30 anos, que se apresentou como Dalton e
começou a ouvir as pessoas.
Nas horas seguintes houve um movimento crescente de
reação ao desaparecimento de Missy.
Expediram uma ordem de busca, bloquearam a auto-estrada
e os guardas florestais da área foram avisados para ficarem
atentos.
Isolaram o acampamento dos Phillips com fitas,
caracterizando-o como uma cena de crime, e todos nas imediações
foram interrogados. Virgil forneceu o máximo de detalhes que pôde
sobre a picape e os ocupantes e a descrição foi enviada a todos os
órgãos policiais mais importantes.
Os oficiais de campo do FBI em Portland, Seattle e Denver
foram alertados. Nan estava a caminho, trazida de carro por sua
melhor amiga, Maryanne. Trouxeram cães rastreadores, mas as
pistas de Missy terminavam no estacionamento próximo,
aumentando a probabilidade de que a história de Virgil fosse
verdadeira.
Depois que os peritos examinaram minuciosamente o
acampamento o policial Dalton pediu que Mack entrasse de novo
na área e observasse tudo com cuidado, em busca de algo
diferente.
Mack sentia-se tão desesperado para ajudar de alguma forma
que, mesmo exausto, concentrou a mente na tentativa de lembrarse
de qualquer detalhe. Com cautela, refez seus passos. O que não
daria em troca para ter a chance de recomeçar o dia desde o início!
Mesmo queimando os dedos e derrubando de novo a massa de
panqueca!
Voltou-se novamente para a tarefa designada, mas nada
parecia diferente do que recordava. Nada havia mudado. Chegou à
mesa onde Missy estivera ocupada colorindo. O livro estava aberto
na mesma página, com uma imagem inacabada da princesa índia
da tribo Multnomah. Os lápis de cera também se encontravam lá,
se bem que o vermelho, a cor predileta de Missy, estivesse
faltando. Mack começou a procurar no chão, onde ele poderia ter
caído.
— Se está procurando o lápis de cera vermelho, nós o
encontramos ali, perto da árvore — disse Dalton, apontando para o
estacionamento. — Ela provavelmente o largou enquanto estava
lutando com... — Sua voz se perdeu no ar.
— Como você sabe que ela estava lutando?
O policial hesitou, mas depois falou, relutante:
— Encontramos um dos sapatos dela nos arbustos, para
onde provavelmente foi chutado. Você não estava aqui na hora, por
isso pedimos ao seu filho para identificá-lo.
A imagem de sua filha lutando com algum monstro pervertido
foi como um soco no estômago. Quase sucumbindo ao negrume
súbito que ameaçava esmagá-lo, Mack se apoiou na mesa para não
desmaiar ou vomitar. Foi então que notou um broche de joaninha
cravado no livro de colorir. Retornou à consciência como se alguém
tivesse aberto um vidro de sais sob seu nariz.
— De quem é isso? — perguntou a Dalton, apontando para o
broche.
— De quem é o quê?
— Esse broche de joaninha! Quem pôs isso aí?
— Nós achamos que fosse de Missy. O broche não estava aí
de manhã?
— Tenho certeza — afirmou Mack, enfático. — Ela não tem
nada assim. Tenho absoluta certeza de que não estava aí de
manhã!
O policial se comunicou pelo rádio e em minutos os peritos
retornaram e levaram o broche. Dalton puxou Mack para um canto
e explicou:
— Se o que o senhor diz é correto, temos de presumir que o
agressor de Missy deixou isso aí de propósito. — Fez uma pausa e
acrescentou:
Sr. Phillips, isso pode ser uma notícia boa ou má.
— Não entendo.
O policial hesitou, tentando decidir se deveria contar a Mack
o que estava pensando. Procurou as palavras certas.
— A boa notícia é que podemos conseguir alguma pista a
partir do broche. É a única prova que temos até agora de que havia
alguém aqui.
— E a má notícia? — Mack prendeu o fôlego.
— Bom, a má notícia, e não estou dizendo que este seja o
caso, é que quem deixa algo assim geralmente tem um objetivo, e
isso pode significar que já fez a mesma coisa antes.
— O quê? — reagiu Mack bruscamente. — Isso significa que
esse cara é uma espécie de maníaco? Esse é algum tipo de sinal
que ele deixa para se identificar, como se estivesse marcando o
território ou algo assim?
A raiva de Mack foi crescendo, mas, antes que explodisse, o
rádio de Dalton tocou, conectando-o ao escritório de campo do FBI
em Portland... ficou atento e ouviu a voz de uma mulher que se
identificava como agente especial. Ela pediu que Dalton
descrevesse o broche em detalhes. Mack acompanhou o policial até
o lugar onde a equipe de polícia havia estabelecido sua base
de operações. O broche estava dentro de um saco transparente, e
de pé, atrás do grupo, ele ficou observando Dalton descrevê-lo.
— É um alfinete com uma joaninha que foi cravado
atravessando algumas páginas de um livro de colorir.
— Por favor, descreva as cores e o número de pontos na
joaninha — orientou a voz pelo rádio.
— Vejamos — disse Dalton, com os olhos quase grudados no
saco. — A joaninha tem uma cabeça preta. E o corpo é vermelho,
com bordas pretas. Há dois pontos pretos no lado esquerdo do
corpo. Faz sentido?
— Perfeitamente. Por favor, continue — disse a voz com
paciência.
— Do lado direito da joaninha há três pontos, de modo que
são cinco ao todo
Houve uma pausa.
— Tem certeza de que são cinco pontos?
— Sim, senhora, são cinco pontos.
— Certo. Agora, policial Dalton, poderia virar o broche e dizer
o que há na parte de baixo da joaninha?
Dalton virou o saco plástico e olhou com cuidado.
— Há algo gravado embaixo, agente. Deixe-me ver. Parece
uma espécie de número de modelo. Humm... C... K... 1-4-6, acho
que é isso. É difícil ver através do saquinho.
Houve silêncio do outro lado. Mack sussurrou para Dalton:
— Pergunte a ela o que isso significa.
O policial hesitou e depois obedeceu.
— Agente? Você está aí?
— Sim, estou. — De repente a voz pareceu cansada e oca. —
Ei, Dalton, há algum lugar isolado onde você e eu possamos
conversar?
Mack assentiu com ênfase e Dalton captou a mensagem.
— Espere um segundo. — Pousou o saco com o broche e saiu
da área, permitindo que Mack o seguisse.
— Pronto, agora estou sozinho. Pode me dizer o que é.
— Estamos tentando pegar esse cara há quase quatro anos,
perseguindo-o em mais de nove estados. Recebeu o apelido de
Matador de Meninas, mas nunca repassamos o detalhe
da joaninha para ninguém, portanto mantenha isso em segredo.
Acreditamos que ele seja responsável pelo seqüestro e morte de
pelo menos quatro crianças até agora, todas meninas, todas com
menos de 10 anos. A cada vez ele acrescenta um ponto à joaninha,
de modo que esta seria a de número cinco. Ele sempre deixa os
broches em algum lugar da área do seqüestro, todos têm o mesmo
número de modelo, mas não conseguimos descobrir de onde eles
vieram originalmente nem encontrar o corpo de nenhuma
das quatro meninas, mas temos bons motivos para acreditar que
nenhuma delas sobreviveu. Todos os crimes aconteceram em
campings ou próximo de campings, perto de um parque estadual
ou uma reserva. O criminoso parece se mover com habilidade
em florestas e montanhas. Não nos deixou, em todos os casos,
absolutamente nada além do broche.
— E o carro? Temos uma descrição bastante boa da picape
verde em que ele fugiu.
— Ah, vocês provavelmente vão encontrá-la. Se for o nosso
cara, ele deve tê-la roubado há um ou dois dias, repintado,
enchido de equipamento para caminhadas, e ela vai
estar totalmente limpa.
Enquanto ouvia a conversa de Dalton com a agente especial,
Mack sentiu o resto de esperança se esvair. Sentou-se frouxo no
chão e enterrou o rosto nas mãos. Pela primeira vez desde o
desaparecimento de Missy permitiu-se considerar o alcance
das possibilidades mais horrendas — assim que isso começou, não
parou mais: imagens de coisas boas e terríveis misturadas num
desfile apavorante. Algumas eram instantâneos abomináveis de
tortura e dor, de monstros e demônios da escuridão mais
profunda, com dedos de arame farpado e toques de navalha, de
Missy gritando pelo pai e ninguém respondendo. Misturados com
esses horrores havia lampejos de outras lembranças: a menina
aprendendo a andar, com o rosto lambuzado de bolo de chocolate,
fazendo caretinhas engraçadas. Sobrepunha-se a todas a imagem
tão recente de Missy caindo no sono, aninhada no colo do pai.
Imagens implacáveis. O que ele diria a Nan? Como isso podia ter
acontecido? Deus, como isso podia ter acontecido?
Algumas horas depois, Mack e seus dois filhos foram de carro
para o hotel, em Joseph.
Os proprietários haviam lhe oferecido um quarto e, enquanto
ele arrumava sua bagagem, a exaustão e o desespero começaram a
dominá-lo. O policial Dalton levara seus filhos a uma lanchonete.
Agora, sentado na beira da cama, Mack dava vazão a todo o seu
sofrimento. Soluços e gemidos de rasgar a alma saíam do âmago
de seu ser, e foi assim que Nan o encontrou. Dois seres feridos que
se abraçaram e choraram desconsoladamente.
Naquela noite, Mack dormiu aos sobressaltos, pois as
imagens continuavam a golpeá-lo como ondas implacáveis contra
um litoral rochoso. Pouco antes do nascer do sol, por fim desistiu.
Vivera em um só dia anos de emoções e agora sentia-se
entorpecido, à deriva num mundo subitamente sem significado.
Depois de protestos consideráveis de Nan, concordaram que
seria melhor ela ir para casa com Josh e Kate. Mack ficaria para
ajudar como pudesse. Simplesmente não conseguiria ir embora,
pensando que Missy talvez estivesse por perto, precisando dele.
A notícia se espalhara rapidamente e amigos começaram a chegar
para ajudá-lo. Criou-se uma forte rede de solidariedade, todos os
conhecidos rezando para que Missy fosse encontrada. Jesse e
Sarah, Emil e Vicky permaneceram o tempo todo desdobrando-se
em cuidados.
Repórteres com seus fotógrafos começaram a aparecer
durante a manhã. Mack não queria enfrentá-los, mas acabou
respondendo às perguntas na esperança de que a divulgação
pudesse ajudar na busca.
Quando ficou evidente que a necessidade de ajuda estava
diminuindo, os Madison desmontaram seu acampamento e vieram
despedir-se. Choraram muito, abraçaram-se longamente e
colocaram-se à disposição para o que fosse necessário. Vicky
Ducette também partiu, mas Emil permaneceu para dar apoio a
Mack. Em meio a toda a tristeza, Kate manteve-se firme, enviando
e recebendo e-mails para que se mantivessem em comunicação
permanente.
Ao meio-dia todas as famílias estavam na estrada. Maryanne
levou Nan e as crianças para casa, onde os parentes estariam
esperando. Mack e Emil foram com o policial Dalton, que
passaram a chamar de Tommy, para Joseph, onde se dirigiram à
delegacia.
Agora vinha a parte mais difícil: a espera. Mack sentia que
estava andando em câmara lenta dentro do olho de um furacão O
grupo do FBI chegou no meio da tarde e logo ficou claro que a
pessoa encarregada era a agente especial Wikowsky, uma
mulher pequena e magra cheia de energia, de quem Mack gostou
no mesmo instante. Ela permitiu que ele participasse de todas as
providências e informes.
Depois de estabelecer o centro de comando no hotel, o FBI
pediu a Mack uma entrevista formal. A agente Wikowsky levantouse
de trás da mesa onde estava trabalhando e estendeu a mão.
Quando Mack ia apertá-la, a agente envolveu as mãos dele com as
suas e sorriu afetuosamente.
Senhor Phillips, peço desculpas por não lhe ter dado até
agora a atenção que merece. Estamos vivendo uma turbulência,
estabelecendo comunicações com todas as agências policiais
envolvidas na tentativa de resgatar Missy. Lamento muito que
tenhamos nos conhecido nessas circunstâncias.
Mack suspirou fundo.
— Por favor, me chame de Mack.
— Bem, então me chame de Sam, que é a forma abreviada de
Samantha. Mack relaxou um pouco na cadeira, vendo-a examinar
rapidamente algumas pastas cheias de papéis.
— Mack, está disposto a responder a algumas perguntas? —
ela perguntou sem levantar a cabeça.
— Farei o máximo possível — ele afirmou, aliviado pela
oportunidade de fazer alguma coisa.
— Bom! Não vou obrigá-lo a repassar todos os detalhes.
Estou com os relatórios sobre tudo o que você já contou, mas
tenho umas coisas importantes para examinarmos juntos. — Ela o
olhou nos olhos.
— Qualquer coisa que eu possa fazer para ajudar —
concordou Mack. No momento estou me sentindo bastante
impotente.
— Mack, entendo como você se sente, mas sua presença é
importante. Acredite, todos aqui estão dispostos a fazer o máximo
possível para resgatar Missy.
Obrigado — foi tudo que Mack conseguiu dizer, olhando para
o chão. As emoções pareciam à flor da pele e qualquer gesto de
gentileza abria as comportas para as lágrimas saírem.
— Mack — ela continuou —, você notou alguma coisa
estranha ao redor de sua família nestes últimos dias?
Mack ficou surpreso e se recostou na cadeira.
— Quer dizer que ele estava nos rondando?
— Não, ele parece escolher as vítimas ao acaso, mas todas
eram mais menos da idade da sua filha, com cor de cabelo
semelhante. Achamos que ele as descobre um ou dois dias antes e
espera, vigiando de perto até encontrar o momento oportuno. Você
viu alguém estranho próximo do lago? Talvez junto aos banheiros?
Mack se encolheu ao pensar que seus filhos estariam sendo
vigiados. Esquadrinhou a mente, mas não descobriu nada.
— Desculpe, não consigo lembrar...
— Você parou em algum lugar enquanto ia para o camping
ou notou alguém estranho quando estava fazendo caminhadas?
— Nós paramos na cachoeira Multnomah, vindo para cá, e
estivemos em toda a região nos últimos três dias, mas não me
lembro de ter visto ninguém que parecesse estranho. Quem
pensaria...
— Exatamente, Mack, tenha paciência. Algo pode voltar à sua
mente mais tarde. Mesmo que pareça pequeno ou irrelevante, por
favor, nos conte. — Ela olhou outro papel na mesa. — Que tal uma
picape verde-oliva? Você notou algo assim enquanto estava
por aqui?
Mack revirou a memória.
— Realmente não me lembro de ter visto nada do tipo.
A agente especial Wikowsky continuou a interrogar Mack
durante os 15 minutos seguintes, mas não conseguiu despertar a
memória dele o suficiente para descobrir algo útil. Por fim, fechou
o caderno e se levantou estendendo a mão.
— Mack, mais uma vez, lamento o que aconteceu com Missy.
Se descobrirmos alguma coisa, eu o informarei imediatamente.
Às cinco da tarde finalmente chegou o primeiro informe
promissor e a agente Wikowsky colocou Mack imediatamente a
par. Dois casais haviam passado por uma picape verde-oliva que
correspondia à descrição do veículo que estavam procurando.
Eles estavam em um trecho estreito da estrada e tiveram que
dar marcha a ré até um lugar mais largo para permitir a passagem
da picape. Notaram que na carroceria havia várias latas de
gasolina, além de uma boa quantidade de material de
acampamento.
Estranharam que o motorista tivesse se curvado na direção
do carona, como se procurasse alguma coisa no chão, e estivesse
usando um casaco pesado num dia tão quente. Acharam graça
daquilo e seguiram em frente.
Quando essa notícia chegou, a tensão aumentou na
delegacia. Tudo haviam descoberto até agora se encaixava no modo
de agir do Matador de Meninas, e Mack foi informado.
Com a noite se aproximando rapidamente, iniciou-se uma
discussão sobre a melhor alternativa: fazer uma perseguição
imediata ou esperar até a manhã seguinte logo ao nascer do dia.
Todos pareciam profundamente afetados com a situação.
De pé nos fundos da sala, Mack ouvia com impaciência a
discussão, aflito para que se tomasse logo uma providência. Seu
desejo era chamar Tommy e ir pessoalmente atrás do assassino.
Era como se cada minuto contasse Depois de um tempo que
pareceu excessivamente longo para Mack, todos concordaram em
dar início à perseguição. Mack ligou rapidamente para falar com
Nan e partiu com Tommy. Agora só lhe restava rezar:
— Santo Deus, por favor, por favor, por favor, cuide da minha
Missy, proteja-a, não deixe que nada de mal lhe aconteça.
Lagrimas desciam por seu rosto e molhavam a camisa.
* * *
Por volta das 7 horas, o comboio de radiopatrulhas, utilitários
do picapes com cães e alguns veículos da Guarda Florestal seguiu
pela auto-estrada até entrar na Reserva.
Mack ficou satisfeito por viajar com alguém que conhecia a
área. As estradas, com freqüentes curvas estreitas beirando
precipícios, ficavam ainda mais traiçoeiras na escuridão da noite.
A velocidade foi diminuindo até parecer que estavam se
arrastando.
Por fim, passaram pelo ponto onde a picape verde tinha sido
vista pela última vez e um quilômetro e meio depois chegaram a
uma bifurcação. Ali, como fora planejado a caravana se dividiu em
duas, com um pequeno grupo indo para o norte com a agente
especial Wikowsky e os demais, inclusive Mack, Emil e Tommy,
indo na direção sudeste. Alguns quilômetros difíceis mais tarde
esse grupo se dividiu outra vez, e nesse ponto os esforços de busca
ficaram ainda mais lentos. Agora os rastreadores estavam a pé,
apoiados por luzes fortes, enquanto procuravam sinais de
atividade recente nas estradas.
Quase duas horas mais tarde, Tommy recebeu um chamado
de Wikowsky. A cerca de 15 quilômetros da bifurcação onde
tinham se separado, uma estrada antiga e sem nome saía da
principal. Era praticamente impossível de se ver no escuro e cheia
de buracos.
Eles a teriam ignorado se a luz de um dos rastreadores não
tivesse se refletido numa calota de veículo. Debaixo do pó da
estrada havia manchas de tinta verde. A calota provavelmente fora
perdida quando a picape passou por um dos muitos buracos
enormes do caminho.
O grupo de Tommy voltou imediatamente. O coração de Mack
batia aceleradamente com um começo de esperança. Talvez, por
algum milagre, Missy ainda estivesse viva.
Vinte minutos depois, outra ligação de Wikowsky informava
que haviam encontrado a picape debaixo de uma engenhosa
armação de galhos e arbustos.
A equipe de Mack levou quase três horas para alcançar a
primeira equipe e, nesse ponto, tudo estava acabado. Os cães
haviam descoberto uma trilha de caça que descia por cerca de um
quilômetro e meio até um pequeno vale oculto. Ali encontraram
uma cabana em ruínas à beira de um lago límpido alimentado por
um riacho cascateante.
Cerca de um século antes aquilo fora provavelmente a casa
de um colono, mas desde então provavelmente servia só como
abrigo para algum caçador ocasional.
Quando Mack e seus amigos chegaram, o céu estava
começando a clarear. Um acampamento-base fora montado a certa
distância da pequena cabana para preservar a cena do crime.
Todos se reuniram e começaram a planejar a estratégia do dia.
A agente especial Samantha Wikowsky estava sentada diante
de uma mesa dobrável examinando mapas quando Mack apareceu.
Seus olhos expressavam tristeza e ternura, mas suas palavras
foram totalmente profissionais.
— Mack, nós encontramos uma coisa, mas não é boa.
Ele procurou as palavras certas.
— Encontraram Missy? — Ele temia terrivelmente a resposta,
mas estava desesperado para ouvi-la.
— Não, não encontramos. — Sam parou e começou a se
levantar. Mas preciso que você identifique uma coisa que
encontramos na cabana. Preciso saber se era... — ela se conteve,
mas já falara no passado. Quero dizer, se é dela.
Sentiu que sua represa interna estava prestes a arrebentar.
Vamos ver isso agora — murmurou baixinho. — Quero
resolver logo.
Mack sentiu Emil e Tommy segurando seus braços enquanto
seguiam a agente especial pelo curto caminho até a cabana. Três
homens adultos de braços dados numa solidariedade especial,
andando juntos em direção ao seu pior pesadelo.
Um membro da equipe de perícia abriu a porta da cabana
para deixá-los entrar.
Refletores alimentados por um gerador iluminavam cada
parte da sala. Havia prateleiras nas paredes, uma mesa velha,
cadeiras e um sofá. Mack viu imediatamente o que
viera identificar. Virando-se, desmoronou nos braços dos dois
amigos e começou a chorar incontrolavelmente. No chão, perto da
lareira, estava o vestido de Missy, rasgado e encharcado de
sangue.
* * *
Para Mack, os dias e semanas seguintes se tornaram um
borrão de vistas que entorpeciam as emoções. Por fim, um funeral
dedicado com um pequeno caixão vazio e um desfile interminável
de tristes, ninguém sabendo o que dizer. Em algum momento, nas
que se seguiram, Mack iniciou o lento e doloroso reencontro da
vida cotidiana.
Aparentemente o Matador de Meninas recebera o crédito pela
quinta vítima, Melissa Anne Phillips. Assim como nos outros
quatro casos, as autoridades não encontraram o corpo da vítima,
embora grupos de busca tivessem revirado a floresta durante dias.
Como em todas as outras, o matador não deixara nenhuma pista
que pudesse ser seguida, só o broche. Era como se estivessem
lidando com um fantasma.
Em algum ponto do processo, Mack procurou emergir da dor
e do sofrimento, pelo menos com sua família. Eles haviam perdido
uma irmã e uma filha e seria terrível também perderem um pai e
um marido. Ainda que todos tivessem sido
profundamente golpeados pela tragédia, Kate parecia a mais
afetada, escondendo-se numa casca como uma tartaruga para se
proteger de algo potencialmente perigoso. Mack e
Nan preocupavam-se cada vez mais com ela, mas não conseguiam
encontrar as palavras adequadas para penetrar na fortaleza que a
garota estava construindo ao redor de si. As tentativas de conversa
se transformavam em monólogos, como se algo tivesse
morrido dentro dela e agora a estivesse corroendo lentamente por
dentro, derramando-se às vezes em palavras amargas ou num
silêncio deprimido.
Josh se comunicava freqüentemente com Amber, o que o
ajudava a extravasar a dor. Além disso, estava bastante ocupado
preparando-se para a formatura no ensino médio.
A Grande Tristeza havia baixado como uma nuvem e, em
graus diferentes, cobria todos os que tinham conhecido Missy.
Mack e Nan enfrentavam juntos o tormento da perda, sentindo-se
mais próximos do que nunca. Nan repetia seguidamente que não
culpava Mack de modo algum pelo que acontecera. Mack, porém,
levou muito mais tempo para se livrar de todos os "se" que o
levavam ao desespero. Se ele tivesse decidido não levar as crianças
naquela viagem; se tivesse recusado quando elas pediram para
usar a canoa; se tivesse ido embora na véspera; se, se, se. Não ter
podido enterrar o corpo de Missy ampliava seu fracasso como pai.
O fato de ela ainda estar em algum lugar, sozinha na floresta,
assombrava-o todos os dias. Agora, três anos e meio depois, Missy
era considerada oficialmente vítima de assassinato. A vida nunca
mais seria a mesma. A ausência de Missy criara um vazio absurdo.
A tragédia também havia aumentado a fenda no
relacionamento de Mack com Deus, mas ele não se dava conta
dessa separação crescente. Em vez disso, tentava abraçar uma fé
estóica e desprovida de sentimentos que lhe trazia algum conforto
e paz, porém não eliminava os pesadelos em que se via com os pés
presos na lama e sem voz para dar os gritos que salvariam sua
preciosa Missy. Aos poucos os pesadelos foram se tornando menos
freqüentes e os momentos de alegria começaram a despontar,
fazendo Mack sentir-se culpado.
Assim, receber o bilhete assinado Papai, dizendo para
encontrá-lo na cabana, causou-lhe um profundo impacto. Será que
Deus escreve bilhetes? E por que na cabana — o ícone de sua dor
mais profunda? Certamente Deus teria lugares melhores onde se
encontrar com ele. Um pensamento sombrio chegou a atravessar
sua mente: o assassino o estaria provocando ou atraindo para
longe com a intenção de deixar sua família desprotegida. Talvez
fosse somente uma brincadeira cruel. Mas por que estava assinado
"Papai"?
Por mais irracional que parecesse, Mack não conseguia deixar
de pensar que talvez o bilhete viesse mesmo de Deus. Quanto mais
pensava. mais confuso e irritado ia ficando.
Quem havia mandado a porcaria do bilhete? Fosse quem
fosse, Mack tinha a sensação de que estavam brincando com ele.
E, de qualquer modo, de que adiantava? Mas, apesar da raiva e da
depressão, Mack sabia que precisava de respostas. Percebeu que
estava travado e que as orações e os hinos dos domingos não
serviam mais, se é que já haviam servido. A espiritualidade do
claustro não parecia mudar nada na vida das pessoas que ele
conhecia, a não ser, talvez, na de Nan. Mas ela era especial. Mack
estava farto de Deus e da religião, farto de todos os pequenos
clubes sociais religiosos que não pareciam fazer nenhuma
diferença expressiva nem provocar qualquer mudança real. Mack
certamente desejava mais.
Porém não sabia que estava a ponto de conseguir muito mais
do que havia pedido.


5. ADIVINHE QUEM VEM PARA JANTAR
Rotineiramente desqualificamos testemunhos e
exigimos comprovação. Isto é, estamos tão
convencidos da justeza de nosso julgamento que
invalidamos provas que não se ajustem a ele.
Nada que mereça ser chamado de verdade pode
ser alcançado por esses meios.
— Marilynne Robinson, The Death of Adam
Há ocasiões em que optamos por acreditar em algo que
normalmente seria considerado absolutamente irracional. Isso não
significa que seja mesmo irracional, mas certamente não é
racional. Talvez exista a supra-racionalidade: a razão além das
definições normais dos fatos ou da lógica baseada em dados. Algo
que só faz sentido se você puder ver uma imagem maior da
realidade. Talvez seja aí que a fé se encaixe.
Mack não tinha certeza de um monte de coisas, mas em
algum momento em seu coração e em sua mente, nos dias que se
seguiram à nevasca, ele se convenceu de que havia três
explicações plausíveis para o bilhete. Podia ser de Deus, por mais
absurdo que isso parecesse, podia ser uma piada cruel ou algo
mais sinistro vindo do assassino de Missy. Independentemente de
qualquer coisa, o bilhete dominava seus pensamentos dia e noite.
Secretamente começou a fazer planos para viajar até a
cabana no fim de semana seguinte. A princípio não falou com
ninguém, nem mesmo com Nan, achando que uma conversa assim
só traria mais dor. "Estou mantendo segredo por causa de Nan",
dizia a si mesmo. Além disso, falar do bilhete seria admitir que
guardara segredos. Algumas vezes a honestidade pode ser
incrivelmente complicada.
Decidido a empreender a viagem, Mack começou a pensar em
modos de afastar a família de casa durante o fim de semana sem
levantar suspeitas. Felizmente foi a própria Nan quem ofereceu a
solução. Ela estivera pensando em visitar a família da irmã nas
ilhas San Juan, no litoral de Washington. Seu cunhado era
psicólogo infantil e Nan achava que poderia ser útil conversar com
ele sobre o comportamento cada vez mais fechado de Kate. Quando
ela levantou a possibilidade da viagem, Mack reagiu quase
ansioso demais.
— Claro que vocês vão — ele afirmou imediatamente. Não era
a resposta que ela havia previsto e Nan lhe lançou um olhar
interrogativo.
— Quero dizer — consertou ele, sem jeito —, é uma idéia
fantástica.
Vou sentir falta de vocês, claro, mas acho que posso
sobreviver sozinho uns dois dias e, de qualquer modo, tenho um
monte de coisas para fazer.
Ela deu de ombros, talvez grata porque o caminho para
a viagem tivesse se aberto com tanta facilidade.
Bastou um rápido telefonema à irmã de Nan e a viagem foi
acertada. Logo a casa virou um turbilhão de atividades. Josh e
Kate ficaram deliciados com a perspectiva de visitar os primos e
compraram fácil a idéia.
Disfarçadamente, Mack telefonou para seu amigo Willie
pedindo seu jipe emprestado.
O pedido estranho, como era de se prever, provocou um
tiroteio de perguntas que Mack tentou responder do modo mais
evasivo possível. Terminou dizendo que explicaria tudo quando
Willie aparecesse para trocar os veículos.
No fim da tarde de quinta-feira, depois de despedir-se de Nan,
Kate e Josh, Mack começou a preparar-se para a longa viagem ao
Nordeste do Oregon — o local de seus pesadelos. Sem dúvida havia
a possibilidade de ter se transformado num idiota completo ou de
estar sendo vítima de uma brincadeira de mau gosto, mas nesse
caso ficaria livre para simplesmente ir embora. Uma batida na
porta arrancou-o de sua concentração e ele viu que era Willie.
— Estou aqui na cozinha — gritou.
Um instante depois Willie apontou a cabeça pela porta do
corredor.
— Bom, eu trouxe o jipe e o tanque está cheio, mas só vou
entregar a chave quando você contar exatamente o que está
acontecendo.
Mack continuou enfiando coisas em dois sacos de viagem.
Sabia que não adiantava mentir para o amigo.
— Vou voltar à cabana, Willie.
— Bom, eu já tinha imaginado. O que quero saber é por que
você pretende voltar lá. Não sei se o meu velho jipe vai dar conta
do recado, mas, como garantia, coloquei umas correntes atrás para
o caso de precisarmos.
Sem olhar para ele, Mack foi até o escritório, tirou a tampa de
uma lata pequena e pegou o bilhete. Voltando à cozinha, entregouo
ao amigo. Willie desdobrou o papel e leu em silêncio.
— Nossa, que tipo de maluco escreveria uma coisa assim? E
quem é esse tal de Papai?
— Bom, você sabe, Papai é o nome que Nan usa para Deus.
Mack pegou o bilhete de volta e o enfiou no bolso da camisa.
— Espera, você está achando mesmo que isso veio de Deus?
— Willie, não sei o que pensar disso. Quer dizer, a princípio
achei que era apenas uma brincadeira de mau gosto e fiquei com
raiva. Sei que parece loucura, mas de algum modo me sinto
estranhamente tentado a descobrir. Tenho de ir, Willie, ou isso vai
me deixar maluco para sempre.
— Já pensou na possibilidade de ser o assassino? E se ele
estiver atraindo você para lá por algum motivo?
— Claro que pensei. Parte de mim não ficaria desapontada
com isso. Tenho contas a acertar com ele — disse sério e fez uma
pausa. — Mas também não faz muito sentido. Não acho que o
assassino saiba que "Papai" é um termo usado em nossa família.
Willie ficou perplexo e Mack prosseguiu:
— E nenhum amigo nosso mandaria um bilhete desses.
Estou pensando que só Deus faria isso... talvez.
— Mas Deus não faz coisas assim. Pelo menos nunca ouvi
falar que ele tivesse mandado um bilhete a alguém. E por que ele
desejaria que você retornasse à cabana? Não consigo pensar num
lugar pior...
Pairou um silêncio incômodo entre os dois. Mack falou:
— Não sei, Willie. Acho que parte de mim gostaria de
acreditar que Deus se importa o suficiente comigo para me mandar
um bilhete. Continuo muito confuso, mesmo depois de tanto
tempo. Simplesmente não sei o que pensar, e a coisa não melhora.
Sinto que estou perdendo Kate e isso me mata. Talvez o que
aconteceu com Missy seja uma espécie de castigo de Deus pelo que
fiz com meu pai. Realmente não sei.
Mack olhou o rosto de seu melhor amigo, mais do que um
irmão.
— Só sei que preciso voltar.
O silêncio se prolongou entre os dois até que Willie falasse de
novo.
— Então, quando partimos?
Mack ficou tocado com a disposição do amigo.
— Obrigado, meu chapa, mas realmente preciso fazer isso
sozinho.
— Imaginei que você diria isso — respondeu Willie, virando-se
e saindo do cômodo.
Retornou alguns instantes depois com uma pistola e uma
caixa de balas.
— Achei que não conseguiria convencê-lo a deixar de ir e
pensei que poderia precisar disso. Acho que você sabe usar.
Mack olhou a arma. Sabia que Willie estava tentando ajudálo.
— Willie, não posso. Faz 30 anos que toquei pela última vez
numa arma e não pretendo fazer isso agora. Se aprendi uma coisa
na vida, foi que usar a violência para resolver um problema sempre
cria um problema ainda maior.
— Mas e se for o assassino de Missy? E se ele estiver
esperando lá em cima? O que você vai fazer?
Mack deu de ombros.
— Honestamente não sei, Willie. Vou correr o risco, acho.
— Mas você vai estar indefeso. Não dá para saber o que ele
tem em mente. Leve, Mack.
Willie empurrou a pistola e as balas na direção dele.
— Você não precisa usar.
Mack olhou a arma e depois de pensar um pouco estendeu
lentamente a mão para ela e as balas, colocando-as com cuidado
no bolso.
— Certo, só para garantir.
Em seguida pegou parte do equipamento e, com os
braços carregados, saiu na direção do jipe. Willie levou a grande
sacola de lona que restava.
— Nossa, Mack, se você acha que Deus vai estar lá em cima,
para que tudo isso?
Mack lhe deu um sorriso carregado de tristeza.
— Só pensei em cobrir as várias opções. Você sabe, estar
preparado para o que acontecer...
Quando chegaram no jipe, Willie entregou as chaves a Mack.
— E o que é que Nan acha disso? — perguntou.
— Nan e as crianças foram visitar a irmã dela e... eu não
contei — confessou Mack.
Willie ficou obviamente surpreso.
— O quê!? Você nunca guarda segredos de sua mulher. Não
acredito que tenha mentido para ela!
Mack ignorou a explosão do amigo, voltou à casa e entrou no
escritório. Ali encontrou as chaves de reserva de seu carro e da
casa e, hesitando apenas um instante, pegou a pequena lata. Willie
foi atrás dele.
— Como você acha que ele é? — perguntou rindo.
— Quem?
— Deus, claro. Como você acha que ele é?
Mack pensou um instante.
— Não sei. Talvez ele tenha uma luz muito forte ou apareça
no meio de uma sarça ardente. Sempre o visualizei assim como um
avô, com uma barba longa flutuando.
Deu de ombros, entregou as chaves de seu carro a Willie e os
dois trocaram um abraço rápido.
— Bom, se ele aparecer, dê lembranças minhas — disse Willie
com um sorriso afetuoso. — Estou preocupado com você, meu
chapa. Gostaria de ir junto. Vou fazer uma ou duas orações por
você.
— Obrigado, Willie. Você é um amigo e tanto.
Acenou enquanto Willie dava marcha a ré pela entrada de
veículos. Mack sabia que ele manteria a promessa.
Provavelmente ele iria precisar de todas as orações que
conseguisse.
Ficou olhando até Willie virar a esquina e sumir, depois tirou
o bilhete do bolso da camisa, leu mais uma vez e colocou-o na lata,
que depositou no banco do carona em meio a outros
equipamentos. Trancando as portas do jipe, voltou para casa e
para uma noite sem sonhos.
* * *
Bem antes do amanhecer da sexta-feira, Mack já estava fora
da cidade. Nan havia telefonado na noite anterior dizendo que
chegaram em segurança e que voltaria a ligar no domingo. Até lá
provavelmente ele já teria voltado.
Refez o mesmo caminho que haviam tomado três anos e meio
antes, mas passou pela cachoeira Multnomah sem olhar. No longo
trecho subindo o desfiladeiro sentiu o pânico se esgueirando e
invadindo sua consciência. Tentara não pensar no que estava
fazendo e simplesmente ir colocando um pé na frente do outro,
mas os sentimentos e temores represados começaram a surgir.
Seus olhos ficaram sombrios e as mãos apertavam com força o
volante enquanto ele lutava contra a tentação de voltar para casa.
Sabia que estava indo direto para o centro de sua dor, o vórtice da
Grande Tristeza que havia minado sua alegria de viver.
Finalmente pegou a auto-estrada para Joseph. Pensou em
procurar Tommy, mas decidiu não fazer isso. Quanto menos
pessoas pensassem que ele era um lunático desvairado, melhor.
O trânsito era tranqüilo e as estradas estavam notavelmente
limpas e secas para essa época do ano, mas parecia que quanto
mais avançava mais lentamente viajava, como se de algum modo a
cabana repelisse sua aproximação. O jipe atravessou a faixa de
neve enquanto ele subia os últimos 3 quilômetros até a trilha que
iria descer para a cabana. Era apenas o início da tarde quando
Mack finalmente parou e estacionou no começo da trilha
praticamente invisível.
Ficou ali sentado por cerca de cinco minutos, repreendendose
por ser tão idiota. A cada quilômetro percorrido desde Joseph as
lembranças voltavam com uma clareza que o empurrava para trás.
Mas a compulsão interna de prosseguir era irresistível.
Levantou-se, olhou o caminho e decidiu deixar tudo no carro
e descer a pé o trecho de cerca de um quilômetro e meio até o lago.
Pelo menos não teria de carregar nada morro acima quando
retornasse para ir embora, o que esperava que acontecesse logo.
Estava suficientemente frio para sua respiração pairar no ar
em volta dele, e parecia que ia nevar. A dor que estivera crescendo
no estômago finalmente o empurrou para o pânico. Depois de
apenas cinco passos ele parou e teve ânsias de vômito tão fortes
que o deixaram de joelhos.
— Por favor, me ajude! — gemeu. Em seguida levantou-se
com as pernas trêmulas e virou-se. Abriu a porta do carona e
enfiou a mão, remexendo até sentir a pequena lata.
Abriu a tampa e encontrou o que estava procurando: sua foto
predileta de Missy, que tirou junto com o bilhete. Recolocou a
tampa e deixou a lata no banco. Parou um momento olhando o
porta-luvas. Por fim abriu-o e pegou a arma de Willie, verificando
que estava carregada e com a trava de segurança acionada. De pé,
fechou a porta, enfiou a mão embaixo do casaco e pôs a arma no
cinto, às costas. Virou-se e encarou o caminho de novo, olhando
uma última vez a foto de Missy antes de enfiá-la no bolso da
camisa junto com o bilhete. Se o encontrassem morto, pelo menos
saberiam qual tinha sido seu último pensamento.
A trilha era traiçoeira; as pedras, geladas e escorregadias.
Cada passo exigia concentração enquanto ele descia para a floresta
cada vez mais densa. O silêncio era fantasmagórico. Os únicos
sons que podia ouvir eram os de seus passos esmagando a neve e
o da sua respiração pesada. Mack começou a sentir que estava
sendo observado e uma vez chegou a girar rapidamente para ver se
havia alguém ali. Por mais que quisesse dar a volta e correr para o
jipe, seus pés pareciam ter vontade própria, determinados
a continuar pelo caminho e entrar mais fundo na floresta mal
iluminada e cada vez mais fechada.
De repente algo se mexeu ali perto. Assustado, ele se
imobilizou em silêncio e alerta.
Com o coração martelando nos ouvidos e a boca subitamente
seca, levou devagar a mão às costas e tirou a pistola do cinto.
Depois de soltar a trava, olhou fixamente para o mato baixo e
escuro, tentando ver ou ouvir algo que pudesse explicar o barulho
e diminuir o jorro de adrenalina. Mas o que quer que tivesse se
mexido havia parado agora. Estaria esperando por ele? Só para
garantir, ficou imóvel por alguns minutos antes de começar
de novo a descer lentamente a trilha, tentando ser o mais
silencioso possível.
A floresta parecia se fechar ao seu redor e ele começou a se
perguntar seriamente se havia tomado o caminho errado. Com o
canto do olho viu movimento outra vez e se
agachou instantaneamente, espiando entre os galhos baixos de
uma árvore próxima. Algo fantasmagórico, como uma sombra,
entrou nos arbustos. Ou seria imaginação? Esperou de novo, sem
mexer um músculo. Seria Deus? Duvidava. Talvez um animal.
Então o pensamento que estivera evitando: "E se for algo pior? E se
ele tivesse sido atraído aqui para cima? Mas para quê?"
Levantando-se devagar do esconderijo, com a arma ainda na
mão, deu um passo adiante, e foi quando de repente o arbusto
atrás dele pareceu explodir. Mack girou, apavorado e pronto para
lutar pela vida, mas, antes que pudesse apertar o gatilho,
reconheceu um texugo correndo de volta pela trilha. Exalou aos
poucos o ar que estivera prendendo, baixou a arma e balançou a
cabeça. Mack, o corajoso, parecia um menino apavorado
na floresta. Depois de travar a arma de novo, guardou-a. "Alguém
poderia se machucar", pensou com um suspiro de alívio.
Respirando fundo outra vez e soltando o ar lentamente,
acalmou-se. Decidiu que estava farto de sentir medo e continuou a
descer o caminho, tentando parecer mais confiante do que se
sentia. Esperava não ter vindo tão longe à toa. Se Deus
realmente aparecesse, Mack estava mais do que pronto para dizerlhe
umas tantas verdades.
Algumas voltas depois, saiu da floresta para uma clareira. Do
outro lado, abaixo da encosta, viu-a de novo: a cabana. Ficou
parado olhando-a, com o estômago transformado numa bola em
movimento e tumulto. Na superfície nada parecia ter mudado,
afora o inverno ter despido as árvores e o manto branco de neve
que cobria o lugar. A cabana parecia morta e vazia, mas de repente
transformou-se num monstro de rosto maligno, retorcido numa
careta demoníaca, olhando-o diretamente e desafiando-o a se
aproximar. Ignorando o pânico crescente, Mack desceu com
decisão os últimos 100 metros e subiu os degraus da varanda.
As lembranças e o horror da última vez em que estivera ali
voltaram num rompante e ele hesitou antes de empurrar a porta.
— Olá? — chamou, não muito alto. Pigarreando, chamou de
novo, dessa vez mais alto. — Olá? Tem alguém aí? — Sua voz
ecoou no vazio. Sentindo-se mais seguro, entrou na sala e parou.
Enquanto seus olhos se ajustavam à semi-escuridão,
começou a perceber os detalhes da sala com a luz da tarde se
filtrando pelas janelas quebradas. Reconheceu as cadeiras velhas e
a mesa. Não conseguiu evitar que seus olhos fossem atraídos para
o único local que não suportaria olhar. Mesmo depois de alguns
anos, a mancha de sangue desbotada ainda era claramente visível
na madeira perto da lareira, onde haviam encontrado o vestido de
Missy.
— Desculpe, querida. — Lágrimas começaram a se juntar nos
seus olhos.
E finalmente seu coração explodiu como uma tromba-d'água,
soltando a raiva contida e deixando-a jorrar pelos cânions
rochosos de suas emoções. Virando os olhos para o céu, começou
a gritar suas perguntas angustiadas.
— Por quê? Por que você deixou que isso acontecesse? Por
que me trouxe aqui? Por que logo aqui? Não bastou matar minha
filhinha? Tinha de zombar de mim também?
Numa fúria cega, Mack pegou a cadeira mais próxima e
jogou-a contra a janela, despedaçando-a. Com uma das pernas da
cadeira, começou a destruir tudo que podia.
Grunhidos e gemidos de desespero e fúria irrompiam de seus
lábios enquanto ele soltava a fúria naquele lugar terrível. — Odeio
você! — Num frenesi, liberou a raiva até ficar exaurido.
Desesperado e derrotado, Mack se deixou cair no chão, perto
da mancha de sangue.
Tocou-a com cuidado. Era tudo o que restava de sua Missy.
Deitado junto dela, os dedos acompanharam com ternura as
bordas descoloridas e ele sussurrou baixinho:
— Missy, desculpe. Desculpe se não pude proteger você.
Desculpe se não pude encontrar você.
Mesmo em sua exaustão, a raiva fervilhou e de novo ele
apontou contra o Deus indiferente que ele imaginava encontrar-se
em algum lugar acima do teto da cabana.
— Deus, você nem deixou que a encontrássemos e a
enterrássemos. Seria pedir demais?
Enquanto a mistura de emoções ia e vinha, com a raiva
dando lugar à dor, uma nova onda de tristeza começou a se
misturar com sua confusão.
— Então, onde está você? Achei que queria se encontrar
comigo. Bom, estou aqui, Deus. E você? Não está em lugar
nenhum! Nunca esteve quando precisei, nem quando eu era
pequeno, nem quando perdi Missy. Nem agora! Tremendo "Papai"
você é! — cuspiu as palavras.
Mack ficou ali sentado em silêncio, com o vazio do lugar
invadindo sua alma. Todas as perguntas sem resposta e as
acusações dolorosas se acomodaram no chão ao lado dele e
lentamente se transformaram num poço de desolação. A Grande
Tristeza se apertou ao redor e ele quase gostou da sensação
esmagadora. Esta dor ele conhecia. Estava familiarizado com ela,
era quase uma amiga.
Mack podia sentir a arma na cintura, um frio convidativo
contra a pele. Pegou-a, sem saber direito o que fazer. Ah, parar de
se preocupar, parar de sentir a dor, nunca mais sentir nada.
Suicídio? No momento a opção era quase atraente. "Seria tão fácil",
pensou.
"Chega de lágrimas, chega de dor..." Quase podia ver um
abismo preto abrindo-se no chão atrás da arma para a qual estava
olhando, uma escuridão que sugava os últimos vestígios de
esperança do coração. Matar-se seria um modo de contra-atacar
Deus, se Deus ao menos existisse.
As nuvens se abriram do lado de fora e de repente um raio de
sol derramou-se na sala, rasgando o centro de seu desespero.
Mas... e Nan? E Josh, Kate, Tyler e Jon? Por mais que desejasse
interromper a dor, sabia que não poderia aumentar o sofrimento
deles.
Uma brisa fria passou por seu rosto e parte de Mack quis
simplesmente se deitar e congelar até a morte, de tão exausto.
Encostou-se na parede e esfregou os olhos cansados. Deixou-os
fecharem-se enquanto murmurava:
— Eu te amo, Missy. Sinto saudades demais. — Logo
penetrou sem esforço num sono pesado.
Provavelmente haviam se passado apenas alguns minutos
quando Mack despertou com um solavanco. Surpreso por ter
cochilado, levantou-se depressa. Enfiando a arma de volta na
cintura e a raiva na parte mais funda da alma, foi em direção à
porta.
— Isso é ridículo! Sou tão idiota! E pensar que eu esperava
que Deus poderia se importar a ponto de me mandar um bilhete!
Olhou para o espaço aberto.
— Estou cheio, Deus — sussurrou. — Não posso mais. Estou
cansado de tentar encontrá-lo em tudo isso. — E saiu pela porta.
Decidiu que esta era a última vez que procuraria Deus.
Se Deus o quisesse, teria de vir encontrá-lo.
Enfiou a mão no bolso, pegou o bilhete que havia encontrado
na caixa de correio e picou-o em pedacinhos, deixando-os escorrer
lentamente entre os dedos para serem levados pelo vento frio que
havia aumentado. Com passos pesados e o coração mais pesado
ainda, começou a caminhar de volta para o jipe.
* * *
Mal havia caminhado uns 15 metros pela trilha quando
sentiu um jorro súbito de ar quente alcançá-lo por trás. O canto de
um pássaro rompeu o silêncio gelado. O caminho diante dele
perdeu rapidamente o verniz de gelo e neve, como se alguém
estivesse usando um secador de cabelos. Mack parou e ficou
olhando, enquanto ao redor a cobertura branca se dissolvia e era
substituída por uma vegetação radiante. Três semanas de
primavera se desdobraram diante dele em 30 segundos. Esfregou
os olhos e firmou-se naquele redemoinho. Até mesmo a neve fina
que havia começado a cair se transformara em minúsculas flores
descendo preguiçosamente para o chão.
O que ele estava vendo, claro, não era possível. Os montes de
neve haviam desaparecido e flores silvestres de verão começaram a
colorir as bordas da trilha e a surgir na floresta até onde a vista
alcançava. Tordos, esquilos e tâmias atravessavam de vez
em quando o caminho, alguns parando para sentar-se e olhá-lo
por um momento antes de mergulhar de novo no mato baixo.
Como se isso não bastasse, o perfume das flores começou a encher
o ar, não somente o aroma fugaz de flores silvestres da
montanha, mas a intensidade de rosas, orquídeas e outras
fragrâncias exóticas encontradas em climas mais tropicais.
O terror dominou Mack, como se ele tivesse aberto a Caixa de
Pandora e fosse varrido para o centro da loucura, perdendo-se
para sempre. Inseguro, girou com cuidado, tentando se agarrar a
algum sentimento de sanidade.
Ficou pasmo. Tudo mudara. A cabana dilapidada fora
substituída por um chalé sólido e lindamente construído com
troncos descascados à mão, cada um deles trabalhado para um
encaixe perfeito.
Em vez dos arbustos escuros e agrestes de macegas, urzes e
espinheiros, tudo o que Mack via agora era perfeito como num
cartão-postal. A fumaça subia preguiçosa da chaminé para o céu
do fim de tarde, sinal de atividade dentro da cabana. Um caminho
fora construído ao redor da varanda da frente, limitado por uma
pequena cerca de ripas brancas.
O som de risos vinha de perto — talvez de dentro, mas não
dava para ter certeza.
Talvez fosse assim a experiência de um surto psicótico total.
— Estou pirando de vez — sussurrou Mack. — Isso não pode
estar acontecendo. Não é real.
Era um lugar que Mack só poderia ter imaginado em seus
melhores sonhos, e isso tornava a coisa ainda mais suspeita. A
visão era maravilhosa, os perfumes inebriantes, e seus pés, como
se tivessem vontade própria, levaram-no de volta descendo o
caminho até a varanda da frente. Flores brotavam em toda parte e
a mistura de fragrâncias florais provocou lembranças de infância,
esquecidas havia muito. Ele sempre ouvira dizer que o olfato era o
melhor elo com o passado, o sentido mais forte para redescobrir
histórias antigas.
Na varanda, parou de novo. Vozes vinham muito claramente
de dentro. Mack rejeitou o impulso súbito de sair correndo, como
se fosse algum garoto que tivesse jogado a bola no jardim de um
vizinho. "Quem estaria lá dentro?" Fechou os olhos e balançou a
cabeça para ver se conseguia apagar a alucinação e restaurar a
realidade. Mas, quando os abriu, tudo continuava ali. Estendeu a
mão, hesitando, e tocou o corrimão de madeira.
Certamente parecia real.
Agora enfrentava outro dilema. O que você faz quando chega
à porta de uma casa — ou de um chalé, neste caso — onde Deus
pode estar? Deve bater? Certamente Deus devia saber que Mack
estava ali. Talvez ele simplesmente devesse entrar e se apresentar,
mas isso parecia igualmente absurdo. E como se dirigir a Deus?
Deveria chamá-lo de Pai, de Todo- Poderoso ou talvez de Senhor
Deus? Seria melhor ajoelhar-se e cair em adoração?
Enquanto tentava estabelecer algum equilíbrio interno, a
raiva voltou a emergir.
Energizado pela ira, Mack foi até a porta. Decidiu bater com
força para ver o que acontecia, mas, no momento em que levantou
o punho, a porta se escancarou e diante dele apareceu uma negra
enorme e sorridente.
Mack pulou para trás por instinto, mas foi lento demais. Com
uma velocidade surpreendente para o seu tamanho, a mulher
atravessou a distância entre os dois e o engolfou nos braços,
levantando-o do chão e girando-o como se ele fosse uma
criança pequena. E o tempo todo gritava o seu nome, Mackenzie
Allen Phillips, com o ardor de alguém que reencontrasse um
parente amado há muito perdido. Por fim colocou-o de volta no
chão e, com as mãos nos ombros dele, empurrou-o para trás, como
se quisesse vê-lo bem.
— Mack, olha só para você! — ela praticamente explodiu. —
Aí está, e tão crescido! Eu estava ansiosa para vê-lo cara a cara. É
tão maravilhoso tê-lo aqui conosco! Minha nossa, como eu amo
você! — E, ao dizer isso, o abraçou de novo.
Mack ficou sem fala. Em poucos segundos aquela mulher
havia rompido praticamente todas as convenções sociais atrás das
quais ele se entrincheirava com tanta segurança.
Mas algo no seu olhar e na maneira como ela dizia o seu
nome o deixou deliciado, mesmo não tendo a menor idéia de quem
se tratava.
De repente foi dominado pelo perfume que exalava da mulher,
e isso o sacudiu. Era o cheiro de flores, com sugestões de gardênia
e jasmim, inconfundivelmente o perfume de sua mãe que ele
mantivera guardado em um vidro na latinha. O cheiro que jorrava
e a lembrança que vinha junto o fizeram cambalear. Podia sentir o
calor das lágrimas em seus olhos, como se estivessem batendo à
porta de seu coração. A mulher percebeu.
— Tudo bem, querido, pode deixar que elas saiam... Sei que
você foi magoado e que está com raiva e confuso. Então vá em
frente e ponha para fora. É bom para a alma deixar que as águas
rolem de vez em quando, as águas que curam.
Mack não podia impedir que as lágrimas enchessem seus
olhos, mas não estava preparado para soltá-las, ainda não, não
com essa mulher. Reuniu todas as forças possíveis para evitar cair
de volta no buraco negro das emoções. Enquanto isso, a mulher
ficou ali com os braços estendidos, como se fossem os da sua mãe.
Ele sentiu a presença do amor. Era quente, convidativo, derretia
tudo.
— Não está pronto? — reagiu ela. — Tudo bem, vamos fazer
as coisas no seu devido tempo. Venha comigo. Posso pegar seu
casaco? E essa arma? Você não precisa mesmo dela, certo? Não
queremos que alguém se machuque, não é?
Mack não sabia direito o que fazer ou dizer. Quem era ela?
Enraizado no mesmo lugar, lenta e mecanicamente tirou o casaco.
A negra enorme pegou o casaco e ele lhe entregou a arma,
que ela segurou com a ponta de dois dedos, como se aquilo
estivesse contaminado. No momento em que ela se virou para
entrar no chalé, uma mulher pequena, claramente asiática,
emergiu de trás da negra.
— Aqui, deixe-me pegar isso — cantarolou ela. Obviamente
não queria falar do casaco nem da arma e sim de outra coisa, e
estava na frente dele num piscar de olhos. Mack se enrijeceu ao
sentir algo passar suavemente em sua face. Sem se mexer, olhou
para baixo e viu que a mulher estava usando um frágil frasco de
cristal e um pequeno pincel, como os que vira Nan e Kate usar
para maquiagem, e que gentilmente removia algo de seu rosto.
Antes que ele pudesse perguntar, ela sorriu e sussurrou:
— Mackenzie, todos temos coisas que valorizamos a ponto de
colecionar, não é? — A pequena lata relampejou na mente dele. —
Eu coleciono lágrimas.
Enquanto a mulher recuava, Mack se pegou franzindo os
olhos na direção dela, como se isso lhe permitisse enxergar melhor.
Mas, estranhamente, ainda tinha dificuldade para focalizá-la. Ela
parecia quase tremeluzir na luz e seu cabelo voava em todas as
direções, apesar de não haver nenhuma brisa. Era quase mais fácil
vê-la com o canto do olho do que fixando-a diretamente.
Então olhou para além dela e notou que uma terceira pessoa
havia saído do chalé. Desta vez era um homem. Parecia ser do
Oriente Médio e se vestia como um operário, com cinto de
ferramentas e luvas. Estava de pé, tranqüilamente encostado no
portal e com os braços cruzados, usando jeans cobertos de
serragem e uma camisa xadrez com mangas enroladas acima dos
cotovelos, revelando antebraços musculosos. Suas feições
eram bastante agradáveis, mas ele não era particularmente bonito
— não se destacaria numa multidão. Mas seus olhos e o sorriso
iluminavam o rosto e Mack achou difícil desviar o olhar. Mack
recuou de novo, sentindo-se um tanto esmagado.
— Há mais de vocês? — perguntou meio rouco.
Os três se entreolharam e riram. Mack não conseguiu evitar
um sorriso.
— Não, Mackenzie — riu a negra. — Somos tudo que você
tem e, acredite, é mais do que o bastante.
Mack tentou olhar de novo para a mulher asiática. Pelo que
podia ver, ela talvez fosse do Norte da China, ou até mesmo de
etnia mongólica. Era difícil dizer, porque seus olhos precisavam se
esforçar para enxergá-la. Pelas roupas, Mack presumiu que
fosse jardineira ou que cuidasse da horta. Tinha luvas dobradas no
cinto, não como as de couro do homem, mas leves, de pano e
borracha, como as que o próprio Mack usava para trabalhar no
quintal de casa. Vestia jeans simples com desenhos ornamentais
nas barras — joelhos cobertos da terra onde estivera ajoelhada — e
uma blusa muito colorida com manchas de amarelo, vermelho e
azul. Mack tinha uma impressão de tudo isso, porque ela parecia
entrar e sair de seu campo de visão.
Então o homem se aproximou, tocou o ombro de Mack,
beijou-o nas faces e o abraçou com força. Mack soube
instantaneamente que gostava dele. Depois o homem recuou e
a mulher asiática aproximou-se de novo, segurando seu rosto com
as duas mãos. Gradual e intencionalmente, ela aproximou o seu
rosto do dele e olhou no fundo de seus olhos.
Mack achou que quase podia ver através dela. Então a
mulher sorriu e seu perfume pareceu envolvê-lo e tirar um peso
enorme de seus ombros.
De repente Mack sentiu-se mais leve do que o ar, quase como
se não tocasse mais o chão. Ela estava abraçando-o sem abraçá-lo,
ou sem mesmo tocá-lo. Só quando ela recuou, o que provavelmente
aconteceu apenas alguns segundos depois, ele percebeu que ainda
estava de pé e que seus pés continuavam tocando o piso da
varanda.
— Ah, não se incomode — riu a negra enorme. — Ela causa
esse efeito em todo mundo.
— Gosto disso — ele murmurou e os três irromperam em
mais risos. Agora Mack se pegou rindo com eles, sem saber
exatamente por que e não se importando com isso.
Quando finalmente parou de rir, a mulher enorme passou o
braço por seus ombros, puxou-o e disse:
— Nós sabemos quem você é, mas acho que devemos nos
apresentar. Eu — ela balançou as mãos com um floreio — sou a
governanta e cozinheira. Pode me chamar de Elousia.
— Elousia? — perguntou Mack, sem compreender.
— Certo, você não precisa me chamar de Elousia. É só um
nome de que eu gosto e que tem um significado particular para
mim. Então — ela cruzou os braços e pôs a mão sob o queixo,
como se pensasse com intensidade especial — pode me chamar do
mesmo modo como Nan me chama.
— O quê? Você não quer dizer... — Agora Mack ficou surpreso
e mais confuso ainda.
Sem dúvida aquela não era o Papai que havia mandado o
bilhete! — É... quer dizer, "Papai"?
— É — respondeu ela e sorriu, esperando que ele falasse,
mas Mack ficou quieto.
O homem, que parecia ter trinta e poucos anos e era um
pouco mais baixo do que Mack, interrompeu:
— Tento manter as coisas consertadas por aqui. Mas gosto de
trabalhar com as mãos, se bem que, como essas duas vão lhe
dizer, sinto prazer em cozinhar e cuidar do jardim.
— Você parece ser do Oriente Médio, talvez seja árabe? —
perguntou Mack.
— Na verdade, sou irmão de criação daquela grande família.
Sou hebreu; para ser exato, da casa de Judá.
— Então... — De repente Mack ficou abalado com a própria
percepção. — Então você é...
— Jesus? Sou. E pode me chamar assim, se quiser. Afinal de
contas, esse se tornou o meu nome comum. Minha mãe me
chamava de Yeshua, mas também posso ser conhecido como
Joshua ou até mesmo Jessé.
Mack ficou perplexo e mudo. O que ele estava vendo e
ouvindo parecia completamente impossível! De repente sentiu que
ia desmaiar. A emoção o varria, enquanto sua mente tentava em
desespero acompanhar todas as informações. Nesse momento a
asiática chegou mais perto e desviou sua atenção.
— E eu sou Sarayu — disse ela inclinando a cabeça numa
ligeira reverência e sorrindo. — Guardiã dos jardins, dentre outras
coisas.
Pensamentos se embolavam enquanto Mack lutava para ter
alguma clareza. Será que alguma daquelas pessoas era Deus? E se
fossem alucinações? Ou será que Deus viria mais tarde? Já que
eram três, talvez aquilo fosse uma espécie de Trindade. Mas
duas mulheres e um homem? E nenhum deles era branco? Mas
por que ele havia presumido que Deus seria branco? Sabia que sua
mente estava divagando, por isso concentrou-se na pergunta que
mais queria ver respondida.
— Então qual de vocês é Deus?
— Eu — responderam os três em uníssono. Mack olhou de
um para o outro e, mesmo sem entender nada, de algum modo
acreditou.


6. AULA DE VÔO
...não importa qual seja o poder de Deus, o
primeiro aspecto de Deus jamais é o do Senhor
absoluto, do Todo-Poderoso. Ê o do Deus que se
coloca no nosso nível humano e se limita.
— Jacques Ellul, Anarchy and Christianity
— Mackenzie, não fique aí parado de boca aberta — disse a
negra enorme enquanto se virava e seguia pela varanda, falando o
tempo todo. — Venha conversar comigo enquanto preparo a janta.
Ou, se não quiser, faça o que desejar. Atrás do chalé, perto do
abrigo de barcos, você vai encontrar uma vara de pesca que pode
usar para pegar umas trutas. Ela parou junto à porta para dar um
beijo em Jesus.
— Lembre apenas — e virou-se para olhar Mack — que você
tem de limpar o que pegar. — Depois, com um sorriso rápido,
desapareceu no chalé, carregando o casaco de inverno de Mack e
segurando a arma pelos dois dedos, com o braço estendido.
Mack ficou parado, de boca aberta e com uma expressão de
perplexidade grudada no rosto.
Mal notou quando Jesus passou o braço por seu ombro.
Sarayu parecia ter simplesmente evaporado.
— Ela não é fantástica? — exclamou Jesus, rindo para Mack.
Mack o encarou, balançando a cabeça.
— Estou ficando maluco? Devo acreditar que Deus é uma
negra gorda com um senso de humor questionável?
Jesus riu.
— Ela é uma piada! Adora surpresas e tem uma noção de
tempo sempre perfeita.
— Verdade? — disse Mack, ainda balançando a cabeça e sem
saber se realmente acreditava. — Então o que devo fazer agora?
— Você não deve fazer nada. Está livre para o que quiser. —
Jesus fez uma pausa e continuou, dando algumas sugestões: —
Estou trabalhando num projeto em madeira no barracão e Sarayu
está no jardim. Você pode ir pescar, andar de canoa ou entrar
e conversar com Papai.
— Bem, acho que me sinto obrigado a entrar e falar com ele...
isto é, com ela.
— Ah! — Agora Jesus estava sério. — Não se sinta obrigado.
Vá se for isso o que você quer fazer.
Mack pensou um momento e decidiu que entrar no chalé era
o que realmente desejava. Agradeceu a Jesus, que, sorrindo, foi
para a sua oficina. Mack atravessou a varanda e chegou à porta.
Depois de olhar rapidamente em volta, abriu-a. Enfiou a cabeça
para dentro, hesitou e decidiu mergulhar.
— Deus? — chamou timidamente, sentindo-se bastante
idiota.
— Estou na cozinha, Mackenzie. Basta seguir minha voz.
Ele entrou e examinou a sala. Será que este era o mesmo
lugar? Estremeceu diante do sussurro dos pensamentos sombrios
à espreita e trancou-os de novo. Olhou para a sala de estar
procurando o local perto da lareira, mas não encontrou nenhuma
mancha. Notou que a sala era decorada com figuras que pareciam
ter sido desenhadas ou feitas por crianças. Imaginou se aquela
mulher guardava com carinho cada uma daquelas peças, como
qualquer pai ou mãe que ama os filhos.
Talvez fosse assim que ela valorizava as coisas que lhe eram
dadas de coração, como as crianças em geral fazem. Mack foi em
direção ao cantarolar baixo e chegou a uma copa-cozinha onde
havia uma mesa com quatro lugares e cadeiras de encosto de vime.
O interior do chalé era mais espaçoso do que ele havia imaginado.
Papai estava trabalhando em alguma coisa, de costas para ele, com
farinha voando enquanto se balançava ao ritmo da música ou
do que quer que estivesse escutando. A canção obviamente
acabou, marcada por duas últimas sacudidas de ombros e
quadris. Virando-se para encará-lo, a negra tirou os fones de
ouvido.
De repente Mack quis fazer mil perguntas ou dizer mil coisas,
algumas terríveis. Tinha a certeza de que seu rosto traía as
emoções que ele lutava para controlar e então enfiou tudo de volta
no coração sofrido. Se ela conhecia seu conflito interno, não
demonstrou nada pela expressão — ainda aberta, cheia de vida e
convidativa.
Ele quis saber:
— Posso perguntar o que você está escutando?
— Um barato da Costa Oeste. É um disco que ainda nem foi
lançado, chamado Viagens do coração, tocado por uma banda
chamada Diatribe. Na verdade — ela piscou para Mack —, esses
garotos ainda nem nasceram.
— É mesmo? — reagiu Mack bastante incrédulo. — Um
barato da Costa Oeste, hein? Não parece muito religioso.
— Ah, acredite: não é. É mais tipo funk e blues eurasiano,
com uma mensagem fantástica. — Ela veio bamboleando na
direção de Mack, como se estivesse dançando, e bateu palmas.
Mack recuou.
— Então Deus ouve funk? — Mack nunca ouvira a palavra
"funk" em qualquer contexto religioso. — Achei que você estaria
ouvindo uma música mais de igreja.
— Ora, veja bem, Mackenzie. Você não precisa ficar me
rotulando. Eu ouço tudo e não somente a música propriamente
dita, mas os corações que estão por trás dela. Não se lembra de
suas aulas na escola dominical? Esses garotos não estão dizendo
nada que eu já não tenha ouvido antes. Simplesmente são cheios
de vinagre e gás. Muita raiva, e, devo dizer, com um bocado de
razão. São apenas alguns dos meus meninos se mostrando e
fazendo beicinho. Gosto especialmente desses garotos. É, vou ficar
de olho neles.
Mack lutou para encontrar algum sentido no que acontecia.
Nada do que estudara na escola dominical da igreja estava
ajudando. Sentia-se subitamente sem palavras e todas as suas
perguntas pareciam tê-lo abandonado. Por isso declarou o óbvio:
— Você deve saber que chamá-la de Papai é meio
complicado para mim.
— Ah, verdade? — Ela olhou-o fingindo surpresa. — Claro
que sei. Sempre sei. — Ela deu um risinho. — Mas diga, por que
você acha que é difícil? Porque é uma palavra familiar demais ou
talvez porque estou me mostrando como mulher, mãe ou...
— Tudo isso é complicado — interrompeu Mack com um
risinho sem jeito.
— Ou talvez por causa dos fracassos do seu pai?
Mack ofegou involuntariamente. Não estava acostumado a ver
seus segredos mais profundos virem à superfície de modo tão
rápido e explícito. A culpa e a raiva cresceram instantaneamente, e
ele quis reagir com uma resposta sarcástica. Sentia que
estava pendurado sobre um abismo sem fundo e teve medo de que,
se deixasse algo daquilo sair, perderia o controle de tudo. Procurou
uma base segura, mas finalmente só conseguiu responder com os
dentes trincados:
— Talvez porque nunca conheci ninguém a quem pudesse
realmente chamar de papai.
Diante disso, ela pousou a tigela que estava aninhada em seu
braço e, deixando dentro a colher de pau, virou-se para Mack com
olhos gentis. Não precisava dizer coisa alguma.
Ele viu imediatamente que ela entendia o que lhe ia na alma e
de algum modo soube que ela gostava mais dele do que de
qualquer pessoa.
— Se você deixar, Mack, serei o pai que você nunca teve.
A oferta era ao mesmo tempo convidativa e repulsiva. Ele
sempre quisera um pai em quem pudesse confiar, mas não sabia
se iria encontrá-lo ali, logo com alguém que não pudera proteger
sua Missy. Um longo silêncio pairou entre eles. Mack não sabia
direito o que dizer e ela parecia não ter pressa.
— Se você não foi capaz de cuidar de Missy, como posso
confiar que cuide de mim?
Pronto, havia feito a pergunta que o atormentara em todos os
dias da Grande Tristeza.
Mack sentiu o rosto se encher de um vermelho de raiva,
enquanto olhava para o que agora considerava uma caracterização
estranha de Deus, e percebeu que fechara os punhos com força.
— Mack, sinto muito. — Lágrimas começaram a descer pelo
rosto dela. — Sei o tamanho do abismo que isso abriu entre nós.
Sei que você ainda não entende, mas gosto especialmente de Missy
e de você também.
Mack adorou o modo como ela disse o nome de Missy, mas
odiou ouvi-lo dito por ela.
A palavra rolava na língua da mulher como o vinho mais doce
e, apesar de toda a fúria que ainda rugia em sua mente, de algum
modo ele acreditou na sinceridade dela. Mack desejava acreditar, e
lentamente parte da raiva começou a diminuir.
— É por isso que você está aqui, Mack — continuou ela. —
Quero curar a ferida que cresceu dentro de você e entre nós.
Para ganhar algum controle, ele voltou os olhos para o chão.
Passou-se um minuto inteiro antes que tivesse energia suficiente
para sussurrar sem levantar a cabeça:
— Acho que eu gostaria disso — admitiu —, mas não vejo
como.
— Querido, não existe resposta fácil para a sua dor. Acredite,
se eu tivesse uma, usaria agora. Não tenho varinha mágica para
fazer com que tudo fique bem. A vida custa um bocado de tempo e
um monte de relacionamentos.
Mack ficou satisfeito porque estavam se afastando de sua
acusação medonha. Ficara apavorado com a intensidade da
própria raiva.
— Acho que seria mais fácil ter esta conversa se você não
estivesse usando um vestido — ele sugeriu, tentando sorrir
debilmente.
— Se fosse mais fácil, eu não estaria assim — ela disse com
um risinho. — Não estou tentando tornar isso mais difícil para
nenhum de nós dois. Mas este é um bom lugar para começar. Acho
que começar tirando do caminho as questões que vêm da cabeça
faz com que as do coração fiquem mais fáceis de ser trabalhadas...
quando você estiver pronto.
Ela pegou de novo a colher de pau, de onde pingava algum
tipo de massa.
— Mackenzie, eu não sou masculino nem feminina, ainda que
os dois gêneros derivem da minha natureza. Se eu escolho
aparecer para você como homem ou mulher, é porque o amo. Para
mim, aparecer como mulher e sugerir que você me chame de Papai
é simplesmente para ajudá-lo a não sucumbir tão facilmente aos
seus condicionamentos religiosos. Ela se inclinou, como se
quisesse compartilhar um segredo.
— Se eu me revelasse a você como uma figura muito grande,
branca e com aparência de avô com uma barba comprida,
simplesmente reforçaria seus estereótipos religiosos. É importante
você saber que o objetivo deste fim de semana não é reforçar esses
estereótipos.
Mack quase riu alto, ironizando, mas, em vez disso,
concentrou-se no que ela acabara de dizer e recuperou a
compostura. Acreditava, pelo menos no coração, que Deus era um
Espírito, nem masculino nem feminino, mas, apesar disso, sentiase
embaraçado ao admitir que todas as suas concepções visuais de
Deus eram muito brancas e muito masculinas.
Ela parou de falar enquanto guardava alguns condimentos
numa prateleira de temperos e depois virou-se para encará-lo de
novo. Olhou para Mack com intensidade.
— Não é verdade que você sempre teve dificuldade para me
ver como um pai? Depois do que passou, não fica nada fácil lidar
com um pai, não é?
Ele sabia que ela estava certa e percebeu a gentileza e a
compaixão de sua atitude. De algum modo, a maneira como ela
havia se aproximado dele diminuíra sua resistência a receber o
amor oferecido. Era estranho, doloroso e talvez até um tanto
maravilhoso.
— Mas então — ele parou, esforçando-se para se manter
racional — por que tanta ênfase em você ser um pai? Quero dizer,
este parece o modo como você mais se revela.
— Bem — respondeu Papai dando-lhe as costas e ocupandose
na cozinha —, há muitos motivos para isso, e alguns são muito
profundos. Por enquanto, deixe-me dizer que, assim que a Criação
se degradou, nós soubemos que a verdadeira paternidade
faria muito mais falta do que a maternidade. Não me entenda mal,
as duas coisas são necessárias, mas é essencial uma ênfase na
paternidade por causa da enormidade das conseqüências da
ausência da função paterna.
Mack se virou, meio perplexo, sentindo que aquilo já estava
indo longe demais.
Enquanto refletia, olhou pela janela para um jardim de
aparência selvagem.
— Você sabia que eu viria, não é? — disse finalmente,
baixinho.
— Claro que sabia. — Ela estava ocupada de novo, de costas
para ele.
— Então eu não estava livre para deixar de vir? Eu não tinha
opção?
Papai se virou de novo para encará-lo, agora com farinha e
massa nas mãos.
— Boa pergunta; até que profundidade você gostaria de ir? —
Ela não esperou resposta, sabendo que Mack não tinha. Em vez
disso, perguntou: — Você acredita que está livre para ir embora?
— Acho que sim. Estou?
— Claro que está! Não gosto de prisioneiros. Você está livre
para sair por essa porta agora mesmo e voltar para a sua casa
vazia. Mas eu sei que você é curioso demais para ir. Será que isso
reduz sua liberdade de partir?
Ela parou apenas brevemente e depois voltou para sua tarefa,
falando com ele por cima do ombro.
— Se você quiser ir só um pouquinho mais fundo,
poderíamos falar sobre a natureza da própria liberdade. Será que
liberdade significa que você tem permissão para fazer o que quer?
Ou poderíamos falar sobre tudo o que limita a sua liberdade. A
herança genética de sua família, seu DNA específico, seu
metabolismo, as questões quânticas que acontecem num nível
subatômico onde só eu sou a observadora sempre presente.
Existem as doenças de sua alma que o inibem e amarram, as
influências sociais externas, os hábitos que criaram elos e
caminhos sinápticos no seu cérebro. E há os anúncios, as
propagandas e os paradigmas. Diante dessa confluência de
inibidores multifacetados — ela suspirou —, o que é de fato a
liberdade?
Mack ficou ali parado, sem saber o que dizer.
— Só eu posso libertá-lo, Mackenzie, mas a liberdade jamais
pode ser forçada.
— Não entendo. Não estou entendendo o que você acaba de
dizer.
Ela se virou e sorriu.
— Eu sei. Não falei para que você entendesse agora. Falei
para mais tarde. No ponto em que estamos, você ainda não
compreende que a liberdade é um processo de crescimento.
Estendendo gentilmente as mãos sujas de farinha, ela
segurou as de Mack e, olhando-o direto nos olhos, continuou:
— Mackenzie, a Verdade irá libertá-lo, e a Verdade tem nome.
Neste momento ele está na carpintaria, coberto de serragem. Tudo
tem a ver com ele. E a liberdade é um processo que acontece
dentro de um relacionamento com ele. Então todas essas coisas
que você sente borbulhando por dentro vão começar a sair.
— Como você pode realmente saber como me sinto? —
perguntou Mack, encarando-a de volta.
Papai não respondeu, apenas olhou para as mãos dos dois. O
olhar de Mack seguiu o dela, e pela primeira vez ele notou as
cicatrizes nos punhos da negra, como as que agora presumia que
Jesus também tinha nos dele. Ela permitiu que ele tocasse com
ternura as cicatrizes, marcas de furos fundos, e finalmente Mack
ergueu os olhos para os dela.
Lágrimas desciam lentamente pelo rosto de Papai, pequenos
caminhos através da farinha que empoava suas faces.
— Jamais pense que o que meu filho optou por fazer não nos
custou caro. O amor sempre deixa uma marca significativa — ela
declarou, baixinho e gentilmente. — Nós estávamos lá, juntos.
Mack ficou surpreso.
— Na cruz? Espere aí, eu pensei que você o tinha
abandonado. Você sabe: "Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonastes?" — Era uma citação das Escrituras
que freqüentemente assombrava Mack na Grande Tristeza.
— Você não entendeu o mistério naquilo. Independentemente
do que ele sentiu no momento, eu nunca o deixei.
— Como pode dizer isso? Você o abandonou, exatamente
como me abandonou!
— Mackenzie, eu nunca o abandonei e nunca deixei você.
— Isso não faz nenhum sentido — reagiu ele rispidamente.
— Sei que não, pelo menos por enquanto. Mas pense nisto:
quando tudo que consegue ver é sua dor, talvez você perca a visão
de mim, não é?
Quando Mack não respondeu, ela retornou ao trabalho na
cozinha, como se quisesse lhe oferecer um pouco de um necessário
espaço. Parecia estar preparando vários pratos ao mesmo tempo,
acrescentando temperos e ingredientes. Cantarolando uma
musiquinha repetitiva, deu os últimos retoques na torta que estava
fazendo e enfiou-a no forno.
— Não se esqueça, a história não terminou no sentimento de
abandono de Jesus. Ele encontrou a saída para se colocar
inteiramente nas minhas mãos. Ah, que momento foi aquele!
Mack se encostou na bancada um tanto perplexo. Suas
emoções e pensamentos estavam todos misturados. Parte dele
queria acreditar em tudo que Papai dizia. Seria ótimo! Mas outra
parte questionava ruidosamente: "Isso não pode ser verdade! "
Papai pegou o cronômetro da cozinha, girou-o de leve e
colocou-o na mesa diante deles.
— Não sou quem você acha, Mackenzie. — As palavras dela
não eram raivosas nem defensivas.
Mack olhou para ela, olhou para o cronômetro e suspirou.
— Estou me sentindo totalmente perdido.
— Então vejamos se podemos encontrá-lo no meio dessa
confusão.
Quase como se tivesse recebido a deixa, um pássaro azul
pousou no parapeito da janela e começou a pular para trás e para
a frente. Papai enfiou a mão numa lata sobre a bancada e, abrindo
a janela, ofereceu ao pássaro uma mistura de grãos que ela devia
guardar exatamente para isso. Sem qualquer hesitação e com
aparente ar de humildade e gratidão, o pássaro foi direto para a
mão dela e começou a comer.
— Considere nosso amiguinho aqui — começou ela. — A
maioria dos pássaros foi criada para voar. Para eles, ficar no solo é
uma limitação de sua capacidade de voar, e não o contrário. — Ela
parou para deixar que Mack pensasse nisso. — Você, por outro
lado, foi criado para ser amado.
Assim, para você, viver como se não fosse amado é uma
limitação, e não o contrário.
Mack assentiu, não porque concordasse completamente, mas
sinalizando que entendia e estava acompanhando. O que ela dizia
era bastante simples.
— Viver sem ser amado é como cortar as asas de um pássaro
e tirar sua capacidade de voar. Não é algo que eu queira para você.
Aí é que estava. No momento ele não se sentia
particularmente amado.
— Mack, a dor tem a capacidade de cortar nossas asas e nos
impedir de voar. — Ela esperou um momento, permitindo que suas
palavras se assentassem. — E, se essa situação persistir por muito
tempo, você quase pode esquecer que foi criado originalmente para
voar.
Mack ficou quieto. Estranhamente, o silêncio não era tão
desconfortável assim.
Olhou o pássaro. O pássaro olhou de volta para Mack. Ele
imaginou se seria possível os pássaros sorrirem. Pelo menos aquele
parecia capaz.
— Não sou como você, Mack.
Não era uma repreensão, e sim a simples declaração de um
fato. Mas para Mack foi como um banho de água gelada.
— Sou Deus. Sou quem sou. E, ao contrário de você, minhas
asas não podem ser cortadas.
— Bom, é maravilhoso para você, mas onde, exatamente, isso
me deixa? — reagiu Mack, parecendo mais irritado do que gostaria.
Papai começou a acariciar o pássaro, aproximou-o do rosto e
disse:
— Exatamente no centro do meu amor!
— Estou achando que esse pássaro provavelmente entende
isso melhor do que eu — foi o máximo que Mack conseguiu dizer.
— Eu sei, querido. Por isso estamos aqui. Por que você acha
que eu disse que não sou como você?
— Bom, realmente não faço idéia. Quer dizer, você é Deus e
eu não sou. — Ele não conseguiu afastar o sarcasmo da voz, mas
ela o ignorou completamente.
— É, mas não exatamente. Pelo menos não do modo como
você está pensando. Mackenzie, eu sou o que alguns chamariam
de "sagrado e totalmente diferente de você". O problema é que
muitas pessoas tentam entender um pouco o que eu sou pensando
no melhor que elas podem ser, projetando isso ao enésimo grau,
multiplicando por toda a bondade que são capazes de perceber —
que freqüentemente não é muita —, e depois chamam o resultado
de Deus. E, embora possa parecer um esforço nobre, a verdade
é que fica lamentavelmente distante do que realmente sou. Sou
muito mais do que isso, sou acima e além de tudo o que você
possa perguntar ou pensar.
— Lamento, mas para mim isso não passa de palavras. E elas
não fazem muito sentido. — Mack deu de ombros.
— Mesmo que você não consiga finalmente me compreender,
sabe de uma coisa? Ainda quero ser conhecido.
— Você está falando de Jesus, não é verdade? Está me
lembrando as aulas de catecismo: "Vamos tentar entender a
Trindade"?
Ela deu um risinho.
— Mais ou menos, mas aqui não é a escola dominical. É uma
aula de vôo. Mackenzie, como você pode imaginar, há algumas
vantagens em ser Deus. Por natureza, sou completamente
ilimitada, sem amarras.
Sempre conheci a plenitude. Minha condição normal de
existência é um estado de satisfação perpétua — disse ela,
bastante satisfeita. — É apenas uma das vantagens de Eu ser Eu.
Isso fez Mack sorrir. A mulher estava se divertindo muito com
ela mesma e não havia um pingo de arrogância para estragar
aquilo.
— Nós criamos vocês para compartilhar isso. Mas então Adão
optou por ficar sozinho, como sabíamos que iria acontecer, e tudo
se estragou.
Mas, em vez de varrer toda a Criação, arregaçamos as
mangas e entramos no meio da bagunça. Foi o que fizemos em
Jesus.
Mack estava parado, esforçando-se ao máximo para
acompanhar o fio dos pensamentos dela.
— Quando nós três penetramos na existência humana sob a
forma do Filho de Deus, nos tornamos totalmente humanos.
Também optamos por abraçar todas as limitações que isso
implicava. Mesmo que tenhamos estado sempre presentes nesse
universo criado, então nos tornamos carne e sangue. Seria como
se este pássaro, cuja natureza é voar, optasse somente por andar e
permanecer no chão. Ele não deixa de ser pássaro, mas isso altera
significativamente sua experiência de vida.
Ela parou para se certificar de que Mack ainda estava
acompanhando seu raciocínio.
Embora houvesse uma dor nítida se formando em seu
cérebro, ele fez um gesto, convidando-a a continuar.
— Ainda que por natureza Jesus seja totalmente Deus, ele é
totalmente humano e vive como tal. Ainda que jamais tenha
perdido sua capacidade inata de voar, ele opta, momento a
momento, por ficar no chão. Por isso seu nome é Emanuel, Deus
conosco, ou Deus com vocês, para ser mais exata.
— Mas... e todos os milagres? As curas? Ressuscitar os
mortos? Isso não prova que Jesus era Deus... você sabe, mais do
que humano?
— Não, isso prova que Jesus é realmente humano.
— O quê?
— Mackenzie, eu posso voar, mas os humanos, não. Jesus é
totalmente humano. Apesar de ele ser também totalmente Deus,
nunca aproveitou sua natureza divina para fazer nada. Apenas
viveu seu relacionamento comigo do modo como eu desejo que
cada ser humano viva. Ele foi simplesmente o primeiro a levar isso
até as últimas instâncias: o primeiro a colocar minha vida dentro
dele, o primeiro a acreditar no meu amor e na minha bondade,
sem considerar aparências ou conseqüências.
— E quando ele curava os cegos?
— Fez isso como um ser humano dependente e limitado que
confia na minha vida e no meu poder de trabalhar com ele e
através dele. Jesus, como ser humano, não tinha poder para curar
ninguém.
Isso foi um choque para as crenças religiosas de Mack.
— Só enquanto ele repousava em seu relacionamento comigo
e em nossa comunhão, nossa comum-união, ele se tornava capaz
de expressar meu coração e minha vontade em qualquer
circunstância determinada. Assim, quando você olha para Jesus e
parece que ele está voando, na verdade ele está... voando. Mas o
que você está realmente vendo sou eu, minha vida nele. É assim
que ele vive e age como um verdadeiro ser humano, como cada
humano está destinado a viver: a partir da minha vida.
E continuou:
— Um pássaro não é definido por estar preso ao chão, mas
por sua capacidade de voar. Lembre-se disso: os seres humanos
não são definidos por suas limitações, e sim pelas intenções que
tenho para eles.
Não pelo que parecem ser, mas por tudo que significa ser
criado à minha imagem.
Mack sentiu necessidade de sentar-se. Percebeu que
precisaria de um certo tempo para compreender todas aquelas
informações.
Papai colocou o pássaro sobre a mesa, perto de Mack, virouse
para abrir o forno e deu uma olhadinha na torta que estava
assando. Satisfeita porque tudo ia bem, puxou uma cadeira para
perto. Mack olhou o pássaro que, espantosamente, parecia
contente em apenas ficar ali com eles. O absurdo daquilo fez Mack
dar um risinho.
— Para começar, é bom que você não consiga entender a
maravilha da minha natureza. Quem quer adorar um Deus que
pode ser totalmente compreendido, hein? Não há muito mistério
nisso.
— Mas que diferença faz o fato de haver três de vocês e que
todos sejam um só Deus? É isso mesmo?
— É, sim. — Ela riu. — Mackenzie, faz toda a diferença do
mundo! — Ela parecia estar gostando daquilo. — Não somos três
deuses e não estamos falando de um deus com três atitudes, como
um homem que é marido, pai e trabalhador. Sou um só Deus e sou
três pessoas, e cada uma das três é total e inteiramente o um.
O "hã" que Mack estivera retendo veio finalmente à superfície
com toda a força.
— Não importa — continuou a mulher. — O importante é o
seguinte: se eu fosse simplesmente Um Deus e Uma Pessoa, você
iria se encontrar nesta Criação sem algo maravilhoso, sem algo que
é essencial. E eu seria absolutamente diferente do que sou.
— E nós estaríamos sem...? — Mack nem sabia como
terminar a pergunta.
— Amor e relacionamento. Todo amor e relacionamento só
são possíveis para vocês porque já existem dentro de Mim, dentro
do próprio Deus. O amor não é a limitação. O amor é o vôo. Eu sou
o amor.
Como que em resposta à declaração dela, o pássaro partiu
voando pela janela. Olhá-lo voando causou um intenso deleite.
Mack virou-se de volta para Papai e olhou-a maravilhado. Ela era
muito linda e espantosa e, apesar de estar se sentindo meio
perdido e de a Grande Tristeza ainda o acompanhar, percebeu
crescendo dentro dele um pouco de segurança por estar perto dela.
— Entenda o seguinte — continuou Papai. — Para que eu
tenha um objeto para amar ou, mais exatamente, um alguém para
amar, é preciso que exista esse relacionamento dentro de mim.
Caso contrário, eu não seria capaz de amar. Você teria um deus
incapaz de amar. Ou, talvez pior, você teria um deus que, quando
escolhesse amar, só poderia fazê-lo como uma limitação de sua
natureza. Esse tipo de deus possívelmente poderia agir sem amor e
seria um desastre. E isso certamente não sou eu.
Papai se levantou, foi até a porta do forno, tirou a torta
recém-assada, colocou-a na bancada e, virando-se como se fosse
se apresentar, disse:
— O Deus que é, o "eu sou quem eu sou", não pode agir fora
do amor!
Mack soube que, por mais difícil de entender que fosse, o que
estava escutando era algo espantoso e incrível. Como se as
palavras dela estivessem se enrolando nele, envolvendo-o e falando
com ele de maneiras que iam além do que ele poderia ouvir. Não
que acreditasse de fato em nada daquilo. Se ao menos fosse
verdade! Sua experiência lhe dizia o contrário.
— Este fim de semana tem a ver com relacionamento e amor.
Bom, eu sei que você tem um monte de coisas para me dizer, mas
neste momento é melhor ir se lavar. Os outros dois estão vindo
para o jantar. — Ela foi andando, mas parou e virou-se.
— Mackenzie, sei que seu coração está cheio de dor, de raiva
e de muita confusão. Nós dois vamos falar um pouco disso
enquanto você estiver aqui. Mas também quero que saiba que
estão acontecendo mais coisas do que você pode imaginar ou
entender. Procure usar ao máximo a confiança que tiver em
mim, mesmo que ela seja pequena, está bem?
Mack baixara a cabeça e olhava para o chão. "Ela sabe",
pensou. Pequena? "Pequena" ou praticamente nada? Confirmando
com a cabeça, olhou para cima e notou novamente as cicatrizes
nos pulsos dela.
— Papai? — disse Mack muito sem jeito.
— O que é, querido?
Mack lutou para encontrar as palavras que expressassem o
que lhe ia no coração.
— Lamento muito que você, que Jesus tivesse de morrer.
Ela rodeou a mesa e deu outro grande abraço em Mack.
— Sei que lamenta e agradeço. Mas você precisa saber que
nós não lamentamos nem um pouco. Valeu a pena. Não é, filho?
Ela se virou para fazer a pergunta a Jesus, que havia
acabado de entrar no chalé.
— Sem dúvida! — Ele fez uma pausa e depois olhou para
Mack. — E eu teria feito aquilo mesmo que fosse somente por você.
Mas não foi! — disse com um sorriso acolhedor.
Mack pediu licença e saiu em direção ao banheiro. Lavou as
mãos e o rosto e tentou recuperar a compostura.


7. DEUS NO CAIS
Rezemos para que a raça humana jamais escape
da Terra para espalhar sua iniqüidade em outros
lugares.
— C. S. Lewis
Mack ficou parado no banheiro olhando o espelho enquanto
enxugava o rosto com uma toalha.
Procurava algum sinal de insanidade naqueles olhos que o
espiavam de volta. Aquilo seria real?
Claro que não, era impossível. Mas então... Estendeu a mão e
tocou lentamente o espelho.
Talvez fosse uma alucinação trazida por todo o seu
sofrimento e desespero. Talvez fosse um sonho e ele estivesse
dormindo em algum lugar, quem sabe na cabana, morrendo
congelado.
Talvez... de repente um estrondo terrível rompeu seu
devaneio. Vinha da direção da cozinha e deixou Mack paralisado.
Por um momento houve um silêncio mortal e
depois, inesperadamente, gargalhadas retumbantes. Curioso, saiu
do banheiro e enfiou a cabeça pela porta da cozinha.
Mack ficou chocado diante da cena. Jesus deixara cair uma
grande tigela com algum tipo de massa ou molho no chão, e a
coisa tinha se espalhado por toda parte. A barra da saia de Papai
e seus pés descalços estavam cobertos pela massa gosmenta.
Sarayu disse alguma coisa sobre a falta de jeito dos humanos e os
três caíram na risada. Por fim, Jesus passou por Mack e
voltou com toalhas e uma grande bacia de água. Sarayu já estava
começando a limpar a sujeira do chão e dos armários, mas Jesus
foi direto até Papai e, ajoelhando-se aos pés dela, começou a
limpar a frente de seu vestido. Gentilmente levantou um pé de
cada vez e colocou os dois na bacia, onde os limpou e massageou.
— Uuuuuh, isso é tãããão bom! — exclamou Papai.
Encostado no portal, Mack não parava de pensar. Então Deus
era assim no relacionamento? Muito linda e atraente! Ele sabia que
ninguém estava em busca do culpado pela sujeira do chão, pela
tigela quebrada ou por um prato que não seria compartilhado. Era
óbvio que o que realmente importava era o amor que eles
sentiam uns pelos outros e a plenitude que esse amor lhes trazia.
Balançou a cabeça. Como isso era diferente da maneira como ele
tratava seus entes queridos!
Embora simples, o jantar foi um banquete. Algum tipo de ave
assada com uma espécie de molho de laranja, manga e alguma
outra coisa, verduras frescas temperadas com sabe-se lá o quê,
com gosto de fruta e de gengibre, e arroz de uma qualidade que
Mack jamais havia provado. Por hábito, abaixou a cabeça para
rezar. Levantou-a e viu os três rindo para ele. Meio sem jeito, disse:
— Ah, obrigado a vocês todos... Alguém pode me passar o
arroz?
— Claro. Nós íamos ter um molho japonês incrível, mas o
sem-jeito ali — Papai acenou na direção de Jesus — decidiu ver se
a tigela quicava.
— Ah, qual é? — respondeu Jesus num arremedo de defesa.
— Minhas mãos estavam escorregadias.
Papai piscou para Mack enquanto lhe passava o arroz.
— Não se consegue bons empregados por aqui.
Todo mundo riu.
A conversa parecia quase normal. Pediram que Mack falasse
de cada um dos filhos, menos de Missy, e ele contou das várias
lutas e conquistas deles. Quando falou de suas preocupações com
Kate, os três apenas assentiram com uma expressão solidária, mas
não ofereceram nenhum conselho. Ele também respondeu a
perguntas sobre os amigos, e Sarayu pareceu mais interessada em
perguntar por Nan. Finalmente Mack conseguiu dizer uma coisa
que o incomodara durante toda a conversa.
— Bom, estou aqui falando sobre meus filhos, meus amigos e
sobre Nan, mas vocês já sabem tudo o que vou dizer, não é? Vocês
estão agindo como se ouvissem pela primeira vez.
Sarayu estendeu a mão por cima da mesa e segurou a dele.
— Mackenzie, lembra-se da nossa conversa anterior sobre
limitação?
— Nossa conversa? — Ele olhou para Papai, que assentiu
como quem sabe das coisas.
— Você não pode compartilhar com um de nós sem que
compartilhe com todos — disse Sarayu e sorriu. — Lembre-se das
muitas vezes em que escolheu sentar no chão para facilitar
um relacionamento, para honrá-lo. Mackenzie, você faz isso
freqüentemente. Você não brinca com uma criança ou colore uma
figura com ela para mostrar sua superioridade. Pelo contrário,
você escolhe se limitar para facilitar e honrar o relacionamento.
Você é até capaz de perder uma competição como um ato de amor.
Isso não tem nada a ver com ganhar e perder, e sim com amor e
respeito.
— Então o que acontece quando estou falando com vocês
sobre meus filhos?
— Nós nos limitamos por respeito a você. Não estamos
trazendo à mente, por assim dizer, nosso conhecimento sobre seus
filhos. Ouvimos como se fosse a primeira vez e temos
enorme prazer em conhecê-los através dos seus olhos.
— Gosto disso — refletiu Mack, recostando-se na cadeira.
Sarayu apertou a mão dele e pareceu se recostar.
— Eu também! Os relacionamentos não têm nada a ver com
poder. Nunca! E um modo de evitar a vontade de exercer poder é
escolher se limitar e servir. Os humanos costumam fazer isso
quando cuidam dos enfermos, quando servem os idosos, quando
se relacionam com os pobres, quando amam os muito velhos e os
muito novos, ou até mesmo quando se importam com aqueles que
assumiram uma posição de poder sobre eles.
— Bem falado, Sarayu — disse Papai, com o rosto luzindo de
orgulho. — Eu cuido dos pratos depois. Mas primeiro gostaria de
ter um tempo para as devoções.
Mack teve de conter um risinho diante da idéia de Deus
fazendo orações. Imagens de devoções familiares de sua infância
vieram se derramar em seu pensamento. E não eram exatamente
boas lembranças.
Com freqüência consistiam em um exercício tedioso de dar as
respostas certas, ou melhor, as mesmas velhas respostas às
mesmas velhas perguntas sobre histórias da Bíblia e depois
tentar ficar acordado durante as orações exaustivamente longas de
seu pai. E, quando o pai tinha bebido, as orações da família
sempre se tornavam um terrível campo minado, onde
qualquer resposta errada ou um olhar distraído provocava uma
explosão. Ficou esperando que Jesus pegasse uma velha versão da
Bíblia.
Em vez disso, Jesus estendeu as mãos sobre a mesa e
segurou as de Papai, com as cicatrizes agora claramente visíveis.
Mack ficou sentado, em extremo fascínio, vendo Jesus beijar as
mãos do Pai, depois olhar fundo nos seus olhos e finalmente dizer:
— Papai, adorei ver como hoje você se tornou completamente
disponível para assumir a dor de Mack e deixar que ele escolhesse
seu próprio ritmo. Você o honrou e me honrou. Ouvir você
sussurrar amor e calma no coração dele foi realmente incrível. Que
alegria imensa ver isso! Adoro ser seu filho.
Embora Mack se sentisse um intruso, ninguém pareceu se
preocupar e, de qualquer modo, ele não tinha idéia de para onde ir.
Presenciar a expressão de tamanho amor parecia
deslocar qualquer entrave lógico e, ainda que ele não soubesse
exatamente o que sentia, era muito bom.
Estava testemunhando algo simples, caloroso, íntimo e
verdadeiro. Isso era sagrado. A santidade sempre fora um conceito
frio e estéril para Mack, mas isso era diferente. Preocupado em não
fazer qualquer gesto que perturbasse aquele momento,
simplesmente fechou os olhos e cruzou as mãos. Ouvindo
atentamente de olhos fechados, sentiu Jesus mexer a cadeira.
Houve uma pausa antes que ele falasse de novo:
— Sarayu — começou Jesus com suavidade e ternura —,
você lava, eu enxugo.
Os olhos de Mack se abriram rapidamente, a tempo de ver os
dois sorrirem afetuosamente um para o outro, pegarem os pratos e
desaparecerem na cozinha. Ficou sentado alguns minutos
sem saber o que fazer. Papai tinha ido a algum lugar e os outros
dois estavam ocupados com os pratos. A decisão foi fácil. Pegou os
talheres e os copos e levou-os para a cozinha. Assim que entrou,
Jesus lhe jogou um pano e, enquanto Sarayu lavava os pratos, os
dois começaram a enxugar.
Sarayu começou a cantarolar uma música evocativa que ele
havia escutado Papai cantar. Mais uma vez a melodia mexeu no
fundo de Mack, despertando lembranças e emoções. Se pudesse
permanecer ouvindo aquela canção, aceitaria ficar enxugando
os pratos pelo resto da vida.
Cerca de 10 minutos depois haviam acabado. Jesus deu um
beijo no rosto de Sarayu e ela desapareceu no corredor. Em
seguida ele sorriu para Mack.
— Vamos ao cais olhar as estrelas.
— E os outros? — perguntou Mack.
— Estou aqui — respondeu Jesus. — Sempre estou aqui.
Mack assentiu. Esse negócio da presença de Deus, embora
difícil de entender, parecia estar penetrando constantemente em
sua mente e em seu coração. Por isso relaxou.
— Vamos — disse Jesus, interrompendo seus pensamentos.
— Sei que você gosta de olhar as estrelas! — Parecia uma criança
cheia de ansiedade e expectativa.
— É, acho que gosto — respondeu Mack, percebendo que a
última vez em que fizera isso fora na maldita viagem com as
crianças. Talvez tivesse chegado a hora de correr alguns riscos.
Seguiu Jesus, saindo pela porta dos fundos. Nos momentos
finais do crepúsculo, Mack podia ver a margem rochosa do lago,
não cheia de mato alto como ele recordava, mas lindamente
cuidada e perfeita como uma pintura. O riacho ali perto parecia
cantarolar algum tipo de música. Projetando-se cerca de 15 metros
sobre o lago havia um cais e Mack mal conseguiu vislumbrar três
canoas amarradas nele. A noite ia caindo depressa e a escuridão
distante já estava cheia dos sons de grilos e sapos. Jesus pegou-o
pelo braço e guiou-o pelo caminho enquanto seus olhos se
ajustavam, mas Mack já estava olhando para uma noite sem luar,
com o espanto das estrelas emergindo.
Chegaram ao meio do cais e se deitaram de costas, olhando
para cima. A altitude do lugar parecia ampliar o céu e Mack
adorou ver a imensidão do espaço tão claramente estrelada. Jesus
sugeriu que fechassem os olhos por alguns minutos, permitindo
que os últimos clarões do crepúsculo desaparecessem. Mack
obedeceu e, quando finalmente abriu os olhos, a visão foi tão
poderosa que por alguns segundos ele experimentou uma
espécie de vertigem. Era quase como se estivesse caindo no
espaço, com as estrelas correndo em sua direção para abraçá-lo.
Levantou as mãos imaginando que podia colher diamantes, um a
um, de um céu de veludo negro.
— Uau! — exclamou.
— Incrível! — sussurrou Jesus, com a cabeça perto da de
Mack no escuro. — Nunca me canso de ver isso.
— Mesmo que você tenha criado?
— Eu criei quando era o Verbo, antes que o Verbo se tornasse
Carne. De modo que, mesmo tendo criado tudo isso, agora vejo
como humano. E acho impressionante!
— É mesmo. — Mack não sabia como descrever o que sentia,
mas enquanto continuavam deitados em silêncio, olhando o
espetáculo celestial num espanto reverente, observando e ouvindo,
soube em seu coração que isso também era sagrado.
Estrelas cadentes ocasionais chamejavam numa trilha breve
cortando o negrume da noite e fazendo um ou outro exclamar:
— Viu aquilo? Que maravilha!
Depois de um silêncio particularmente longo, Mack falou:
— Eu me sinto mais confortável perto de você. Você parece
muito diferente delas.
— Como assim, diferente? — a voz suave de Jesus emergiu da
escuridão.
— Bom. — Mack fez uma pausa enquanto pensava. — Mais
real ou palpável. Não sei. — Lutou com as palavras e Jesus ficou
deitado em silêncio, esperando. — É como se eu sempre tivesse
conhecido você. Mas Papai não é nem um pouco o que eu esperava
de Deus e Sarayu é muito estranha.
Jesus deu um risinho no escuro.
— Como eu sou humano, nós temos muito mais em comum.
— Mas, mesmo assim, não entendo...
— Eu sou o melhor modo que qualquer humano pode ter de
se relacionar com Papai ou com Sarayu. Me ver é vê-las. E,
acredite, Papai e Sarayu são tão reais quanto eu, embora, como
você viu, de maneiras muito diferentes.
— Por falar em Sarayu, ela é o Espírito Santo?
— É. É Criatividade, é Ação, é o Sopro da Vida. E é muito
mais. Ela é o meu Espírito.
— E o nome dela, Sarayu?
— É um nome simples de uma das nossas línguas humanas.
Significa "Vento", na verdade um vento comum. Ela adora esse
nome.
— Humm — resmungou Mack. — Não há nada de muito
comum nela!
— Isso é verdade.
— E o nome que Papai mencionou, El... Elo...
— Elousia — disse a voz reverentemente no escuro, ao lado
dele. — Esse é um nome maravilhoso. El é meu nome como Deus
Criador, mas ousia é "ser", ou "aquilo que é verdadeiramente real",
de modo que o nome significa "o Deus Criador que
é verdadeiramente real e a base de todo o ser". Isso é que é um
nome bonito!
Houve silêncio por um minuto enquanto Mack pensava no
que Jesus havia dito.
— Então onde é que isso nos deixa?
Ele sentia como se estivesse fazendo a pergunta em nome de
toda a raça humana.
— Bem, onde vocês sempre se destinaram a estar. No próprio
centro do nosso amor e do nosso propósito.
De novo uma pausa e depois:
— Acho que posso viver com isso.
Jesus deu um risinho.
— Fico feliz em saber — e os dois riram. Ninguém falou por
um tempo. O silêncio havia baixado como um cobertor e tudo de
que Mack tinha realmente consciência era do som da água batendo
no cais. Novamente ele rompeu o silêncio.
— Jesus?
— O que é, Mackenzie?
— Estou surpreso com uma coisa em você.
— Verdade? O quê?
— Acho que eu esperava que você fosse mais... — Cuidado aí,
Mack. — Ah... bem, humanamente marcante.
Jesus riu.
— Humanamente marcante? Quer dizer bonito? — Agora ele
estava gargalhando.
— Bom, eu estava tentando evitar dizer assim, mas é. De
algum modo achei que você seria o homem ideal, você sabe,
atlético e de uma beleza avassaladora.
— Ê o meu nariz, não é?
Mack não soube o que dizer.
Jesus riu.
— Eu sou judeu, você sabe. Meu avô materno tinha um
narigão. Na verdade, a maioria dos homens do meu lado materno
tinha nariz grande.
— Só pensei que você teria uma aparência melhor.
— De acordo com que padrão? De qualquer modo, quando
você me conhecer melhor, isso não vai importar.
Mesmo ditas com gentileza, as palavras machucaram.
Machucaram o quê, exatamente? Mack ficou deitado por alguns
segundos e percebeu que, por mais que pensasse que conhecia
Jesus, talvez não conhecesse... ou conhecesse mal. Talvez o
que conhecesse fosse um ícone, um ideal, uma imagem através da
qual tentava captar um sentimento de espiritualidade, mas não
uma pessoa real.
— Por que isso? — perguntou finalmente. — Você disse que,
se eu o conhecesse de verdade, sua aparência não importaria...
— Na verdade é bem simples. O ser sempre transcende a
aparência. Assim que você começa a descobrir o ser que há por
trás de um rosto muito bonito ou muito feio, de acordo com seus
conceitos e preconceitos, as aparências superficiais somem
até simplesmente não importarem mais. Por isso Elousia é um
nome tão maravilhoso. Deus, que é a base de todo o ser, mora
dentro, em volta e através de todas as coisas, e emerge em última
instância como o real. Qualquer aparência que mascare essa
verdade está destinada a cair.
Seguiu-se um silêncio enquanto Mack refletia sobre o que
Jesus havia dito. Desistiu depois de apenas um ou dois minutos e
decidiu fazer a pergunta mais arriscada.
— Você disse que eu não o conheço de verdade. Seria muito
mais fácil se pudéssemos sempre conversar assim.
— Admito, Mack, que essa conversa é especial. Você estava
realmente travado e nós queríamos ajudá-lo a se arrastar para fora
da dor. Mas não fique achando que porque não sou visível nosso
relacionamento precise ser menos real. Será diferente, talvez até
mais real.
— Como assim?
— Meu propósito, desde o início, era viver em você e você
viver em mim.
— Espere, espere. Espere um minuto. Como isso pode
acontecer? Se você ainda é totalmente humano, como pode estar
dentro de mim?
— Espantoso, não é? É o milagre de Papai. É o poder de
Sarayu, meu Espírito, o Espírito de Deus que restaura a união que
foi perdida há tanto tempo. Eu? A cada momento eu escolho viver
totalmente humano. Sou totalmente Deus, mas sou humano até o
âmago. Como eu disse, é o milagre de Papai.
Mack estava deitado no escuro ouvindo com atenção.
— Você está falando de uma moradia real e não somente de
uma questão teológica?
— Claro — respondeu Jesus com a voz forte e segura. — O
humano, formado a partir da criação material e física, pode ser
totalmente habitado pela vida espiritual, a minha vida. Isso exige
a existência de uma união muito real, dinâmica e ativa.
— É quase inacreditável! — exclamou Mack baixinho. — Eu
não fazia idéia. Preciso pensar mais nisso. Mas talvez eu tenha
outro monte de perguntas.
— E temos toda a sua vida para respondê-las — riu Jesus. —
Mas por enquanto chega disso. Vamos nos perder de novo na noite
estrelada.
No silêncio que se seguiu, Mack simplesmente ficou parado,
permitindo que a enormidade do espaço e da luminosidade esparsa
o fizesse sentir-se pequeno, deixando suas percepções
serem capturadas pela luz das estrelas e pela idéia de que tudo
tinha a ver com ele... com a raça humana... que toda aquela
magnífica criação era para a humanidade. Depois do que pareceu
um longo tempo, Jesus rompeu o silêncio.
— Nunca vou me cansar de olhar para isso. A maravilha de
tudo, o esbanjamento da Criação, como disse um dos nossos
irmãos. Tão elegante, tão cheia de desejo e beleza, mesmo agora.
— Sabe — reagiu Mack, novamente abalado pelo absurdo da
situação, pelo lugar onde estava, pela pessoa ao seu lado —,
algumas vezes você parece tão... quero dizer, aqui estou eu, perto
de Deus Todo-Poderoso, e na verdade você parece tão...
— Humano? — sugeriu Jesus. — Mas feio. — E começou a
rir, primeiro baixinho e contido, depois às gargalhadas. Era
contagioso e Mack deixou-se levar num riso que vinha de algum
lugar bem no fundo. Não ria a partir daquele lugar havia muito
tempo.
Jesus estendeu a mão e o abraçou, sacudido por seus
próprios espasmos de riso, e Mack se sentiu mais limpo, vivo e
bem desde... bom, não conseguia se lembrar desde quando.
Os dois acabaram se aquietando e o silêncio da noite se
impôs mais uma vez. Mack ficou parado, se dando conta da culpa
por estar se divertindo e rindo. Mesmo no escuro, sentiu a Grande
Tristeza chegar e encobri-lo.
— Jesus? — sussurrou com a voz embargada. — Eu me sinto
muito perdido.
Uma mão se estendeu e ficou apertando a sua.
— Eu sei, Mack. Mas não é verdade. Lamento se a sensação é
essa, mas ouça com clareza: você não está perdido.
— Espero que você esteja certo — respondeu Mack, com a
tensão afrouxada pelas palavras do amigo recém-encontrado.
— Venha — disse Jesus, levantando-se e estendendo a mão
para Mack. — Você tem um grande dia pela frente. Vou levá-lo
para a cama.
— Passou o braço pelo ombro de Mack e juntos andaram
para o chalé. De repente, Mack sentiu-se exausto. O dia fora longo.
Talvez acordasse em casa, na sua cama, depois de uma noite de
sonhos vividos. Mas em algum lugar dentro de si esperava estar
errado.


8. UM CAFÉ DA MANHÃ DE CAMPEÕES
"Crescer significa mudar e mudar envolve
riscos, uma passagem do conhecido para o
desconhecido."
— Autor desconhecido
Quando chegou no quarto, Mack descobriu que as roupas
que havia deixado no carro estavam dobradas em cima da cômoda
ou penduradas no armário. Achou engraçado encontrar uma Bíblia
na mesinha-de-cabeceira. Escancarou a janela para deixar que o
ar da noite entrasse livremente, algo que Nan jamais tolerava em
casa porque tinha medo de aranhas e de qualquer coisa rastejante.
Aninhado como uma criança pequena debaixo do grosso edredom,
havia lido apenas dois versículos da Bíblia quando o livro saiu de
sua mão, a luz se apagou, alguém deu-lhe um beijo no rosto e ele
foi levantado suavemente do chão, num sonho em que voava.
Quem nunca voou assim talvez não acredite que seja
possível, mas no fundo sente um pouco de inveja. Havia anos que
ele não tinha esse tipo de sonho, pelo menos desde que a
Grande Tristeza baixara, mas nessa noite Mack voou alto na noite
estrelada, através do ar límpido e frio, sem qualquer desconforto.
Sobrevoou lagos e rios, atravessou um litoral oceânico e
várias ilhotas cercadas de recifes.
Por mais estranho que pareça, Mack aprendera com seus
sonhos a voar erguendo-se do chão sem ser sustentado por nada
— sem asas, sem qualquer tipo de aparelho, apenas ele. Os
vôos inicialmente o elevavam a alguns centímetros do chão, por
causa do medo de cair. Aos poucos ele foi adquirindo confiança e
se alçando mais alto, descobrindo que a queda não era dolorosa,
apenas um pequeno ricochete em câmara lenta. Com o tempo,
aprendeu a ascender até as nuvens, cobrir vastas distâncias e
pousar suavemente.
Enquanto planava à vontade sobre montanhas escarpadas e
praias de um branco cristalino, usufruía a maravilha do sonho de
voar. Subitamente, algo o agarrou pelo tornozelo e o puxou para
baixo. Em questão de segundos foi arrastado das alturas e
jogado violentamente, de cara, numa estrada lamacenta e muito
esburacada. O trovão sacudia o solo e a chuva o encharcou
instantaneamente até os ossos. E tudo veio de novo, raios
iluminando o rosto de sua filha enquanto ela gritava "Papai! " sem
emitir nenhum som e se virava e corria para a escuridão, o vestido
vermelho visível apenas por alguns clarões breves e depois
sumindo. Mack lutou com todas as forças para se soltar da lama e
da água, mas foi sendo sugado para mais fundo. No momento em
que estava submergindo, acordou ofegando.
Com o coração disparado e a imaginação presa às imagens do
pesadelo, demorou alguns instantes para perceber que fora
somente um sonho. Mas, mesmo que o sonho fosse sumindo da
consciência, as emoções permaneceram. O sonho havia provocado
a Grande Tristeza e, antes que ele pudesse sair da cama, estava de
novo procurando um caminho através do desespero que viera
devorando muitos dos seus dias.
Olhou ao redor do quarto, no cinza opaco de antes do
amanhecer que chegava sorrateiramente do outro lado dos
postigos da janela. Aquele não era seu quarto, nada parecia
familiar. Onde estava? Pense, Mack, pense! Então se lembrou.
Ainda estava na cabana com aquelas três figuras interessantes e
todas as três achavam que eram Deus.
— Isso não pode estar acontecendo de verdade — resmungou,
enquanto punha os pés para fora da cama e se sentava na beira
com a cabeça nas mãos. Pensou no dia anterior e de novo sentiu
medo de estar enlouquecendo. Como nunca fora uma pessoa muito
chegada a contatos físicos e a emoções, Papai — ou quem quer que
fosse — o deixara nervoso, e ele não fazia idéia do que pensar a
respeito de Sarayu. Admitiu que gostava um bocado de Jesus, mas
ele parecia o menos divino dos três.
Soltou um suspiro fundo e pesado. E, se Deus estava
realmente ali, por que não havia afastado seus pesadelos?
Ficar se debatendo com um dilema não iria ajudar. Por isso
foi até o banheiro, onde, para sua perplexidade, tudo de que
precisava para tomar um banho de chuveiro fora cuidadosamente
arrumado. Demorou um tempo no calor da água, depois
barbeando-se e, de volta ao quarto, vestindo-se.
O aroma penetrante e sedutor do café o atraiu para a xícara
fumegante que o esperava na mesa junto à porta. Tomando um
gole, abriu os postigos e ficou olhando pela janela do quarto para o
lago que apenas vislumbrara como uma sombra na noite anterior.
Era perfeito, liso como vidro, a não ser pelo salto ocasional de
alguma truta, lançando círculos de ondas em miniatura que se
irradiavam pela superfície de um azul profundo até serem
lentamente absorvidas de volta na superfície maior. Avaliou que a
margem mais distante estaria a uns 800 metros. O orvalho
brilhava em toda parte como diamantes refletindo o amor do sol.
As três canoas que repousavam tranqüilas ao longo do cais
pareciam convidativas, mas Mack afastou o pensamento. Canoas
traziam muitas lembranças dolorosas.
O cais o fez lembrar-se da noite anterior. Será que realmente
havia se deitado ali com Aquele que fizera o universo? Mack
balançou a cabeça, perplexo. O que estava acontecendo? Quem
eram eles e o que queriam? O que quer que fosse, Mack
estava certo de que não tinha nada para dar.
O cheiro de ovos e bacon ondulou para dentro do quarto,
interrompendo seus pensamentos. Ao entrar na sala, ouviu o som
de uma música conhecida, de Bruce Cockburn, vindo da cozinha,
e uma voz aguda de mulher acompanhando bastante bem: "Ah,
amor que incendeia o sol, mantenha-me aceso." Papai surgiu com
pratos cheios de panquecas, batatas fritas e algum tipo de verdura.
Vestia uma roupa comprida e larga, de aparência africana, com
uma faixa multicolorida no cabelo. Parecia radiante —
quase reluzindo.
— Sabe — exclamou ela —, adoro as músicas dessa criança!
Gosto especialmente do Bruce, você sabe. — Ela olhou para Mack,
que estava se sentando à mesa.
Mack assentiu, com o apetite aumentando a cada segundo.
— É — continuou ela —, e sei que você também gosta dele.
Mack sorriu. Era verdade. Cockburn era o favorito de toda a
família havia anos.
— Então, querido — perguntou Papai, enquanto se ocupava
com alguma coisa. — Como foram seus sonhos esta noite?
Algumas vezes os sonhos são importantes, você sabe. Podem ser
um modo de abrir a janela e deixar que o ar poluído saia.
Mack sabia que isso era um convite para destrancar a porta
de seus terrores, mas no momento não estava pronto para
convidá-la a entrar naquele buraco com ele.
— Dormi bem, obrigado — respondeu e rapidamente mudou
de assunto. — Quer dizer que Bruce é seu predileto?
Ela parou e olhou-o.
— Mackenzie, eu não tenho prediletos; apenas gosto
especialmente dele.
— Você parece gostar especialmente de um monte de pessoas
— observou Mack. — E há alguém de quem você não goste
especialmente?
Ela ergueu a cabeça e revirou os olhos como se estivesse
examinando mentalmente o catálogo de cada ser criado.
— Não, não consigo encontrar ninguém. Acho que sou assim.
Mack ficou interessado.
— Nunca fica furiosa com alguém?
— Imagina! Que pai não fica? Os filhos se metem em várias
confusões que deixam a gente furiosa. Não gosto de muitas das
escolhas que eles fazem, mas essa minha raiva é uma expressão de
amor. Eu amo aqueles de quem estou com raiva tanto quanto
aqueles de quem não estou.
— Mas... — Mack fez uma pausa. — E a sua ira? Parece que,
se você pretende ser o Deus Todo-Poderoso, precisa ser muito mais
irado.
— É mesmo?
— É o que eu acho. Você não vivia matando gente na Bíblia?
Você não parece se encaixar naquele modelo.
— Entendo como tudo isso deve deixar você desorientado,
Mack. Mas o único que está pretendendo ser alguma coisa aqui é
você. Eu sou o que sou. Não estou tentando me encaixar em
modelo nenhum.
— Mas está pedindo que eu acredite que você é Deus, e
simplesmente não vejo... — Mack não sabia como terminar a frase,
por isso desistiu.
— Não estou pedindo que acredite em nada, mas vou lhe
dizer que você vai achar este dia muito mais fácil se simplesmente
aceitá-lo como é, em vez de tentar encaixá-lo em suas
idéias preconcebidas.
— Mas o Deus que me ensinaram derramou grandes doses de
fúria, mandou o dilúvio e lançou pessoas num lago de fogo. —
Mack podia sentir sua raiva profunda emergindo de novo,
fazendo brotar as perguntas, e se chateou um pouco com sua falta
de controle. Mas perguntou mesmo assim: — Honestamente, você
não gosta de castigar aqueles que a desapontam?
Diante disso, Papai interrompeu suas ocupações e virou-se
para Mack. Ele pôde ver uma tristeza profunda nos olhos dela.
— Não sou quem você pensa, Mackenzie. Não preciso castigar
as pessoas pelos pecados. O pecado é o próprio castigo, pois
devora as pessoas por dentro. Meu objetivo não é castigar. Minha
alegria é curar.
— Não entendo...
— Está certo. Não entende mesmo — disse ela com um
sorriso meio triste. — Mas, afinal de contas, você ainda não
terminou.
Nesse momento, Jesus e Sarayu entraram rindo pela porta
dos fundos, entretidos numa conversa. Jesus chegou vestido
praticamente como no dia anterior, com jeans e uma camisa azulclara
que fazia seus olhos castanhos se destacarem. Sarayu, por
outro lado, vestia algo tão fino e rendado que praticamente voava à
mais tênue brisa. Padrões de arco-íris tremeluziam e se alteravam
a cada gesto dela. Mack se perguntou se em algum momento ela
parava completamente de se mexer. Duvidou.
Papai inclinou-se para ficar com os olhos na mesma altura
dos de Mack.
— Você faz algumas perguntas interessantes. Chegaremos a
elas, prometo. Mas agora vamos aproveitar o café da manhã.
Mack assentiu de novo um pouco sem graça enquanto voltava
a atenção para a comida. Estava de fato com fome e havia muita
coisa apetitosa.
— Obrigado pelo café da manhã — disse a Papai, enquanto
Jesus e Sarayu ocupavam seus lugares.
— O quê? — reagiu ela num horror fingido. — Você não vai
abaixar a cabeça e fechar os olhos?
— Ela começou a andar em direção à cozinha, fazendo
pequenos muxoxos de reprovação. — O que está acontecendo com
este mundo? Meu bem, não há de quê. — Um instante depois
retornou trazendo outra tigela com uma comida fumegante que
desprendia um aroma maravilhoso e convidativo.
Passaram as tigelas uns para os outros e Mack ficou
fascinado enquanto olhava e ouvia Papai participar da conversa de
Jesus e Sarayu. Estavam falando algo sobre conciliar uma família
em crise, mas não foi o que eles falavam que atraiu Mack e sim
como eles se relacionavam. Nunca vira três pessoas
compartilharem sentimentos com tamanha simplicidade e beleza.
Cada um parecia mais interessado nos outros do que em si
mesmo.
— Então o que acha, Mack? — perguntou Jesus, fazendo um
gesto em sua direção.
— Não faço a mínima idéia do que vocês estão falando —
respondeu Mack com a boca cheia daquelas verduras saborosas.
— Mas adoro o modo como falam.
— Uau! — disse Papai, que vinha retornando da cozinha com
outro prato. — Vá com calma nessas verduras, rapaz. Se não tiver
cuidado, elas podem dar uma bela dor de barriga.
— Certo, tentarei me lembrar — disse Mack servindo-se do
prato que ela lhe oferecia. Depois, virando-se de novo para Jesus,
acrescentou: — Adoro o modo como vocês se tratam.
Certamente eu não esperaria que Deus fosse desse jeito.
— Como assim?
— Bom, sei que vocês são um só e coisa e tal, e que são três.
Mas vocês se tratam de uma forma tão amável! Um não manda
mais do que os outros dois?
Os três se entreolharam como se nunca tivessem pensado
nisso.
— Quero dizer — continuou Mack rapidamente —, sempre
pensei em Deus, o Pai, como uma espécie de chefe, e em Jesus
como o que seguia as ordens, vocês sabem, sendo obediente. Não
sei exatamente como o Espírito Santo se encaixa. Ele... quero
dizer, ela... ah... — Mack tentou não olhar para Sarayu enquanto
procurava as palavras. — Tanto faz, o Espírito sempre me pareceu
meio... é...
— Um Espírito livre? — sugeriu Papai.
— Exatamente, um Espírito livre, mas ainda assim sob a
orientação do Pai. Faz sentido?
Jesus olhou para Papai, tentando com alguma dificuldade
manter uma aparência séria.
— Faz sentido para você, Abba? Francamente, não tenho a
mínima idéia do que este homem está falando.
Papai franziu o rosto, como se estivesse se concentrando.
— Não, eu estava tentando entender, mas sinto muito. Para
mim isso não tem pé nem cabeça.
— Vocês sabem do que estou falando. — Mack ficou meio
frustrado. — Estou falando de quem está no comando. Vocês não
têm uma cadeia de comando?
— Cadeia de comando? Isso parece medonho! — disse Jesus.
— No mínimo opressivo — acrescentou Papai, enquanto os
outros dois começavam a rir.
Então, virando-se para Mack, cantou: — "Mesmo sendo
correntes de ouro, ainda são correntes."
— Ah, não se incomode com esses dois — interrompeu
Sarayu, estendendo a mão para confortá-lo. — Eles só estão
brincando com você. Na verdade, este é um assunto que
nos interessa.
Mack assentiu, aliviado e meio chateado por ter de novo
perdido o controle.
— Mackenzie, não existe conceito de autoridade superior
entre nós, apenas de unidade. Estamos num círculo de
relacionamento e não numa cadeia de comando. O que você
está vendo aqui é um relacionamento sem qualquer camada de
poder. Não precisamos exercer poder um sobre o outro porque
sempre estamos procurando o melhor. A hierarquia não faria
sentido entre nós. Na verdade, isso é um problema de vocês, não
nosso.
— Verdade? Como assim?
— Os humanos estão tão perdidos e estragados que para
vocês é quase incompreensível que as pessoas possam trabalhar
ou viver juntas sem que alguém esteja no comando.
— Mas qualquer instituição humana, desde as políticas até
as empresariais, até mesmo o casamento, é governada por esse
tipo de pensamento. É a trama do nosso tecido social — declarou
Mack.
— Que desperdício! — disse Papai, pegando o prato vazio e
indo para a cozinha.
— Esse é um dos motivos pelos quais é tão difícil para vocês
experimentar o verdadeiro relacionamento — acrescentou Jesus. —
Assim que montam uma hierarquia, vocês precisam de regras para
protegê-la e administrá-la, e então precisam de leis e da
aplicação das leis, e acabam criando algum tipo de cadeia de
comando que destrói o relacionamento, em vez de promovê-lo.
Raramente vocês vivem o relacionamento fora do poder.
A hierarquia impõe leis e regras e vocês acabam perdendo a
maravilha do relacionamento que nós pretendemos para vocês.
— Bom — disse Mack com sarcasmo, recostando-se na
cadeira. — Certamente parece que nos adaptamos muito bem a
isso.
Sarayu foi rápida em responder:
— Não confunda adaptação com intenção, ou sedução com
realidade.
— Então... ah, por favor, poderia me passar mais um pouco
dessa verdura? ... Então nós fomos seduzidos por essa
preocupação com a autoridade?
— De certo modo, sim! — respondeu Papai, passando o prato
de verduras para Mack com uma certa relutância. — Só estou
cuidando de você, filho.
Sarayu continuou:
— Quando vocês escolhem a independência nos
relacionamentos tornam-se perigosos uns para os outros. As
pessoas se tornam objetos a serem manipulados ou
administrados para a felicidade de alguém. A autoridade, como
vocês geralmente pensam nela, é meramente a desculpa que o forte
usa para fazer com que os outros se sujeitem ao que ele quer.
— Ela não é útil para impedir que as pessoas lutem
interminavelmente ou se machuquem?
— Às vezes. Mas num mundo egoísta também é usada para
infligir grandes danos.
— Mas vocês não a usam para conter o mal?
— Nós respeitamos cuidadosamente as suas escolhas e por
isso trabalhamos dentro dos seus sistemas, ao mesmo tempo que
procuramos libertá-los deles — continuou Papai. — A Criação foi
levada por um caminho muito diferente daquele que desejávamos.
Em seu mundo, o valor do indivíduo é constantemente medido em
comparação com a sobrevivência do sistema, seja ele político,
econômico, social ou religioso; na verdade, de qualquer sistema.
Primeiro uma pessoa, depois umas poucas e finalmente muitas
são facilmente sacrificadas pelo bem e pela permanência do
sistema. De uma forma ou de outra, isso está por trás de cada luta
pelo poder, de cada preconceito, de cada guerra e de cada abuso de
relacionamento. A "vontade de poder e independência" se tornou
tão disseminada que agora é considerada normal.
— E não é?
— É o paradigma humano — acrescentou Papai, após
retornar com mais comida. — É como água para os peixes, tão
natural que permanece sem ser vista e questionada. É a matriz,
uma trama diabólica em que vocês estão presos sem esperança,
mesmo que completamente inconscientes da sua existência.
Jesus continuou:
— Como glória máxima da Criação, vocês foram feitos à
nossa imagem. Se realmente tivessem aprendido a considerar que
as preocupações dos outros têm tanto valor quanto as suas, não
haveria necessidade de hierarquia.
Mack se recostou na cadeira, perplexo com as implicações do
que ouvia.
— Então vocês estão me dizendo que sempre que nós,
humanos, usamos o poder para nos proteger...
— Estão cedendo à matriz e não a nós — terminou Jesus:
E agora — exclamou Sarayu — completamos o círculo,
voltando a uma das minhas declarações iniciais: vocês, humanos,
estão tão perdidos e estragados que não conseguem compreender
um relacionamento sem hierarquia. Por isso acham que Deus se
relaciona dentro de uma hierarquia, tal como vocês. Mas não
somos assim.
— E como podemos mudar isso? Se abrirmos mão do poder e
da hierarquia, as pessoas simplesmente vão nos usar.
— Provavelmente sim. Mas não estamos pedindo que faça
isso com os outros, Mack.
Pedimos que faça conosco. Este é o único lugar onde isso
pode começar. Não vamos usar você.
— Mack — disse Papai com uma intensidade que o fez
escutar com muita atenção —, queremos compartilhar com você o
amor, a alegria, a liberdade e a luz que já conhecemos em nós.
Criamos vocês, os humanos, para estarem num relacionamento
de igual para igual conosco e para se juntarem ao nosso círculo de
amor. Por mais difícil que seja entender isso, tudo que aconteceu
está ocorrendo exatamente segundo esse propósito, sem violar
qualquer escolha ou vontade.
— Como você pode dizer isso diante de toda a dor deste
mundo, de todas as guerras e desastres que destroem milhares? —
A voz de Mack baixou até um sussurro. — E qual é o valor de uma
menininha ser assassinada por um tarado? — Ali estava de novo a
pergunta que abria um buraco a fogo em sua alma. — Vocês
podem não causar as coisas, mas certamente não as impedem.
— Mackenzie — respondeu Papai com ternura,
aparentemente não se ofendendo com a acusação —, há milhões
de motivos para permitir a dor, a mágoa e o sofrimento, em vez de
erradicá-los, mas a maioria desses motivos só pode ser entendida
dentro da história de cada pessoa. Eu não sou má. Vocês é que
abraçam o medo, a dor, o poder e os direitos em seus
relacionamentos. Mas suas escolhas também não são mais fortes
do que os meus propósitos, e eu usarei cada escolha que vocês
fizerem para o bem final e para o resultado mais amoroso.
Veja só — interveio Sarayu —, os humanos feridos centram
sua vida ao redor .de coisas que parecem boas para eles,
procurando compensação. Mas isso não irá preenchê-los nem
libertá-los. Eles são viciados em poder, ou na ilusão de segurança
que o poder oferece. Quando acontece um desastre, essas mesmas
pessoas vão se voltar contra os falsos poderes nos quais
confiavam. Em seu desapontamento, se suavizam com relação
a mim ou se tornam mais ousados em sua independência. Se você
ao menos pudesse ver como tudo isso terminará e o que
alcançaremos sem violar qualquer vontade humana, entenderia.
Um dia entenderá.
— Mas o custo! — Mack estava aparvalhado. — Vejam o
custo, toda a dor, todo o sofrimento, tudo que é tão terrível e mau.
— Ele parou e olhou para a mesa. — E vejam o que custou para
vocês. Valeu a pena?
— Sim! — foi a resposta unânime e jubilosa dos três.
— Mas como podem dizer isso? Desse jeito parece que o fim
justifica os meios, que para obter o que querem vocês são capazes
de qualquer coisa, mesmo que isso custe a vida de bilhões de
pessoas.
— Mackenzie. — Era a voz de Papai outra vez, especialmente
gentil e terna. — Você realmente ainda não entende. Tenta dar
sentido ao mundo em que vive baseado numa visão pequena e
incompleta da realidade. É como olhar um desfile pelo
buraco minúsculo da dor, da mágoa, do egocentrismo e do poder e
acreditar que você está sozinho e é insignificante. Tudo isso
contém mentiras poderosas. Você vê a dor e a morte como males
definitivos, e Deus como o traidor definitivo, ou talvez, na melhor
das hipóteses, como fundamentalmente indigno de confiança. Você
dita os termos, julga meus atos e me declara culpado.
Parou um instante e depois prosseguiu:
— A verdadeira falha implícita de sua vida, Mackenzie, é que
você não acha que eu sou bom. Se soubesse que eu sou bom e que
tudo — os meios, os fins e todos os processos das vidas individuais
— é coberto por minha bondade, mesmo que nem sempre entenda
o que estou fazendo, confiaria em mim. Mas não confia.
— Não? — perguntou Mack, mas não era realmente uma
pergunta. Era uma declaração, e ele sabia disso. Os outros
pareciam saber também e a mesa permaneceu em silêncio.
Sarayu disse:
— Mackenzie, você não pode "produzir" confiança, assim
como não pode "fazer" humildade. Ela existe ou não. A confiança é
fruto de um relacionamento em que você sabe que é amado. Como
não sabe que eu o amo, não pode confiar em mim.
De novo se fez silêncio. Por fim Mack olhou para Papai e
disse:
— Não sei como mudar isso.
— Você não pode mudar, pelo menos sozinho, mas juntos
vamos ver essa mudança acontecer. Por enquanto só quero que
você esteja comigo e descubra que nosso relacionamento não tem a
ver com seu desempenho nem com qualquer obrigação de
me agradar. Não sou um valentão nem uma divindade egocêntrica
e exigente que insiste que as coisas sejam feitas do jeito que eu
quero. Sou boa e só desejo o que é melhor para você. Não é pela
culpa, pela condenação ou pela coerção que você vai encontrar
isso. É apenas praticando um relacionamento de amor. E eu amo
você.
Sarayu se levantou da mesa e olhou diretamente para Mack.
— Mackenzie, se você quiser, eu gostaria que viesse me
ajudar no jardim. Há coisas que preciso fazer lá antes da
celebração de amanhã. Podemos continuar nossa conversa lá fora,
por favor?
— Claro — respondeu Mack, levantando-se. — Um último
comentário — ele acrescentou. — Simplesmente não consigo
imaginar um resultado final que justifique tudo isso.
Mackenzie. — Papai se levantou da cadeira e rodeou a mesa
para lhe dar um abraço — apertado. — Não estamos justificando.
Estamos libertando.


9. HÁ MUITO TEMPO, NUM JARDIM MUITO, MUITO
DISTANTE
Mesmo que encontrássemos outro Éden,
não teríamos condição de desfrutá-lo perfeitamente
nem de ficar lá para sempre.
— Henry Van Dyke
Mack acompanhou Sarayu pela porta dos fundos do melhor
modo que pôde e seguiu pelo caminho, passando pela aléia de
pinheiros. Andar atrás de um ser daqueles era como seguir
um raio de sol. A luz parecia se irradiar dela e refletir sua presença
numa infinidade de lugares ao mesmo tempo.
Mack concentrou-se no caminho. Enquanto rodeava as
árvores, viu pela primeira vez um magnífico jardim e pomar,
contido num terreno que não teria mais de 4 mil metros
quadrados.
Mack imaginara um jardim em estilo inglês, perfeitamente
cuidado e organizado. Não era assim!
Era um caos de cores. Jorros ofuscantes de flores se
espalhavam em meio a legumes, verduras e ervas plantados
aleatoriamente, um tipo de vegetação que Mack nunca vira.
Era confuso, espantoso e incrivelmente lindo.
— Para mim parece uma confusão — murmurou Mack
baixinho.
Sarayu parou e se virou para Mack, com o rosto glorioso.
— Mack! Obrigada! Que elogio maravilhoso! — Ela olhou o
jardim ao redor. — É exatamente isso, uma confusão.
Sarayu se aproximou de uma erva, arrancou alguns brotos e
virou-se para Mack.
— Papai não estava brincando no café da manhã — disse, a
voz parecendo mais música do que qualquer outra coisa. — É
melhor você mastigar essa erva por alguns minutos. Vai se
contrapor ao "movimento" natural daquelas verduras que você
comeu demais, se é que me entende.
Mack deu um risinho enquanto aceitava e, com algum
cuidado, começou a mastigar.
— É, mas o gosto daquelas verduras era bom demais! — Seu
estômago havia começado a se revirar um pouco. O gosto da erva
não era desagradável: uma sugestão de hortelã e alguns outros
temperos que ele provavelmente já havia cheirado antes, mas que
não podia identificar. Enquanto andavam, seu estômago foi se
aplacando e ele relaxou.
Sem dizer uma palavra, tentou seguir Sarayu de um lugar a
outro no jardim, mas acabou se distraindo com as incríveis
misturas de cores. Era tudo maravilhosamente espantoso e
inebriante.
Sarayu parecia muito concentrada numa tarefa específica.
Oscilava como um vento brincalhão e ele jamais sabia exatamente
para onde ela estava soprando. Achava bastante difícil
acompanhá-la.
Ela se movia pelo jardim cortando várias flores e ervas e
entregando para Mack carregar. O buquê improvisado ficou
bastante grande, uma linda massa aromática diferente de qualquer
coisa que ele já havia cheirado e tão forte que quase dava
para sentir o gosto.
Depositaram o buquê final dentro de uma pequena oficina
que Mack não havia notado antes, como se estivesse enterrada
num adensamento de mato selvagem.
— Uma tarefa terminada — anunciou Sarayu — e outra pela
frente.
Entregou a Mack uma pá, um ancinho, uma foice e um par
de luvas e flutuou por uma trilha coberta de mato que parecia ir
em direção à extremidade mais distante do jardim. Pelo caminho,
às vezes diminuía a velocidade para tocar uma planta ou uma flor,
sempre cantarolando a música repetitiva que havia cativado Mack
na tarde anterior. Ele seguia, obediente, levando as ferramentas.
Quando Sarayu parou, Mack quase chocou-se com ela. De
algum modo Sarayu havia mudado; agora vestia roupas de
trabalho: jeans com estampados loucos, uma camisa de trabalho e
luvas. Estavam num local aberto, rodeado por pereiras e cerejeiras,
no meio do qual havia uma cascata de arbustos com flores roxas e
amarelas de tirar o fôlego.
— Mackenzie — ela apontou diretamente para o incrível
trecho florido —, gostaria que você me ajudasse a limpar todo esse
terreno. Há uma coisa muito especial que quero plantar aqui
amanhã, e temos de deixar tudo pronto. — Olhou para Mack e
estendeu a mão para a foice.
— Você não pode estar falando sério! Isso é tão maravilhoso!
Mas Sarayu pareceu não notar. Sem mais explicações, virouse
e começou a destruir o espetáculo artístico das flores. Fazia
cortes limpos, aparentemente sem esforço. Mack deu de ombros,
calçou as luvas e começou a amontoar em pilhas o estrago que ela
estava fazendo. Lutava para acompanhar o ritmo. Para ela talvez
não fosse um esforço, mas para ele era um trabalho estafante.
Vinte minutos depois, todas as plantas estavam cortadas junto às
raízes e o terreno parecia uma ferida no jardim. Os antebraços
de Mack estavam riscados com marcas de arranhões dos galhos
que havia empilhado. Estava sem fôlego e suando, feliz por
terminar. Sarayu parou, examinando o trabalho.
— Não é empolgante? — perguntou.
— Já me empolguei com coisas melhores — retrucou Mack,
sarcástico.
— Ah, Mackenzie, se você soubesse. Não é o trabalho, e sim o
propósito que o torna especial. E — ela sorriu — é o único tipo que
eu faço.
Mack se apoiou no ancinho, olhou o jardim ao redor e os
vergões vermelhos nos braços.
— Sarayu, sei que você é o Criador. Mas você fez as plantas
venenosas, as urtigas e os mosquitos também?
— Mackenzie — respondeu Sarayu, parecendo se mover junto
com a brisa. — Para fazer algo diferente, um ser criado tem que
partir do que já existe.
— Então você está dizendo que...
— ... criei tudo que existe, inclusive as coisas que você
considera ruins — completou Sarayu. — Mas, quando as criei, elas
eram boas, porque é assim que eu sou. — Ela pareceu quase se
dobrar numa reverência antes de retomar sua tarefa.
— Mas — continuou Mack, insatisfeito — então por que
tantas coisas "boas" ficaram "ruins"?
Agora Sarayu parou antes de responder.
— Vocês, humanos, são verdadeiramente cegos em relação ao
seu lugar na Criação. Escolheram o caminho devastado da
independência e não compreendem que estão arrastando toda a
Criação com vocês.
Ela balançou a cabeça e o vento sussurrou pelas árvores
próximas.
— É muito triste, mas não será assim para sempre.
Os dois desfrutaram alguns instantes de silêncio, enquanto
Mack contemplava as várias plantas ao alcance de sua vista.
— Então existem plantas venenosas neste jardim? —
perguntou.
— Ah, sim — exclamou Sarayu. — São algumas das minhas
prediletas. Há certas plantas perigosas ao toque, como esta aqui.
— Ela estendeu a mão para um arbusto próximo e arrancou algo
que parecia um graveto morto com apenas algumas folhas
minúsculas que brotavam da haste. Entregou a Mack, que
levantou as duas mãos evitando tocá-lo.
Sarayu riu.
— Eu estou aqui, Mack. Há ocasiões em que é seguro tocar e
ocasiões em que é preciso tomar precauções. Esta é a maravilha e
a aventura da exploração, uma parte do que vocês chamam de
ciência: discernir e descobrir o que nós escondemos.
— Então por que esconderam?
— Por que as crianças adoram brincar de esconde-esconde?
Pergunte a qualquer pessoa que tenha paixão por explorar,
descobrir e criar. Escolhemos esconder tantas maravilhas de vocês
como um ato de amor, um verdadeiro presente dentro do processo
da vida.
Mack estendeu a mão cautelosamente e pegou o galho
venenoso.
— Se você não tivesse me dito que era seguro tocar, ele teria
me envenenado?
— Claro! Mas, se eu o der para você tocar, é diferente.
— Então por que criar plantas venenosas? — perguntou
Mack, devolvendo o galho.
— Sua pergunta parte do princípio de que o veneno é algo
ruim, uma coisa sem propósito. Muitas das supostas plantas
ruins, como esta, contêm propriedades incríveis de curar ou são
necessárias para criar maravilhas magníficas quando combinadas
com outros elementos. Os humanos apressam-se em declarar que
algo é bom ou ruim sem saber de fato.
Sarayu estendeu uma pá pequena para Mack e pegou o
ancinho.
— Para preparar este terreno, devemos arrancar as raízes de
todas as plantas maravilhosas que estavam aqui. É trabalho duro,
mas vale a pena. Se as raízes estiverem aí, prejudicarão as
sementes que iremos plantar.
— Certo — grunhiu Mack, enquanto os dois se ajoelhavam no
terreno recém-limpo. De algum modo Sarayu conseguia enfiar as
mãos mais fundo no chão e encontrar as pontas das raízes,
trazendo-as sem esforço à superfície. Deixou as mais curtas para
Mack, que usava a pazinha para arrancá-las. Depois jogavam as
raízes numa das pilhas que Mack havia juntado antes.
— Mais tarde vou queimar isso — disse ela.
— Antes você estava falando que os humanos declaram que
as coisas são boas ou ruins sem conhecer? — perguntou Mack,
sacudindo a terra de uma raiz.
— É. Estava falando especificamente da árvore do
conhecimento do bem e do mal.
— A árvore do conhecimento do bem e do mal?
— Exato! — declarou ela. — E agora, Mackenzie, você está
começando a entender por que comer o fruto mortal daquela
árvore foi tão devastador para a sua raça.
— Na verdade eu nunca havia pensado muito nisso — disse
Mack, intrigado. — Então houve um jardim de verdade? Quer
dizer, o Éden?
— Claro. Eu lhe disse que tenho uma queda por jardins.
— Isso vai incomodar algumas pessoas. Tenho alguns amigos
que não vão gostar disso — observou Mack, enquanto lutava com
uma raiz teimosa.
— Não faz mal. Eu gosto muito deles.
— Estou surpreso — disse Mack com um certo sarcasmo e
sorriu para ela. Cravou a pá na terra, pegando com a mão a raiz
que estava por cima. — Então fale da árvore do conhecimento do
bem e do mal.
— É disso que estávamos falando no café da manhã. Primeiro
quero fazer uma pergunta a você. Quando algo lhe acontece, como
você determina se é uma coisa boa ou ruim?
Mack pensou um momento antes de responder.
— Bom, na verdade nunca pensei nisso. Acho que eu diria
que algo é bom quando eu gosto, quando faz com que eu me sinta
bem ou me dá um sentimento de segurança. Por outro lado, eu
diria que uma coisa é ruim se me causa dor ou custa algo que eu
quero.
— Então é bastante subjetivo?
— Acho que sim.
— E até que ponto você confia em sua capacidade de
discernir o que é bom ou o que é ruim para você?
— Para ser honesto, acho que tenho razão de ficar com raiva
quando alguém ameaça o que eu considero "bom", o que eu acho
que mereço. Mas não sei realmente se existe algum fundamento
lógico para decidir o que é bom ou ruim, a não ser o modo como
algo ou alguém me afeta. — Ele parou para descansar e recuperar
o fôlego. — Tudo parece relacionado comigo e com meus
interesses, acho. E minha ficha também não é das melhores.
Algumas coisas que eu inicialmente achava boas acabaram
sendo terrivelmente destrutivas, e outras que eu achava ruins,
bem, acabaram sendo...
Ele hesitou antes de finalizar o pensamento, mas Sarayu o
interrompeu.
— Então é você que determina o que é bom e o que é ruim.
Você se torna o juiz. E, para tornar as coisas ainda mais confusas,
aquilo que você determina que é bom acaba mudando com o tempo
e as circunstâncias. E, pior ainda, há bilhões de vocês, cada um
determinando o que é bom e o que é ruim. Assim, quando o seu
bom e o seu ruim se chocam com os do vizinho, seguem-se brigas,
discussões e até guerras.
As cores que se moviam dentro de Sarayu estavam
escurecendo enquanto ela falava, pretos e cinzas se misturando e
sombreando os tons de arco-íris.
— E, se não há uma realidade do bem que seja absoluta, você
perde qualquer base para avaliar. É apenas linguagem e podemos
muito bem trocar a palavra bem pela palavra mal.
— Dá para perceber que isso pode ser um problema —
concordou Mack.
— Um problema? — disse Sarayu, quase com rispidez,
enquanto se levantava e o encarava. Ela estava perturbada, mas
Mack sabia que isso não era contra ele. — De fato! A escolha de
comer daquela árvore rasgou o universo, divorciando o espiritual
do físico. Eles morreram expelindo no hálito de sua escolha o
próprio hálito de Deus. Eu diria que isso é um problema!
Na intensidade de sua fala, Sarayu havia se alçado
lentamente do chão. Mas agora, enquanto baixava ao solo, sua voz
chegou mais nítida.
— Aquele foi um dia de grande tristeza.
Nenhum dos dois falou durante quase 10 minutos enquanto
trabalhavam. À medida que continuava arrancando raízes e
jogando-as na pilha, a mente de Mack trabalhava para entender as
implicações do que Sarayu havia dito. Por fim ele rompeu o
silêncio.
— Agora posso ver — confessou — que gastei a maior parte
do meu tempo e da minha energia tentando adquirir o que eu
achava que era bom, como a segurança financeira, a saúde, a
aposentadoria, ou sei lá o quê. E gastei uma quantidade gigantesca
de energia e preocupação temendo o que determinei que era mau.
— Mack deu um suspiro fundo.
— Quanta verdade há nisso! — disse Sarayu com gentileza. —
Lembre-se. Isso permite que vocês brinquem de Deus em sua
independência. Por essa razão, uma parte de vocês prefere não me
ver. E vocês não precisam de mim para criar sua lista do que é
bom e ruim. Mas precisam de mim se tiverem qualquer desejo de
parar com essa ânsia tão insana de independência.
— Então há algum modo de consertar?
— Você deve desistir de seu direito de decidir o que é bom e
ruim e escolher viver apenas em mim. É um comprimido difícil de
engolir. Para isso você deve me conhecer o bastante, a ponto de
confiar em mim e aprender a se entregar à minha bondade
inerente.
Mack teve a impressão de que Sarayu se virou para ele.
— Mackenzie, o mal é uma palavra que usamos para
descrever a ausência de Deus, assim como usamos a palavra
escuridão para descrever a ausência de Luz, ou morte
para descrever a ausência de Vida. Tanto o mal quanto a escuridão
só podem ser entendidos em relação à Luz e ao Bem. Eles não têm
existência real. Eu sou a Luz e eu sou o Bem. Sou Amor e não há
escuridão em mim. A Luz e o Bem existem realmente. Assim,
afastar-se de mim irá mergulhar você na escuridão. Declarar
independência resultará no mal, porque, separado de mim, você só
pode contar consigo mesmo. Isso é morte, porque você se separou
de mim, que sou a Vida.
— Uau! — exclamou Mack, sentando-se por um momento. —
Isso real mente ajuda. Mas também posso ver que abrir mão dos
meus direitos de independência não será um processo fácil.
Poderia significar que...
Sarayu interrompeu a frase dele outra vez.
— ... que de alguma forma o bem pode ser a presença do
câncer ou a perda de ganhos financeiros, ou mesmo de uma vida.
— É, mas diga isso à pessoa com câncer ou ao pai cuja filha
morreu — reagiu Mack, um pouco mais sarcasticamente do que
havia pretendido.
— Ah, Mackenzie. Você acha que nós não pensamos neles?
Cada um deles era o centro de outra história que não é contada.
— Mas — Mack podia sentir seu controle se esvaindo
enquanto cravava a pá com força — Missy não tinha o direito de
ser protegida?
— Não, Mack. Uma criança é protegida porque é amada e não
porque tem o direito de ser protegida.
Isso o fez parar. De algum modo, o que Sarayu acabara de
dizer pareceu virar o mundo de cabeça para baixo e ele lutou para
encontrar um ponto de apoio. Sem dúvida devia haver alguns
direitos aos quais ele poderia legitimamente se agarrar.
— Mas e...
— Os direitos são o que os sobreviventes procuram para não
terem de trabalhar os relacionamentos — interveio ela.
— Mas, se eu abrir mão...
— Então começará a entender a maravilha e a aventura de
viver em mim — interrompeu ela de novo.
Mack estava ficando frustrado. Falou mais alto:
— Mas eu não tenho o direito de...
— De terminar uma frase sem ser interrompido? Não, não
tem. Na realidade, não. Mas, enquanto você achar que tem,
certamente ficará irritado quando alguém o interromper, mesmo
que seja Deus.
Ele ficou perplexo e se levantou, encarando-a, sem saber se
tinha um ataque de fúria ou se ria. Sarayu sorriu para ele.
— Mackenzie, Jesus não se agarrou a nenhum direito.
Tornou-se um servo por livre vontade e vive seu relacionamento
com Papai. Abriu mão de tudo, de modo que ao longo de sua vida
independente deixou uma porta aberta que permitiria a você viver
suficientemente livre para abdicar de seus direitos.
Nesse momento, Papai desceu pelo caminho carregando duas
sacolas de papel. Sorria enquanto se aproximava.
— Bem, pelo que vejo, vocês dois estão tendo uma conversa.
— Ela piscou para Mack.
— A melhor! — exclamou Sarayu. — E adivinhe só! Ele disse
que nosso jardim era uma confusão. Não é perfeito?
As duas deram um largo sorriso para Mack, que ainda não
tinha certeza absoluta de que não estavam brincando com ele. Sua
raiva começou a diminuir, mas ainda podia sentir o rosto ardendo.
As duas pareceram não notar.
Sarayu estendeu a mão e deu um beijo no rosto de Papai.
— Como sempre, sua noção de tempo é perfeita. Tudo que eu
precisava que Mack fizesse aqui está terminado. — Virou-se para
ele. — Mackenzie, você é um deleite! Obrigada por seu trabalho
duro.
— Na verdade, não fiz grande coisa — ele respondeu em tom
de desculpa. — Quero dizer, olhe essa bagunça. — Seu olhar
passou pelo jardim que os rodeava. — Mas é realmente lindo e
pleno de você, Sarayu. Mesmo que pareça que ainda resta um
monte de trabalho a ser feito, sinto-me estranhamente à vontade e
tranqüilo aqui.
As duas se entreolharam e riram.
Sarayu foi na direção dele até invadir seu espaço pessoal.
— E não é de espantar, Mackenzie, porque este jardim é a
sua alma. Esta confusão é você! Juntos, você e eu estivemos
trabalhando com um propósito no seu coração. E ele é selvagem,
lindo e perfeitamente em evolução. Para você parece
uma confusão, mas eu vejo um padrão perfeito emergindo,
crescente e vivo.
O impacto das palavras de Sarayu quase fez desmoronar
todas as reservas de Mack.
Ele olhou de novo o jardim das duas — seu jardim —, e era
mesmo uma confusão, mas ao mesmo tempo incrível e
maravilhoso. E, além disso, Papai estava aqui e Sarayu adorava
a confusão. Era quase demais para compreender e de novo suas
emoções cuidadosamente guardadas ameaçaram se derramar.
— Mackenzie, Jesus gostaria de levá-lo num passeio, se você
quiser ir. Preparei um lanche para o caso de ficarem com fome.
Deixo-o livre até a hora do chá.
Enquanto se virava para pegar as sacolas do lanche, Mack
sentiu Sarayu passar, beijando seu rosto, mas não a viu ir embora.
Sentiu que podia vê-la avançar, como se fosse o vento, as plantas
se dobrando, uma de cada vez, parecendo cultuá-la. Quando se
virou de volta, Papai também havia sumido e por isso foi na
direção da carpintaria para ver se conseguia encontrar Jesus.
Parecia que os dois tinham um compromisso.


10. ANDANDO SOBRE A ÁGUA
Novo mundo — grande horizonte.
Abra os olhos e veja que é verdade.
Novo mundo —do outro lado das assustadoras
ondas azuis.
— David Wilcox
Jesus terminou de lixar o último canto do que parecia um
pequeno baú que estava numa bancada da carpintaria. Passou os
dedos pela borda lisa, sorriu satisfeito e pousou a lixa. Saiu pela
porta espanando o pó do jeans e da camiseta enquanto Mack se
aproximava.
— Olá, Mack! Eu estava dando os últimos retoques no meu
projeto para amanhã. Gostaria de dar uma volta?
Mack pensou no tempo que haviam passado juntos na
véspera sob as estrelas.
— Se você vai, eu gostaria, sim — respondeu. — Por que
vocês vivem falando sobre amanhã?
— É um grande dia para você, um dos motivos pelos quais
está aqui. Vamos. Há um lugar especial que quero lhe mostrar, do
outro lado do lago, e o panorama é indescritível. De lá se podem
ver alguns dos picos mais altos.
— Deve ser fantástico! — respondeu Mack entusiasmado.
— Parece que você pegou o lanche, então podemos ir.
Em vez de se desviar para algum lado do lago, onde devia
haver uma trilha, Jesus foi direto ao cais. O dia estava luminoso e
lindo. O sol esquentava a pele, mas não demais, e uma brisa fresca
e perfumada acariciava o rosto dos dois, suave e amorosamente.
Mack imaginou que pegariam uma das canoas presas às
estacas do cais e ficou surpreso quando Jesus não hesitou ao
passar pela última, indo diretamente para o fim do píer. Ao chegar
no final, ele se virou para Mack e riu.
— Primeiro você — disse com um floreio e uma reverência.
— Está brincando, não é? — reagiu Mack. — Achei que íamos
andar e não nadar.
— E vamos. Só pensei que atravessando o lago levaria menos
tempo do que rodeando.
— Não sou um nadador fantástico e, além disso, a água
parece muito fria — reclamou Mack.
— Bom — Jesus cruzou os braços —, nós dois sabemos que
você é um nadador muito capaz e que já foi salva-vidas. A água
está fria e o lago é fundo. Mas não estou falando em nadar. Quero
atravessar andando com você.
Mack finalmente se deu conta do que Jesus estava sugerindo.
Tratava-se de andar sobre a água. Antecipando sua hesitação,
Jesus afirmou: — Vamos, Mack. Se Pedro conseguiu...
Mack riu nervosamente. Para ter certeza, perguntou de novo:
— Você quer que eu ande sobre a água até o outro lado. É
isso que está dizendo, não é?
— Você entende rápido, Mack. Tenho certeza de que ninguém
consegue enganá-lo. Venha, é divertido! — Ele riu.
Mack foi até a borda do cais e olhou para baixo. A água batia
suavemente apenas uns 30 centímetros abaixo de onde ele estava,
mas era como se fossem 30 metros. A distância parecia enorme.
Mergulhar seria fácil, ele fizera isso mil vezes, mas como se desce
de um cais para a superfície da água? Olhou para Jesus, que
ainda estava rindo.
— Pedro teve o mesmo problema: como sair do barco? É como
descer de um degrau de escada. Nada de mais.
De novo Mack olhou para a água e de volta para Jesus.
— Então por que é tão difícil para mim?
— Diga do que você tem medo, Mack.
— Bem, vejamos. Do que tenho medo? Bem, tenho medo de
parecer idiota. Tenho medo de você estar se divertindo às minhas
custas e de afundar como uma pedra. Imagino que...
— Exatamente — interrompeu Jesus. — Você imagina. A
imaginação é uma capacidade poderosa! É um poder que o torna
muito parecido conosco. Mas, sem sabedoria, a imaginação é uma
professora cruel. Quero lhe fazer uma pergunta: você acha que
os humanos foram criados para viver no presente, no passado ou
no futuro?
— Bom — disse Mack, hesitando. — Acho que a resposta
mais óbvia é que fomos criados para viver no presente. Estou
errado?
Jesus deu um risinho.
— Relaxe, Mack, isso não é um teste, é uma conversa. Você
está corretíssimo, por sinal. Mas agora me diga onde você passa a
maior parte do tempo em sua imaginação: no presente, no passado
ou no futuro?
Mack pensou um momento antes de responder.
— Acho que eu passo muito pouco tempo no presente. Passo
grande parte dele no passado, mas na maior parte do tempo estou
tentando adivinhar o futuro.
— Você não é diferente da maioria das pessoas. Quando
estou com vocês, vivo no presente. Não no passado, se bem que
muita coisa pode ser lembrada e aprendida ao se olhar para trás,
mas somente para uma visita, não para uma estada demorada.
E certamente não vivo no futuro que você visualiza ou imagina.
Mack, você percebe que sua imaginação do futuro, que é quase
sempre ditada por algum tipo de medo, raramente me coloca lá
com você, se é que me coloca?
De novo Mack parou e pensou. Era verdade. Ele passava um
bocado de tempo se aborrecendo e se preocupando com o futuro, e
em sua imaginação o futuro geralmente era muito sombrio,
deprimente e mesmo horrível. E Jesus também estava correto
ao dizer que, do modo como Mack imaginava o futuro, Deus estava
sempre ausente.
— Por que faço isso? — perguntou Mack.
É sua tentativa desesperada de conseguir algum controle
sobre algo que você não pode controlar. É impossível ter poder
sobre o futuro, porque ele não é real, e jamais será.
Você tenta brincar de Deus imaginando que o mal que teme
pode se tornar realidade e depois tenta fazer planos para evitar
aquilo que teme.
— É basicamente o que Sarayu esteve dizendo. Então por que
tenho tanto medo da vida?
— Porque não acredita. Não sabe que nós o amamos. A
pessoa que vive dominada pelos medos não encontra liberdade no
meu amor. Não estou falando de medos racionais, ligados a perigos
reais, e sim de medos imaginários, e especialmente da projeção
desses medos no futuro. À medida que dá lugar a esses medos,
você não acredita que eu sou bom, nem sabe, no fundo do seu
coração, que eu o amo. Você pode até falar disso, mas não sabe.
Mack olhou de novo para a água e soltou um suspiro enorme,
que saiu do fundo da alma.
— Há um longo espaço para eu percorrer.
— Só uns 30 centímetros, é o que me parece — riu Jesus,
pondo a mão no ombro de Mack. Ele só precisava disso para
descer do cais. Para tentar ver a água como sólida e não se
atrapalhar com o movimento dela, olhou para a margem distante e
levantou os sacos do lanche.
O pouso foi mais suave do que ele havia pensado. Seus
sapatos ficaram molhados no mesmo instante, mas a água não
subiu nem mesmo até os tornozelos. O lago ainda se movia ao seu
redor e ele quase perdeu o equilíbrio por causa disso. Era
estranho.
Olhando para baixo, parecia que seus pés estavam sobre algo
sólido, mas invisível.
Virou-se e viu Jesus ao seu lado segurando os sapatos e as
meias numa das mãos e sorrindo.
— Nós sempre tiramos os sapatos e as meias antes — disse
ele rindo.
Mack balançou a cabeça rindo também enquanto se sentava
de novo na beira do cais.
— Acho que vou fazer isso.
Tirou os sapatos, espremeu as meias e enrolou as pernas da
calça.
Partiram levando os calçados e as sacolas e caminharam para
a margem oposta, a cerca de 800 metros de distância. A água era
fresca e revigorante e fazia subir arrepios pela coluna.
Caminhar sobre a água com Jesus parecia o modo mais
natural de atravessar um lago, e Mack ria de orelha a orelha só de
pensar no que estava fazendo.
— Isso é absolutamente ridículo e impossível, você sabe —
exclamou finalmente.
— Claro — confirmou Jesus, rindo também.
Chegaram rapidamente à outra margem e Mack parou pouco
antes de atingi-la. À esquerda viu uma linda cachoeira se
derramando pela borda de um penhasco e caindo até o lago. Ao
lado da cachoeira havia uma campina cheia de flores selvagens
que se espalhavam ao acaso, semeadas pelo vento. Tudo era
espantoso e Mack ficou um momento absorto. Uma imagem de
Missy relampejou em sua mente, mas não se fixou.
Uma praia de pedrinhas esperava-os e, atrás dela, uma
floresta densa e rica erguia-se até a base de uma montanha
encimada pela brancura da neve recém-caída. Mack saiu da água
para as pedras pequenas, indo cautelosamente em direção a um
tronco tombado. Ali sentou-se, torceu as meias de novo e colocouas
ao lado dos sapatos para secar ao sol de quase meio-dia.
Só então olhou para o outro lado do lago. A beleza era
estonteante. Podia ver a cabana, com a fumaça subindo
preguiçosamente da chaminé de tijolos vermelhos delineada contra
os verdes do pomar e da floresta. Fazendo tudo parecer minúsculo,
uma enorme cordilheira pairava acima e atrás, como sentinela
montando guarda. Mack sentou-se ao lado de Jesus e impregnouse
da sinfonia visual.
— Você faz um grande trabalho! — disse baixinho.
— Obrigado, Mack, e você viu muito pouco. Por enquanto, a
maior parte das coisas que existem no universo só será vista e
desfrutada por mim como telas especiais guardadas nos fundos do
ateliê de um pintor. Mas um dia... E você pode imaginar o
que seria se a Terra não estivesse em guerra, lutando tanto para
simplesmente sobreviver?
— O que você quer dizer exatamente?
Nossa Terra é como uma criança que cresceu sem pais, não
tendo ninguém para guiá-la e orientá-la. — Enquanto Jesus falava,
sua voz se intensificava numa angústia contida. — Alguns
tentaram ajudá-la, mas a maioria procurou simplesmente usá-la.
Os seres humanos, que receberam a tarefa de guiar amorosamente
o mundo, em vez disso o saquearam sem qualquer consideração. E
pensaram pouco nos próprios filhos, que vão herdar sua falta de
amor. Por isso usam e abusam da Terra e, quando ela estremece
ou reage, se ofendem e levantam os punhos contra Deus.
— Você é ecologista? — perguntou Mack, com um certo tom
de acusação.
— Esta imensa bola verde-azulada no espaço negro, cheia de
beleza mesmo agora, espancada, abusada e linda.
— Conheço esta música. Você deve se importar muito com a
Criação.
— Bom, essa bola verde-azulada no espaço negro pertence a
mim — declarou Jesus enfaticamente.
Depois de um momento eles abriram as sacolas do lanche.
Papai as enchera de sanduíches e guloseimas e os dois comeram
com grande apetite.
— Então por que vocês não consertam? — perguntou Mack,
mastigando o sanduíche. — Quero dizer, a Terra.
— Por que nós a demos para vocês.
— Não podem pegá-la de volta?
— Claro que poderíamos, mas então a história acabaria antes
de ser consumada.
Mack deu um olhar vazio para Jesus.
— Já notou que, mesmo que me chamem de Senhor e Rei, eu
realmente nunca agi desse modo com vocês? Nunca assumi o
controle de suas escolhas nem os obriguei a fazer nada, mesmo
quando o que estavam fazendo era destrutivo para vocês mesmos e
para os outros?
Mack olhou de volta para o lago antes de responder.
— Eu preferiria que às vezes você assumisse o controle. Teria
economizado um bocado de dor para mim e para as pessoas de
quem eu gosto.
Forçar minha vontade sobre a de vocês é exatamente o que o
amor não faz. Os relacionamentos verdadeiros são marcados pela
aceitação, mesmo quando suas escolhas não são úteis nem
saudáveis. Esta é a beleza que você vê no meu relacionamento
com Abba e Sarayu. Nós somos de fato submetidos uns aos outros,
sempre fomos e sempre seremos. Papai é tão submetida a mim
quanto eu a ela, ou Sarayu a mim, ou Papai a ela.
Submissão não tem a ver com autoridade e não é obediência.
Tem a ver com relacionamentos de amor e respeito. Na verdade
somos igualmente submetidos a você.
Mack ficou surpreso.
— Como pode ser? Por que o Deus do universo quereria se
submeter a mim?
— Porque queremos que você se junte a nós em nosso círculo
de relacionamento. Não quero escravos, quero irmãos e irmãs que
compartilhem a vida comigo.
— E é assim que você quer que nós amemos uns aos outros,
não é? Quero dizer, entre maridos e esposas, pais e filhos. Em
qualquer relacionamento.
— Exato! Quando sou sua vida, a submissão é a expressão
mais natural do meu caráter e da minha natureza, e será a
expressão mais natural de sua nova natureza dentro
dos relacionamentos.
— E o que eu mais queria era um Deus que simplesmente
consertasse tudo para que ninguém se ferisse. — Mack balançou a
cabeça ao se dar conta disso. — Mas não sou bom no campo dos
relacionamentos, não sou como Nan.
Jesus terminou de comer o sanduíche, fechou o saco do
lanche e colocou-o ao lado, no tronco. Limpou algumas migalhas
presas ao bigode e à barba curta. Depois, pegando um pedaço de
pau ali perto, começou a desenhar na areia, enquanto continuava:
— Isso é porque, como a maioria dos seres humanos, você
procura realizar-se pelos seus feitos, e Nan, como a maioria das
mulheres, pelos relacionamentos. É mais naturalmente a
linguagem dela. — Jesus parou para contemplar uma águiapescadora
mergulhar no lago a menos de 20 metros deles e, a
seguir, lentamente elevar-se com as garras segurando uma grande
truta que ainda lutava para escapar.
— Isso significa que eu não tenho saída? Realmente quero o
que vocês três compartilham, mas não faço idéia de como chegar
lá.
— Há muita coisa obstruindo o seu caminho agora, Mack,
mas você não precisa continuar vivendo assim.
— Sei que isso é mais verdadeiro agora que Missy se foi, mas
nunca foi fácil para mim.
— Você não está simplesmente lidando com o assassinato de
Missy. Há uma reviravolta maior que torna difícil compartilhar da
nossa vida. O mundo está partido porque no Éden vocês
abandonaram o relacionamento conosco para afirmar a
própria independência. A maioria dos humanos expressou isso
voltando-se para o trabalho das mãos e para o suor do rosto em
busca da identidade, do valor e da segurança. Ao optar por definir
o que é bom e o que é mau, vocês buscam determinar seu próprio
destino. Foi essa reviravolta que causou tanta dor.
Jesus se firmou no pedaço de madeira para se levantar e
parou enquanto Mack terminava de comer o sanduíche e se
levantava também. Juntos, começaram a andar pela margem do
lago.
— Mas isso não é tudo. O desejo da mulher... na verdade a
palavra é a "virada". Assim, a virada da mulher não foi para a obra
de suas mãos e sim para o homem, e a reação dele foi "dominá-la",
assumir o poder sobre ela, tornar-se o governante. Antes dessa
escolha, a mulher encontrava sua identidade, sua segurança e sua
compreensão do bem e do mal apenas em mim, da mesma forma
que o homem.
— Não é de espantar que eu me sinta um fracasso tão grande
com Nan. Não consigo ser isso para ela.
— Você não foi feito para ser. E, ao tentar, estará brincando
de Deus.
Mack se abaixou, pegou uma pedra chata e atirou-a
ricocheteando sobre o lago.
— Há alguma saída para isso?
— É simples demais, mas nunca é fácil para vocês. A saída é
voltar-se para mim. Abrir mão de seus hábitos de poder e
manipulação e simplesmente voltar-se para mim. — Jesus parecia
estar implorando. — As mulheres, em geral, acham difícil dar as
costas para um homem e parar de exigir que ele atenda às suas
necessidades, que proporcione segurança e proteja a identidade
delas. Acham difícil retornar para mim. Os homens, por sua vez,
acham muito difícil dar as costas para as obras de suas
mãos, para sua busca de poder, segurança e importância. Também
acham difícil retornar para mim.
— Sempre me perguntei por que os homens estão no
comando — ponderou Mack. — Os homens parecem ser a causa
de muita dor no mundo. Cometem a maior parte dos crimes e
muitos são contra mulheres e — ele fez uma pausa — crianças.
— As mulheres — continuou Jesus enquanto pegava uma
pedra e também a fazia ricochetear na água — nos deram as
costas em busca de outro relacionamento, ao passo que os homens
viraram-se para eles mesmos e para o chão. O mundo, em vários
sentidos, seria um lugar muito mais tranqüilo e gentil se as
mulheres governassem. Haveria muito menos crianças sacrificadas
aos deuses da cobiça e do poder.
— Então elas teriam realizado melhor esse papel.
— Melhor, talvez, mas ainda assim não seria suficiente. O
poder nas mãos dos seres humanos independentes, sejam homens
ou mulheres, corrompe. Mack, você não vê que representar papéis
é o contrário do relacionamento? Queremos que homens e
mulheres sejam parceiros, iguais face a face, cada qual único e
diferente, distintos em gênero mas complementares, e cada um
recebendo o poder unicamente de Sarayu, de quem se origina todo
o poder e autoridade verdadeiros. Lembre-se, minha identidade
não se baseia em desempenho e eu não preciso me encaixar nas
estruturas feitas pelos humanos. Eu tenho a ver com ser.
À medida que você cresce no relacionamento comigo, o que fizer
simplesmente refletirá quem você realmente é.
— Mas você veio na forma de homem. Isso não significa
alguma coisa?
— Sim, mas não o que muitos imaginam. Vim como homem
para completar a imagem maravilhosa de como fizemos vocês.
Desde o primeiro dia escondemos a mulher no homem, de modo
que na hora certa pudéssemos retirá-la de dentro dele. Não
criamos o homem para viver sozinho. A mulher foi projetada desde
o início. Ao tirá-la de dentro dele, de certa forma ele a deu à luz.
Criamos um círculo de relacionamento como o nosso, mas para os
humanos. Ela saindo dele e agora todos os homens, inclusive
eu, nascidos dela, e tudo se originando ou nascendo de Deus.
— Ah, entendi — exclamou Mack, interrompendo o gesto de
atirar outra pedra. — Se a mulher fosse criada primeiro, não
haveria um círculo de relacionamento e não se tornaria possível
um relacionamento totalmente igual, cara a cara, entre o homem e
a mulher. Certo?
— Certíssimo, Mack. — Jesus olhou-o e riu. — Nosso desejo
foi criar um ser que tivesse uma contrapartida totalmente igual e
poderosa: o homem e a mulher. Mas sua independência, com a
busca de poder e de realização, na verdade destrói o
relacionamento que seu coração deseja.
— Aí está de novo — disse Mack, procurando uma pedra mais
chata. — A questão sempre volta ao poder e a como ele é oposto ao
relacionamento que vocês têm entre si. Eu adoraria experimentar
isso com vocês e com Nan.
— E por essa razão está aqui.
— Gostaria que ela estivesse também.
— Ah, o que poderia ter sido! — meditou Jesus.
Mack não teve idéia do que ele queria dizer. O silêncio se
instalou por alguns minutos, interrompido pelo som leve das
pedras ricocheteando na água.
Jesus parou antes de jogar mais uma pedra.
— Uma última coisa que eu quero que você lembre desta
conversa, Mack, antes de você ir.
Ele jogou a pedra. Mack levantou os olhos, surpreso.
— Antes de eu ir?
Jesus ignorou a pergunta.
— Mack, assim como o amor, a submissão não é algo que
você pode praticar, especialmente sozinho. Fora de minha vida
dentro de você, você não pode se submeter a Nan, ou aos seus
filhos, ou a mais ninguém, inclusive Papai.
— Quer dizer — exclamou Mack, um tanto sarcástico — que
eu não posso simplesmente perguntar: "O que Jesus faria?"
Jesus deu um risinho.
— Boas intenções, má idéia. Não deixe de me contar como a
coisa funciona para você, se escolher esse caminho. — Parou e
ficou sério. — É verdade, minha vida não se destinava a tornar-se
um exemplo a copiar. Ser meu seguidor não significa tentar "ser
como Jesus", significa matar sua independência. Eu vim lhe
dar vida, vida real, minha vida. Nós viveremos nossa vida dentro
de você, de modo que você comece a ver com nossos olhos, ouvir
com nossos ouvidos, tocar com nossas mãos e pensar como nós.
Mas nunca forçaremos essa união. Se você quiser fazer as coisas
do seu jeito, tudo bem. O tempo está a nosso favor. E, por falar em
tempo — Jesus virou-se e apontou para o caminho que levava até
a floresta no fim da clareira —, você tem um compromisso. Siga
aquele caminho e entre onde ele acaba. Vou esperar aqui.
Por mais que quisesse, Mack soube que não adiantaria tentar
prosseguir na conversa.
Num silêncio pensativo, calçou as meias e os sapatos. Não
estavam totalmente secos, mas ofereciam algum conforto.
Levantou-se sem dizer mais nada, foi na direção do fim da praia,
parou um minuto para olhar de novo a cachoeira, pulou por cima
do córrego e entrou na floresta por um caminho bem cuidado e
nítido.


11. OLHA O JUIZ AÍ, GENTE
Quem decidir se colocar como juiz da Verdade e do
Conhecimento é
naufragado pela gargalhada dos deuses.
— Albert Einstein
Ah, minha alma, prepare-se para encontrar Aquele
que sabe
fazer perguntas.
— T. S. Eliot
Mack seguiu a trilha, que serpenteava, passando pela
cachoeira, afastando-se do lago, e atravessou um denso bosque de
cedros. Demorou menos de cinco minutos para chegar a
um impasse. O caminho o levou diretamente até a face de uma
rocha onde havia a leve silhueta de uma porta praticamente
invisível. Obviamente ele devia entrar, por isso estendeu a
mão, hesitando, e empurrou. Sua mão simplesmente penetrou na
parede e Mack continuou a se mover cautelosamente adiante até
todo o seu corpo passar pelo que parecia o sólido exterior de
pedra da montanha. Dentro, a escuridão era tão espessa que ele
nada via.
Respirando fundo e com as mãos estendidas à frente do
corpo, aventurou-se dando pequenos passos na escuridão total e
parou. O medo o dominou e ele respirava com dificuldade, sem
saber se deveria prosseguir ou não. Enquanto seu estômago se
apertava, sentiu de novo a Grande Tristeza pousando pesadamente
em seus ombros, quase o sufocando. Queria
voltar desesperadamente para a luz, mas acreditava que Jesus não
iria mandá-lo para ali sem um bom propósito. Foi em frente.
Devagar, seus olhos se acostumaram com as sombras
profundas e foi possível perceber um corredor se curvando à
esquerda. Enquanto seguia por ele, surgiu uma leve luminosidade
que se refletia nas paredes, vinda de algum lugar à frente.
A menos de 30 metros o túnel virou abruptamente para a
esquerda e Mack se viu na borda do que imaginou ser uma
caverna enorme. A ilusão era ampliada pela única luz presente,
um leve fulgor que o envolvia, mas se dissipava a menos de 3
metros em todas as direções. Para além disso não conseguia ver
nada, somente o negrume. O ar era pesado e opressivo, com um
frio de tirar o fôlego. Olhou para baixo e ficou aliviado
ao vislumbrar o leve reflexo de uma superfície — não a terra e a
rocha do túnel, mas um piso liso e escuro como mica polida.
Dando corajosamente um passo à frente, notou que o círculo
de luz se movia com ele, iluminando um pouco mais a área
adiante. Sentindo-se mais confiante, começou a andar lenta e
deliberadamente na direção para a qual estivera virado,
concentrando-se no chão.
Estava tão ligado nos próprios pés que trombou num objeto e
quase caiu.
Era uma cadeira de madeira, de aparência confortável, no
meio de... nada. Mack decidiu rapidamente sentar-se e esperar. Ao
fazer isso, a luz que o havia ajudado continuou a se mover à frente
como se ele ainda estivesse andando. Logo adiante pôde ver
uma escrivaninha de ébano, de tamanho considerável,
completamente vazia. E deu um pulo quando a luz se concentrou
num ponto e finalmente ele a viu. Atrás da mesa se
encontrava uma mulher alta, linda, de pele morena, com feições
hispânicas bem marcadas, vestindo um manto largo de cores
escuras. Estava sentada ereta e regia como um juiz da suprema
corte.
Sua beleza era estonteante.
"Ela é a beleza", pensou ele. "Tudo que a sensualidade luta
para ser mas fica muito longe de conseguir." À luz fraca era difícil
ver onde seu rosto começava, como se o cabelo e o manto
emoldurassem as feições e se fundissem nelas. Os olhos brilhavam
e luziam como se fossem portais para a vastidão do céu estrelado,
refletindo alguma fonte de luz desconhecida dentro da mulher.
Mack não ousou falar, com medo de que sua voz fosse
engolida pela intensidade do ambiente. Pensou: "Sou o
camundongo Mickey em vias de falar com Pavarotti."
O pensamento o fez sorrir. Como se de algum modo o tivesse
ouvido, a mulher sorriu de volta e o lugar clareou nitidamente. Foi
o necessário para Mack entender que era esperado e bem-vindo. A
mulher parecia estranhamente familiar, como se ele a tivesse
conhecido ou vislumbrado em algum lugar no passado, apesar de
saber que nunca a vira nem se encontrara com ela de verdade.
— Será que posso perguntar... quem é você? — disse Mack
desajeitado, a voz mal deixando uma impressão no silêncio da
sala, mas depois permanecendo como a sombra de um eco.
Ela ignorou a pergunta.
— Você sabe por que está aqui? — Como uma brisa varrendo
a poeira, a voz dela afastou a pergunta de Mack para fora da sala.
Ele quase podia sentir as palavras chovendo sobre sua cabeça e se
dissolvendo na coluna vertebral, lançando arrepios deliciosos para
todos os lados. Estremeceu e decidiu que não queria falar. Só
desejava que ela falasse, com ele ou com qualquer um, desde que
ele a ouvisse. Mas a mulher esperou.
— Você sabe — disse ele baixinho, surpreso com a sonoridade
da própria voz e convicto de que dizia a verdade. — Eu não faço
idéia — acrescentou, voltando o olhar para o chão. — Ninguém me
disse.
— Bem, Mackenzie Allen Phillips — ela riu, fazendo-o
levantar os olhos rapidamente. — Estou aqui para ajudá-lo.
Se um arco-íris ou uma flor desabrochando fizessem som,
esse seria o som do riso dela. Era uma chuva de luz, um convite
para falar, e Mack riu com ela, sem mesmo saber ou se importar
por quê.
De novo houve silêncio, e o rosto da mulher, embora
permanecesse suave, assumiu uma intensidade feroz, como se ela
pudesse olhar no fundo dele, para além dos fingimentos e
fachadas, até os lugares dos quais raramente se fala, se é que se
fala.
— Hoje é um dia muito sério, com conseqüências sérias. —
Ela fez uma pausa, como para dar peso às suas palavras
nitidamente pesadas. — Mackenzie, você está aqui em parte
por causa de seus filhos, mas também está aqui por...
— Meus filhos? — interrompeu Mack. — Como assim, estou
aqui por causa dos meus filhos?
— Mackenzie, você ama seus filhos de um modo que seu pai
jamais conseguiu amar você e suas irmãs.
— Claro que amo meus filhos. Todo pai ama os filhos. Mas
por que isso tem a ver com o motivo de eu estar aqui?
— Em certo sentido, todo pai ama os filhos — respondeu ela,
ignorando a segunda pergunta. — Mas alguns pais estão
machucados demais para amá-los bem, e outros mal conseguem
amá-los, você deveria saber disso. Mas você ama seus filhos bem,
muito bem.
— Aprendi muito disso com Nan.
— Sabemos. Mas aprendeu, não foi?
— Acho que sim.
— Dentre os mistérios de uma humanidade ferida, este
também é bastante notável: aprender, permitir a mudança. — Ela
era calma como um mar sem vento. — Então, Mackenzie, qual de
seus filhos você mais ama?
Mack sorriu por dentro. Era uma pergunta que ele se fizera
muitas vezes sem encontrar resposta.
— Não amo nenhum mais do que os outros. Amo cada um de
um modo diferente — disse, escolhendo as palavras com cuidado.
— Explique isso, Mackenzie — pediu ela com interesse.
— Bom, cada um dos meus filhos é único, tem uma
personalidade especial. E essa condição única provoca uma reação
única em mim.
Mack se recostou na cadeira.
— Lembro-me de quando Jon, o primeiro, nasceu. Fiquei tão
maravilhado com aquele ser tão pequeno e frágil que na verdade
me preocupei, pensando se me restaria amor para um segundo
filho. Mas, quando Tyler chegou, foi como se trouxesse com ele um
presente maravilhoso para mim, toda uma nova capacidade de
amá-lo especialmente. Pensando bem, é como quando Papai diz
que gosta de modo especial de alguém. Quando penso em cada um
dos meus filhos individualmente, descubro que gosto
especialmente de cada um.
— Muito bem, Mackenzie! — A apreciação dela era tangível e
ela prosseguiu, inclinando-se um pouco, com o tom ainda suave,
porém sério. — Mas e quando eles não se comportam, ou quando
fazem escolhas diferentes das que você gostaria que fizessem, ou
quando são agressivos e grosseiros? E quando eles o embaraçam
na frente dos outros? Como isso afeta seu amor por eles?
Mack respondeu lenta e decididamente:
— Na verdade, não afeta. — Ele sabia que estava sendo
sincero, mesmo que algumas vezes Katie não acreditasse. —
Admito que isso me incomoda e algumas vezes fico sem graça ou
com raiva, mas, mesmo quando eles agem mal, ainda são meus
filhos e serão para sempre. O que fazem pode afetar meu orgulho,
mas não meu amor.
Ela se recostou, rindo de orelha a orelha.
— Você é sábio em termos de amor verdadeiro, Mackenzie.
Muitos acreditam que é o amor que cresce, mas é o conhecimento
que cresce, e o amor simplesmente se expande para contê-lo. O
amor é simples mente a pele do conhecimento. Mackenzie, você
ama seus filhos que conhece tão bem com um amor maravilhoso e
verdadeiro.
Meio sem graça com o elogio, Mack baixou o olhar.
— Bem, obrigado, mas não sou assim com muitas outras
pessoas. Meu amor tende a ser bastante condicional na maior
parte do tempo.
— Mas isso é um começo, não é, Mackenzie? E você não
ultrapassou sozinho a incapacidade de seu pai. Foram Deus e
você, juntos, que causaram essa mudança, para que você pudesse
amar desse modo. E agora você ama seus filhos praticamente
como o Pai ama os dele.
Mack percebeu seu maxilar se apertando e sentiu de novo a
raiva começar a crescer. O que deveria ter sido um elogio
tranqüilizador parecia mais uma pílula amarga que agora ele se
recusava a engolir. Tentou relaxar para encobrir as emoções, mas,
pela expressão dela, soube que era inútil.
— Hummm — murmurou a mulher. — Algo que eu disse
incomodou você, Mackenzie? — Dessa vez o olhar dela o deixou
desconfortável.
Mack sentiu-se exposto. O silêncio que se seguiu à pergunta
pairava no ar. Mack lutou para manter a compostura. Podia ouvir
o conselho de sua mãe ressoando nos ouvidos: "Se não tiver nada
de bom para dizer, não diga nada."
— Ah... bem, não! Na verdade, não.
Mackenzie — instigou ela —, este não é um momento para
usar o bom senso da sua mãe. É um momento de honestidade, de
verdade. Você não acredita que o Pai ame bem seus filhos, não é?
Você não acredita realmente que Deus seja bom, não é?
— Missy é filha dele? — perguntou Mack rispidamente.
— Claro!
— Então, não! — respondeu ele bruscamente, levantando-se.
— Não acredito que Deus ame todos os seus filhos muito bem!
Tinha dito, e agora a acusação ecoava nas paredes que
poderiam existir na câmara. Enquanto Mack estava ali parado,
com raiva e pronto para explodir, a mulher permaneceu calma e
sem alterar a postura. Lentamente, levantou-se da cadeira
de encosto alto, passou em silêncio por trás dele e o chamou.
— Por que não se senta aqui?
Ele encarou-a com sarcasmo, mas não se mexeu.
— Mackenzie. — Ela permaneceu de pé atrás da cadeira. —
Antes comecei a dizer por que você está aqui hoje. Não somente
por causa dos seus filhos. Está aqui para o julgamento.
Enquanto a palavra ecoava na câmara, o pânico subiu por
dentro de Mack como um maremoto e lentamente ele se deixou
afundar na cadeira. Lembranças se derramavam da mente como
ratos fugindo da enchente e no mesmo instante ele se sentiu
culpado. Segurou os braços da cadeira, tentando encontrar algum
equilíbrio, inundado por imagens e emoções. Seus fracassos como
ser humano subitamente se tornaram enormes e no fundo da
mente quase pôde ouvir uma voz entoando uma lista crescente e
apavorante de pecados.
Não tinha defesa. Sabia que estava perdido.
— Mackenzie? — começou ela, mas ele a interrompeu.
— Agora entendo. Estou morto, não estou? Por isso consigo
ver Jesus e Papai, porque estou morto. — Ele se recostou e olhou
para a escuridão, sentindo-se nauseado. — Não acredito! Não senti
nada. — Olhou para a mulher, que o observava com paciência. —
Há quanto tempo estou morto?
— Mackenzie, lamento desapontá-lo, mas você ainda não caiu
no sono no seu mundo, e acredito que se enga...
De novo Mack a interrompeu: — Não estou morto? —
Incrédulo, levantou-se de novo. — Quer dizer que tudo isto é real
e ainda estou vivo? Mas você disse que eu tinha vindo aqui para
ser julgado.
— Disse, sim — declarou ela em tom casual, com uma
expressão divertida. — Mas Macken...
— Julgamento? E nem estou morto? — Pela terceira vez ele a
interrompeu, com a raiva substituindo o pânico. — Não é justo! —
Ele sabia que suas emoções não estavam ajudando. — Isso
acontece com outras pessoas? Quero dizer, ser julgado antes
mesmo de morrer? E se eu mudar? E se eu for melhor pelo resto
da vida? E se me arrepender? E aí?
— Há alguma coisa da qual você queira se arrepender,
Mackenzie? — perguntou ela, sem se abalar com a explosão.
Mack sentou-se de novo, lentamente. Olhou a superfície lisa
do chão e balançou a cabeça antes de responder.
— Eu não saberia por onde começar — murmurou. — Sou
uma confusão, não é?
— É, sim. — Mack levantou os olhos e ela sorriu. — Você é
uma confusão gloriosa e destrutiva, Mackenzie, mas não está aqui
para se arrepender, pelo menos não do modo como entende o
arrependimento. Mackenzie, você não está aqui para ser julgado.
— Mas — interrompeu ele de novo. — Achei que você disse
que eu vim...
— ... aqui para o julgamento? — Ela permaneceu fresca e
plácida como uma brisa de verão enquanto completava a pergunta
dele. — Disse. Mas você não está em julgamento.
Mack respirou fundo, aliviado com as palavras.
— Você será o juiz.
O nó no estômago retornou quando ele percebeu o que ela
dissera. Por fim baixou os olhos para a cadeira que o esperava.
— O quê? Eu? — Fez uma pausa. — Não tenho nenhuma
capacidade de julgar.
— Ah, não é verdade — foi a resposta rápida, agora tingida
por um leve sarcasmo. — Você já se mostrou bastante capaz,
mesmo no pouco tempo que passamos juntos. E, além disso, já
julgou muitas pessoas durante a vida. Julgou os atos e até mesmo
as motivações dos outros, como se soubesse quais eram. Julgou a
cor da pele, a linguagem corporal e o odor pessoal. Julgou
histórias e relacionamentos. Até julgou o valor da vida de
uma pessoa segundo seu conceito de beleza. Em todos os sentidos,
você é bastante treinado nessa atividade.
Mack sentiu a vergonha avermelhando seu rosto. Tinha de
admitir que já fizera um bocado de julgamentos. Mas não era
diferente de mais ninguém, era? Quem não julga impulsivamente
as ações e intenções dos outros? Ao levantar os olhos, viu-a
espiando-o com atenção e rapidamente voltou a olhar para baixo.
— Diga — pediu ela —, se é que posso perguntar: qual é o
critério pelo qual você baseia seus julgamentos?
Mack tentou encará-la, mas descobriu que quando a olhava
diretamente seu pensamento oscilava. Teve de desviar os olhos
para a escuridão do canto a sala, esperando recuperar o controle.
— Nada que pareça fazer muito sentido neste momento —
admitiu finalmente, com a voz embargada. — Confesso que quando
fiz aqueles julgamentos eu me sentia bastante justificado, mas
agora...
— Claro que se sentia. — Ela afirmou como uma declaração,
como algo rotineiro, sem registrar sequer por um momento a
evidente vergonha e perturbação dele. — Julgar exige que você se
considere superior a quem você julga. Bom, hoje você terá a
oportunidade de colocar toda a sua capacidade em uso. Venha —
disse ela, dando um tapinha no encosto da cadeira. — Quero que
se sente aqui. Agora.
Hesitando, ele foi obedientemente até ela e a cadeira que o
esperava. A cada passo parecia ficar menor. Subiu com dificuldade
na cadeira e sentiu-se infantil, os pés mal tocando o chão.
— E exatamente o que vou julgar? — perguntou, virando-se
para olhá-la.
— Não o quê. — Ela foi para o lado da mesa. — Quem.
O desconforto de Mack crescia aos saltos e sentar-se numa
cadeira solene e grande demais não ajudava. Que direito ele tinha
de julgar alguém? Claro, de certa forma era culpado de julgar
praticamente todo mundo que conhecera e muitos desconhecidos.
Mack sabia que era totalmente culpado de ser egocêntrico.
Como é que ele ousava julgar alguém? Todos os seus julgamentos
haviam sido superficiais, baseados na aparência e nos atos,
motivados por preconceitos, estados de espírito ou por
sua necessidade de sentir-se melhor ou superior. Estava
começando a entrar em pânico.
— Sua imaginação — ela interrompeu seus pensamentos —
não vai ajudá-lo muito neste momento.
"Não brinca, Sherlock!" ele pensou ironicamente, mas tudo
que saiu de sua boca foi: — Não posso fazer isso.
— Sua capacidade de fazer isso ou não ainda não foi
determinada — disse ela com um sorriso. — E meu nome não é
Sherlock.
Mack sentiu-se grato pela sala escura que escondia seu
embaraço. O silêncio que se seguiu pareceu mantê-lo cativo por
muito mais tempo do que os poucos segundos necessários para
encontrar a voz e finalmente fazer a pergunta:
— Então quem devo julgar?
— Deus — ela fez uma pausa — e a raça humana. — Disse
como se isso não tivesse importância especial. As palavras
simplesmente rolaram de sua língua, como se fosse
um acontecimento cotidiano.
Mack ficou aparvalhado.
— Você só pode estar brincando! — exclamou.
— Por que não? Sem dúvida há muitas pessoas no seu
mundo que você acha que merecem julgamento. Deve haver pelo
menos algumas culpadas por boa parte da dor e do sofrimento,
não é? Que tal os gananciosos que exploram os pobres do mundo?
Que tal os que promovem as guerras? Que tal os homens que
agridem as mulheres, Mackenzie? Que tal os pais que batem nos
filhos sem qualquer motivo além de aplacar seu
próprio sofrimento? Eles não merecem julgamento, Mackenzie?
Mack percebia a profundidade de sua raiva não resolvida
subir como um jorro de fúria. Afundou na cadeira tentando manter
o equilíbrio abalado por um tiroteio de imagens, mas podia sentir o
controle se esvaindo. Seu estômago deu um nó enquanto ele
fechava os punhos, com a respiração curta e rápida.
— E que tal o homem que é um predador de menininhas
inocentes? Que tal ele, Mackenzie? Esse homem é culpado? Ele
deve ser julgado?
— Deve! — gritou Mack. — Deve ser mandado para o inferno!
— Ele é culpado da sua perda?
— É!
— E o pai dele, o homem que deformou o filho até que ele se
transformasse num terror? E ele?
— É, ele também!
— Até onde devemos voltar, Mackenzie? Esse legado de
deformação remonta até Adão. E ele? Mas por que pararmos aqui?
E Deus? Deus começou essa coisa toda. Deus deve ser culpado?
Mack estava tonto. Não se sentia de modo algum um juiz, e
sim um réu sendo julgado.
A mulher não se aplacava.
— Não é aí que você está travado, Mackenzie? Não é isso que
alimenta a Grande Tristeza? O fato de não poder confiar em Deus?
Sem dúvida, um pai como você pode julgar o Pai!
De novo a raiva dele subiu como uma chama gigantesca.
Queria golpear alguma coisa, mas ela estava certa e não havia
sentido em negar. A mulher prosseguiu:
— Sua reclamação não é justa, Mackenzie? O fato de Deus ter
fracassado com você, ter fracassado com Missy? O fato de, antes
da Criação, Deus saber que um dia sua Missy seria brutalizada e
mesmo assim a ter criado? E depois permitir que aquela alma
deturpada a arrancasse de seus braços amorosos quando tinha
poder para impedir? Deus não deve ser culpado, Mackenzie?
Mack olhava para o chão, com uma avalanche de imagens
empurrando seus sentimentos em todas as direções. Por fim falou,
mais alto do que pretendia, e apontou o dedo diretamente para ela.
— Sim! A culpa é de Deus! — A acusação pairou no ar
enquanto o martelo de juiz batia em seu coração.
— Então — disse ela em tom definitivo —, se você pode julgar
Deus com tanta facilidade, certamente pode julgar o mundo. —
Sua voz não expressava emoção. — Você deve escolher dois de
seus filhos para passar à eternidade no novo Céu e na nova Terra
de Deus, mas apenas dois.
— O quê? — explodiu ele, incrédulo.
— E você deve escolher três filhos para passar a eternidade
no inferno.
Mack não podia acreditar no que estava ouvindo e começou a
entrar em pânico.
— Mackenzie. — Agora a voz dela veio tão calma e
maravilhosa quanto na primeira vez em que ele a havia escutado.
— Só estou lhe pedindo para fazer uma coisa que você acredita que
Deus faz. Ele conhece todas as pessoas já concebidas e muito mais
profunda e claramente do que você jamais conhecerá seus filhos.
Ele ama cada um segundo o que conhece do ser desse filho ou
dessa filha. Você acredita que ele irá condenar a maioria a uma
eternidade de tormento, para longe de Sua presença e de Seu
amor. Não é verdade?
— Acho que sim. Simplesmente nunca pensei na coisa desse
modo. — Ele tropeçava nas palavras, chocado. — Simplesmente
achei que, de algum modo, Deus poderia fazer isso. Falar sobre o
inferno era uma espécie de conversa abstrata e não sobre alguém
de quem eu realmente... — Mack hesitou — ... e não sobre alguém
de quem eu realmente gostasse.
— Então você acha que Deus faz isso com facilidade, mas
você não? Ande, Mackenzie. Quais de seus cinco filhos você
condenará ao inferno? Katie é a que está em maior conflito com
você agora. Ela o trata mal e lhe disse coisas dolorosas. Talvez ela
seja a primeira escolha, a mais lógica. Que tal ela? Você é o juiz,
Mackenzie, e deve escolher.
— Não quero ser juiz — disse ele, levantando-se. A mente de
Mack disparava. Isso não podia ser real. Como Deus seria capaz de
pedir que ele escolhesse entre os próprios filhos?
Era absolutamente impossível condenar Katie ou qualquer
um dos outros a uma eternidade no inferno simplesmente porque
ela havia pecado contra ele. Mesmo que Katie, Josh, Jon ou Tyler
cometessem algum crime hediondo, ele não faria isso. Não podia!
Para ele, isso não tinha relação com o desempenho dos filhos.
Tinha a ver com seu amor por eles.
— Não posso fazer isso — disse baixinho.
— Você deve.
— Não posso fazer isso — disse mais alto e veemente.
— Você deve — repetiu ela, com a voz mais suave.
— Eu... não... vou... fazer... isso! — gritou Mack, com o
sangue fervendo por dentro.
— Você deve — sussurrou ela.
— Não posso. Não posso. Não vou! — gritou ele, e agora as
palavras e emoções saíram num jorro. A mulher simplesmente
ficou parada, esperando. Por fim ele a encarou, implorando com os
olhos. — Eu não posso ir no lugar deles? Se vocês precisam de
alguém para torturar por toda a eternidade, eu vou no lugar deles.
Pode ser? Eu poderia fazer isso? — Caiu aos pés dela, chorando e
implorando. — Por favor, deixe-me ir no lugar dos meus filhos, por
favor, eu ficaria feliz em... Por favor, estou implorando. Por favor...
Por favor...
— Mackenzie, Mackenzie — sussurrou a mulher, e suas
palavras vieram como um jato de água fria num dia de calor
brutal. Suas mãos tocaram gentilmente o rosto dele enquanto ela o
punha de pé. Olhando-a através de lágrimas turvas, ele pôde ver
que o sorriso da mulher era radiante. — Agora você está falando
como Jesus. Você julgou bem, Mackenzie. Estou orgulhosa!
— Mas eu não julguei nada — disse Mack, confuso.
— Ah, julgou sim. Você julgou que eles são merecedores de
amor, mesmo que isso lhe custe tudo. É assim que Jesus ama.
Quando Mack ouviu as palavras, pensou em seu novo amigo
esperando junto do lago.
— E agora você conhece o coração de Papai —
acrescentou ela —, que ama todos os filhos com perfeição.
No mesmo instante a imagem de Missy chamejou em sua
mente e ele ficou tenso. Sem pensar, sentou-se de novo na cadeira.
— O que aconteceu, Mackenzie? — perguntou ela.
Ele viu que não adiantaria esconder.
— Entendo o amor de Jesus, mas Deus é outra história. Não
acho que os dois sejam iguais, de modo nenhum.
— Você não gostou do tempo que passou com Papai? —
perguntou ela, surpresa.
— Não, eu amo Papai, quem quer que ela seja. Ela é incrível,
mas não é nem um pouco como o Deus que eu conheço.
— Talvez sua idéia de Deus esteja errada.
— Talvez. Simplesmente não vejo como Deus pudesse amar
Missy com perfeição.
— Então o julgamento continua? — disse ela com tristeza na
voz.
Isso fez Mack parar, mas apenas por um momento.
— O que eu deveria pensar? Simplesmente não entendo como
Deus poderia amar Missy e deixar que ela passasse por aquele
horror. Era uma menininha inocente. Não fez nada para merecer
aquilo.
— Eu sei.
Mack prosseguiu:
— Deus usou-a para me castigar pelo que eu fiz com o meu
pai? Isso não é justo. Ela não merecia. Nan não merecia. —
Lágrimas escorreram pelo rosto dele. — Eu poderia merecer, mas
elas, não.
— É esse o seu Deus, Mackenzie? Não é de espantar que você
esteja afogado na tristeza. Papai não é assim, Mackenzie. Ele não
está castigando você, nem Missy, nem Nan. Isso não foi feito por
ele.
— Mas ele não impediu.
— Não, não impediu. Ele não impede um monte de coisas que
lhe causam dor. O mundo de vocês está seriamente deturpado.
Vocês exigiram a independência e agora têm raiva daquele que os
amou o bastante para lhes dar o mundo. Nada é como deveria
ser, como Papai deseja que seja e como será um dia. Neste
momento seu mundo está perdido na escuridão e no caos, e coisas
horríveis acontecem com aqueles de quem ele gosta especialmente.
— Então por que ele não faz algo a respeito?
— Ele já fez...
— Quer dizer, o que Jesus fez?
— Você não viu os ferimentos em Papai também?
— Não entendi os ferimentos. Como ele pôde...
— Por amor. Ele escolheu o caminho da cruz, onde a
misericórdia triunfa sobre a justiça por causa do amor. Você
preferiria que ele tivesse escolhido a justiça para todo mundo?
Você quer justiça, "Meritíssimo Juiz"? — Ela sorriu ao dizer isso.
— Não, não quero — ele respondeu, baixando a cabeça. —
Não para mim e não para meus filhos.
Ela esperou.
— Mas ainda não entendo por que Missy teve de morrer.
— Ela não teve, Mackenzie. Isso não foi nenhum plano de
Papai. Papai nunca precisou do mal para realizar seus bons
propósitos. Foram vocês, humanos, que abraçaram o mal, e Papai
respondeu com bondade. O que aconteceu com Missy foi trabalho
do mal e ninguém no seu mundo está imune a ele.
— Mas dói demais. Deve haver um modo melhor.
— Há. Você simplesmente não consegue ver agora. Retorne de
sua independência, Mackenzie. Desista de ser juiz de Papai e
conheça-o como ele é. Então, no meio de sua dor, você poderá
abraçar o amor dele, em vez de castigá-lo com sua percepção
egocêntrica de como você acha que o universo deveria ser. Papai se
arrastou para dentro de seu mundo para estar com vocês, para
estar com Missy.
Mack se levantou da cadeira.
— Não quero mais ser juiz. Realmente quero confiar em
Papai. — Sem que Mack notasse, a sala se iluminou de novo
enquanto ele se movia ao redor da mesa em direção à cadeira
simples onde tudo havia começado. — Mas vou precisar de ajuda.
Ela aproximou-se dele e o abraçou.
— Agora isso parece o início da viagem para casa, Mackenzie.
Parece mesmo.
O silêncio da caverna foi subitamente rompido pelo som de
risos de crianças. Parecia vir de uma das paredes que agora Mack
podia ver claramente à medida que a sala continuava a clarear.
Enquanto olhava naquela direção, a superfície da pedra foi
ficando cada vez mais translúcida e a luz do dia penetrou na
caverna. Espantado, Mack olhou pela névoa e finalmente
conseguiu vislumbrar as formas vagas de crianças brincando
à distância.
— O som parece ser dos meus filhos! — exclamou perplexo.
Enquanto ia em direção à parede, a névoa se dividiu, como se
alguém tivesse aberto uma cortina, e ele estava inesperadamente
olhando para uma campina, na direção do lago. Na sua frente
estava o pano de fundo das montanhas nevadas, perfeitas em sua
majestade, vestidas com florestas densas. E, aninhada ao pé, a
cabana onde ele sabia que Papai e Sarayu estariam à sua espera.
Um riacho largo surgia bem à sua frente e desaguava no lago junto
de campos de flores. Os sons de pássaros estavam em toda parte e
o perfume doce do verão pairava intenso no ar.
Tudo isso Mack viu, ouviu e cheirou num instante, mas então
seu olhar foi atraído para o grupo brincando perto do lugar onde o
rio desaguava no lago, a menos de 50 metros dali. Viu seus filhos:
Jon, Tyler, Josh e Kate. Mas espere! Havia mais alguém!
Ofegante, tentou focalizar melhor. Moveu-se na direção deles,
mas foi pressionado contra uma força que não via, como se a
parede de pedra ainda estivesse ali à sua frente, invisível. Então
ficou claro.
— Missy!
Lá estava ela, chutando a água com os pés descalços. Como
se tivesse escutado, Missy se separou do grupo e veio correndo
pela trilha que terminava diretamente diante dele.
— Ah, meu Deus! Missy! — gritou Mack e tentou avançar
através do véu que os separava. Para sua consternação, bateu
contra a força que não lhe permitia chegar mais perto, como se
algum magnetismo aumentasse em oposição ao seu esforço,
mandando-o de volta para a sala.
— Ela não pode ouvi-lo.
Mack não se importava.
— Missy! — gritou. Ela estava tão perto! A lembrança que
estivera se esforçando tanto para não perder, mas que sentia
lentamente se esvair agora, saltou de volta. Procurou algum tipo de
maçaneta, como se pudesse abrir alguma coisa e encontrar um
modo de chegar à filha. Mas não havia nada.
Enquanto isso, Missy havia chegado e estava parada bem
diante dele. O olhar dela se fixava em algo no meio, maior e
obviamente visível para ela, mas não para ele.
Finalmente Mack parou de lutar contra o campo de força e
virou-se para a mulher.
— Ela pode me ver? Ela sabe que estou aqui? — perguntou
desesperado.
— Ela sabe que você está aqui, mas não pode vê-lo. Do lado
onde se encontra, Missy está olhando para a linda cachoeira e
nada mais. Porém sabe que você está atrás dela.
— Cachoeiras! — exclamou Mack, rindo sozinho. — Ela adora
cachoeiras! — Agora Mack se concentrou na filha, tentando
memorizar de novo cada detalhe de sua expressão, do cabelo e das
mãos. Enquanto ele fazia isso, o rosto de Missy se abriu num
sorriso enorme, com as covinhas se destacando. Em câmara lenta,
ele pôde ver sua boca falando sem som:
— Está tudo bem, eu... — e ela fez sinais acompanhando as
palavras — ... te amo.
Era demais e Mack chorou de alegria. Mesmo assim não
conseguia parar de olhá-la, observando-a através de sua cachoeira
de lágrimas. Estar tão perto assim era doloroso, vê-la ali, com
aquele jeito tão característico de Missy.
— Ela está realmente bem, não está?
— Mais do que você imagina. Esta vida é apenas a ante-sala
para uma realidade maior que virá. Ninguém realiza plenamente
seu próprio potencial no seu mundo. É apenas um preparativo que
Papai tinha em mente o tempo todo.
— Posso ir até ela? Talvez só um abraço e um beijo? —
implorou baixinho.
— Não. É assim que ela queria.
— Ela queria assim? — Mack ficou confuso.
— É. A nossa Missy é uma criança muito sábia. Gosto
especialmente dela.
— Tem certeza de que ela sabe que estou aqui?
— Sim, tenho certeza — garantiu a mulher. — Ela estava
muito empolgada esperando este dia para brincar com os irmãos e
a irmã e estar perto de você. Ela gostaria que a mãe também
estivesse aqui, mas isso terá de esperar outra ocasião.
Mack se virou para a mulher.
— Meus outros filhos estão realmente aqui?
— Estão e não estão. Só Missy está realmente aqui. Os outros
estão sonhando e cada um terá uma vaga lembrança, alguns com
mais detalhes do que outros. Este é um momento muito pacífico de
sono para cada um, menos para Kate. Este sonho não será fácil
para ela. Mas Missy está totalmente acordada.
Mack ficou olhando cada movimento feito por sua preciosa
Missy.
— Ela me perdoou? — perguntou.
— Perdoou o quê?
— Eu falhei com ela — sussurrou ele.
— Seria da natureza dela perdoar se houvesse algo a perdoar,
mas não há.
— Mas eu não impedi que ele a levasse. Ele a levou enquanto
eu não estava prestando atenção... — sua voz ficou no ar.
— Se você se lembra, você estava salvando seu filho. Só você,
em todo o universo, acredita que tem alguma culpa. Missy não
acredita nisso, nem Nan, nem Papai. Talvez seja hora de
abandonar essa mentira. E, Mackenzie, mesmo que você fosse
culpado, o amor dela é muito mais forte do que a sua falha jamais
poderia ser.
Nesse momento alguém chamou o nome de Missy e Mack
reconheceu a voz. A menina gritou de prazer e começou a correr
em direção aos outros. De repente parou e correu de volta para o
pai. Fez o gesto de um grande abraço e, com os olhos fechados,
simulou um grande beijo. De trás da barreira ele a abraçou
também. Por um instante ela ficou totalmente imóvel, como se
soubesse que estava lhe dando um presente. Depois acenou, virouse
e correu para os outros.
E agora Mack pôde ouvir claramente a voz que havia
chamado sua Missy. Era Jesus brincando no meio de seus filhos.
Sem hesitar, Missy pulou no colo dele. Ele girou-a no ar duas
vezes antes de colocá-la de volta no chão, depois todo mundo riu e
saíram procurando pedras lisas para jogar ricocheteando na
superfície do lago. Os sons de exuberante alegria eram uma
sinfonia nos ouvidos de Mack e suas lágrimas correram livremente.
De súbito, sem aviso, a água veio rugindo de cima, bem à sua
frente, e obliterou toda a visão e as vozes de seus filhos.
Instintivamente ele saltou para trás. Então percebeu que as
paredes da caverna haviam se dissolvido ao redor e ele estava
numa gruta atrás da cachoeira.
Mack sentiu a mão da mulher nos ombros.
— Acabou? — perguntou ele.
— Por enquanto — respondeu ela com ternura. — Mackenzie,
julgar não é destruir, mas consertar as coisas.
Mack sorriu. — Não estou mais me sentindo travado. — Ela
o guiou gentilmente para a lateral da cachoeira, até que ele pôde
ver de novo — Jesus na margem do lago ainda jogando pedras.
— Acho que alguém está esperando você. — As mãos dela
apertaram seus ombros com suavidade, depois ela o soltou e, sem
olhar, Mack soube que ela fora embora. Ele passou
cuidadosamente sobre pedras escorregadias e rochas molhadas até
encontrar um caminho pela borda da cachoeira.
Atravessou a névoa revigorante da água que despencava e
retornou à luz do dia.
Exausto, mas profundamente realizado, Mack parou e fechou
os olhos por um momento, tentando gravar indelevelmente no
pensamento os detalhes da presença de Missy, esperando que nos
dias futuros pudesse trazer de volta cada momento com ela, cada
nuance e cada movimento.
E subitamente sentiu muita, muita falta de Nan.


12. NA BARRIGA DAS FERAS
Os homens jamais fazem o mal tão completamente
e com tanta alegria como quando o fazem a partir
de uma convicção religiosa.
— Blaise Pascal
Assim que abolimos Deus, o governo se torna
Deus.
— G. K . Chesterton
Enquanto seguia pela trilha em direção ao lago, Mack
percebeu subitamente que faltava alguma coisa. Sua companheira
constante, a Grande Tristeza, havia sumido. Era como se tivesse
sido lavada na névoa da cachoeira enquanto ele emergia por baixo
da cortina d'água. A ausência era estranha, talvez até
desconfortável. Nos anos anteriores ela havia definido para ele o
que era um estado normal, mas agora tinha desaparecido
inesperadamente. "O normal é um mito", pensou.
A Grande Tristeza não faria mais parte de sua identidade.
Agora sabia que Missy não se importaria se ele se recusasse a usála.
Na verdade, sua filha não iria querer que o pai se envolvesse
naquela mortalha e certamente sofreria se ele fizesse isso. Tentou
imaginar quem ele passaria a ser, agora que estava se soltando de
tudo aquilo — começar cada dia sem a culpa e o desespero que
haviam sugado de todo as cores da vida.
Enquanto entrava na clareira, viu Jesus esperando, ainda
jogando pedras.
— Ei, acho que o máximo que consegui foram 13 ricochetes
— disse ele rindo e vindo ao encontro de Mack. — Mas Tyler
conseguiu três a mais do que eu, e Josh jogou uma pedra que
ricocheteou para tão longe que a perdemos de vista. — Enquanto
se abraçavam, Jesus acrescentou: — Você tem filhos especiais,
Mack. Você e Nan os amaram muito bem. Kate está lutando, como
você sabe, mas ainda não terminamos.
A tranqüilidade e a intimidade com que Jesus falava de seus
filhos tocou-o profundamente.
— Então eles foram embora?
Jesus desfez o abraço e assentiu.
— É, de volta para os sonhos, menos Missy, claro.
— Ela...? — começou Mack.
— Ela ficou felicíssima por estar tão perto de você e ficou
empolgada em saber que você está melhor.
Mack lutou para manter a compostura. Jesus entendeu e
mudou de assunto.
— Como foi o tempo que você passou com Sophia?
— Sophia? Ah, então é ela! — exclamou Mack. E uma
expressão perplexa surgiu em seu rosto. — Mas quer dizer que
vocês são quatro? Ela é Deus também?
Jesus riu.
— Não, Mack. Somos apenas três. Sophia é uma
personificação da sabedoria de Papai.
— Ah, como nos Provérbios, onde a Sabedoria é representada
como uma mulher chamando nas ruas, tentando encontrar alguém
que a escute?
— Ela mesma.
— Mas — Mack parou enquanto se abaixava para desamarrar
os cadarços dos sapatos — ela pareceu tão real!
— Ah, ela é bastante real. — Em seguida Jesus olhou ao
redor, como se quisesse ver se alguém estava observando, e
sussurrou: — Ela é parte do mistério que cerca Sarayu.
— Adoro Sarayu — exclamou Mack enquanto se levantava,
meio surpreso com sua própria transparência.
— Eu também! — declarou Jesus com ênfase. Os dois
voltaram à margem e ficaram olhando em silêncio para o outro
lado do lago.
— Foi terrível e maravilhoso o tempo que passei com Sophia.
— Mack finalmente respondeu à pergunta que Jesus havia feito.
Subitamente percebeu que o sol ainda estava alto no céu. —
Exatamente quanto tempo estive lá?
— Menos de 15 minutos, de modo que não foi muito. —
Diante do olhar de perplexidade de Mack, Jesus acrescentou: — O
tempo passado com Sophia não é como o tempo normal.
— Hã — grunhiu Mack. — Duvido que qualquer coisa com ela
seja normal.
— Na verdade — Jesus começou a falar mas parou para jogar
uma última pedra ricocheteando na água —, com ela tudo é
normal e de uma simplicidade elegante. Como você está tão
perdido e independente, acaba achando que até a simplicidade
dela é profunda.
— Então eu sou complexo e ela é simples. Uau! Meu mundo
está mesmo de cabeça para baixo. — Mack já se sentara num
tronco e estava tirando os sapatos e as meias para a caminhada.
— Pode me dizer uma coisa? Estamos no meio do dia, e meus
filhos estiveram aqui em sonhos? Como isso funciona? Alguma
coisa disso tudo é real? Ou só estou sonhando também?
De novo Jesus riu.
— Não pergunte como tudo isso funciona, Mack. São coisas
de Sarayu. O tempo, como você sabe, não representa fronteiras
para Aquele que o criou. Você pode perguntar a ela, se quiser.
— Não, acho que vou deixar isso esperando. Só fiquei curioso.
— Mack deu um risinho.
— Você perguntou se "alguma coisa disso tudo é real". Muito
mais do que você pode imaginar. — Jesus parou um momento
para captar toda a atenção de Mack. — O melhor seria perguntar:
"O que é real?"
— Estou começando a pensar que não faço idéia.
— Tudo isso seria menos "real" se estivesse dentro de um
sonho?
— Acho que eu ficaria desapontado.
— Por quê? Mack, há muito mais coisas acontecendo aqui do
que você tem condições de perceber. Deixe-me garantir: tudo isso é
real, muito mais real do que a vida que você conhece.
Mack hesitou, mas depois decidiu se arriscar e perguntou:
— Há uma coisa que ainda me incomoda com relação a
Missy.
Jesus veio e sentou-se no tronco ao lado dele. Mack inclinouse
e pôs os cotovelos nos joelhos, olhando para as pedrinhas perto
dos pés. Por fim, disse:
— Eu fico pensando nela, sozinha naquela picape, tão
aterrorizada...
Jesus colocou a mão sobre o ombro de Mack e o apertou.
Falou gentilmente:
— Mack, ela jamais esteve sozinha. Eu nunca a deixei. Nós
não a deixamos sequer por um instante. Eu não poderia
abandoná-la, nem você, assim como não poderia abandonar a mim
mesmo.
— Ela sabia que você estava lá?
— Sim, Mack, sabia. No princípio, não. O medo era
avassalador e ela estava em estado de choque. Demorou horas
para chegar do acampamento até aqui. Mas, quando Sarayu se
enrolou ao redor dela, Missy se acalmou. A viagem longa nos deu
chance de conversar.
Mack estava tentando apreender tudo aquilo. Não se sentia
mais capaz de falar.
— Missy podia ter apenas 6 anos, mas nós somos amigos.
Nós conversamos. Ela não tinha idéia do que iria acontecer. Na
verdade, estava mais preocupada com você e com as outras
crianças, sabendo que vocês não poderiam encontrá-la. Ela rezou
por vocês, pela sua paz.
Mack chorou, lágrimas novas rolando pelo rosto. Dessa vez
não se importou. Jesus puxou-o gentilmente e o abraçou.
— Mack, não creio que você queira saber todos os detalhes.
Tenho certeza de que eles não vão ajudá-lo. Mas posso dizer que
não houve um momento em que não estivéssemos com ela. Missy
conheceu minha paz, e você ficaria orgulhoso, porque ela foi muito
corajosa!
As lágrimas escorriam soltas, mas Mack notava que agora era
diferente. Não estava mais sozinho. Sem qualquer
constrangimento, chorou no ombro daquele homem que
ele aprendera a amar. A cada soluço, sua tensão ia se esvaindo,
substituída por um profundo sentimento de alívio. Por fim respirou
fundo e soltou o ar enquanto levantava a cabeça.
Então, sem dizer mais nenhuma palavra, levantou-se,
pendurou os sapatos no ombro e simplesmente entrou na água.
Ficou um pouco surpreso quando seu primeiro passo encontrou o
fundo do lago abaixo dos tornozelos, mas não se importou. Parou,
enrolou as pernas da calça acima dos joelhos e deu mais um passo
na água gelada. A água chegou até o meio das canelas e, no passo
seguinte, logo abaixo dos joelhos. Olhou para trás e viu Jesus
parado na margem com os braços cruzados diante do peito,
olhando-o.
Mack virou-se e olhou para a margem oposta. Não sabia por
que dessa vez não tinha funcionado, mas decidiu continuar
tentando. Jesus estava ali, por isso ele não tinha com que se
preocupar. A perspectiva de nadar por um espaço longo e gelado
não era nada empolgante, porém Mack tinha certeza de que
conseguiria atravessar se fosse necessário.
Felizmente, quando deu o próximo passo, em vez de afundar
mais ainda, subiu um pouco e, a cada passo seguinte, subiu mais,
até estar de novo andando sobre a água. Jesus se reuniu a ele e os
dois continuaram em direção à cabana.
— Isso sempre funciona melhor quando a gente faz junto, não
acha? — perguntou Jesus, sorrindo.
— Estou vendo que ainda tenho mais coisas para aprender.
— Mack devolveu o sorriso.
Pouco importava que tivesse de atravessar o lago a nado ou
andar sobre a água, por mais maravilhoso que isso fosse. O que
importava era ter Jesus ao seu lado. Talvez estivesse começando a
confiar nele.
— Obrigado por estar comigo, por falar comigo sobre Missy.
Na verdade, não tenho falado sobre esse assunto com ninguém. É
uma história apavorante demais. Agora já não está com a mesma
força.
— A escuridão esconde o verdadeiro tamanho dos medos, das
mentiras e dos arrependimentos — explicou Jesus. — A verdade é
que eles são mais sombra do que realidade, por isso parecem
maiores no escuro. Quando a luz brilha nos lugares onde eles
vivem no seu interior, você começa a ver o que são realmente.
— Mas por que nós mantemos toda essa porcaria lá dentro?
— Porque acreditamos que ela está mais segura ali. E
algumas vezes, quando você é uma criança tentando sobreviver,
ela fica realmente mais segura no seu interior. Depois você cresce
por fora, mas por dentro ainda é aquela criança na caverna escura,
rodeada por monstros, e, como se habituou, continua aumentando
sua coleção. Todos colecionamos coisas de valor, sabe?
Isso fez Mack sorrir. Sabia que Jesus estava se referindo a
algo que Sarayu havia dito sobre colecionar lágrimas.
— Então como é que isso muda para alguém que está perdido
no escuro como eu?
— Na maioria das vezes, muito devagar. Lembre-se, você não
pode fazer isso sozinho. Algumas pessoas tentam todo tipo de
mecanismos de enfrentamento e de jogos mentais. Mas os
monstros continuam lá, só esperando a chance de sair.
— O que faço agora, então?
— O que já está fazendo, Mack: aprendendo a viver sendo
amado. Não é um conceito fácil para os humanos. Você tinha
dificuldade para compartilhar qualquer coisa. — Deu um risinho e
continuou: — Portanto, sim, o que desejamos é que você "re-torne"
para nós.
Então iremos fazer nossa casa dentro de você e vamos
compartilhar. A amizade é real e não meramente imaginada. Nós
fomos destinados a experimentar esta vida, a sua vida, juntos,
num diálogo, compartilhando a jornada. Você passa a
compartilhar nossa sabedoria e aprender a amar com nosso amor,
e nós... ouvimos você resmungar, se afligir, reclamar e...
Mack riu alto e empurrou Jesus de lado.
— Pare! — gritou Jesus e se imobilizou. A princípio Mack
achou que poderia tê-lo ofendido, mas Jesus estava olhando
atentamente para a água. — Você viu? Olhe, aí vem de novo.
— O quê? — Mack chegou mais perto e protegeu os olhos na
tentativa de ver o que Jesus estava olhando.
— Olhe! Olhe! — falou Jesus, meio que sussurrando. — É
uma beleza! Deve ter uns 60 centímetros!
E então Mack viu uma enorme truta do lago deslizando a
apenas uns 50 ou 60 centímetros abaixo da superfície, sem notar a
agitação que estava provocando acima.
— Estive tentando pegá-la durante semanas e aí ela vem, só
para me provocar. — Ele riu.
Mack ficou olhando, pasmo, enquanto Jesus começava a
saltar para um lado e para outro, tentando acompanhar o peixe.
Finalmente desistiu e olhou para Mack, empolgado como um
menininho. — Não é fantástica? Provavelmente nunca vou
conseguir pegá-la.
Mack ficou perplexo com aquela cena.
— Jesus, por que simplesmente não ordena que ela... não
sei... pule no seu barco ou morda seu anzol? Você não é o Senhor
da Criação?
— Claro — disse Jesus, abaixando-se e passando a mão
sobre a água. — Mas qual seria a diversão, hein? — Ele ergueu os
olhos e riu.
Mack não sabia se ria ou chorava. Percebia o quanto havia
passado a amar aquele homem, aquele homem que também era
Deus.
Jesus se levantou de novo e juntos continuaram andando
para o cais. Mack se aventurou de novo:
— Se é que posso perguntar, por que você não me falou sobre
Missy antes? Por exemplo, ontem à noite, ou há um ano, ou...
— Não pense que não tentamos. Você já notou que, em sua
dor, presume sempre o pior a meu respeito? Estive falando com
você durante longo tempo, mas hoje foi a primeira vez que você
pôde ouvir. Não pense que todas aquelas outras ocasiões foram
um desperdício. Como pequenas rachaduras na parede, uma de
cada vez, mas entrelaçadas, elas o prepararam para hoje. É preciso
demorar um tempo preparando o solo se quiser que ele acolha a
semente.
— Não sei por que resistimos a isso, por que resistimos tanto
a você. Agora parece meio idiota.
— Tudo tem a ver com o momento da graça, Mack. Se
houvesse apenas um ser humano no universo, o sentido de tempo
seria bastante simples. Mas acrescente apenas mais um e, bem,
você conhece a história. Cada escolha cria ondulações ao longo do
tempo e dos relacionamentos, ricocheteando em outras escolhas.
E, a partir do que parece uma confusão enorme, Papai tece uma
tapeçaria magnífica. Só Papai pode resolver tudo isso e ela o faz
com graça.
— Então acho que tudo que posso fazer é segui-la — concluiu
Mack.
— É, esse é o ponto. Agora você está começando a entender o
que significa ser realmente humano.
Chegaram à extremidade do cais e Jesus saltou nele, virandose
para ajudar Mack. Juntos, sentaram-se na beira e balançaram
os pés descalços na água, olhando os efeitos do vento na superfície
do lago. Mack foi o primeiro a romper o silêncio.
— Eu estava vendo o céu quando vi Missy? Era muito
parecido com isso aqui.
— Bom, Mack, nosso destino final não é a imagem do Céu
que você tem na cabeça. Você sabe, a imagem de portões
adornados e ruas de ouro. O Céu é uma nova purificação do
universo, de modo que vai se parecer bastante com isso aqui.
— Então que história é essa de portões adornados e ruas de
ouro?
— Esta, irmão — começou Jesus, deitando-se no cais e
fechando os olhos por causa do calor e da claridade do dia —, é
uma imagem de mim e da mulher por quem sou apaixonado.
Mack olhou para ver se ele estava brincando, mas obviamente
não estava.
— É uma imagem da minha noiva, a Igreja: indivíduos que
juntos formam uma cidade espiritual com um rio vivo fluindo no
meio e nas duas margens, árvores crescendo com frutos que
curam as feridas e os sofrimentos das nações. Essa cidade está
sempre aberta e cada portão que dá acesso a ela é feito de uma
única pérola... — Ele abriu um olho e olhou para Mack. — Isso sou
eu! — Ele percebeu a dúvida de Mack e explicou: — Pérolas, Mack.
A única pedra preciosa feita de dor, sofrimento e, finalmente,
morte.
— Entendi. Você é a entrada, mas... — Mack parou,
procurando as palavras certas. — Você está falando da Igreja
como essa mulher por quem está apaixonado. Tenho quase certeza
de que não conheço essa Igreja. — Ele se virou ligeiramente para o
outro lado. — Não é certamente o lugar aonde eu vou aos
domingos — disse mais para si mesmo, sem saber se era seguro
falar em voz alta.
— Mack, isso é porque você só está vendo a instituição, que é
um sistema feito pelo ser humano. Não foi isso que eu vim
construir. O que vejo são as pessoas e suas vidas,
uma comunidade que vive e respira, feita de todos que me amam, e
não de prédios, regras e programas.
Mack ficou meio abalado ouvindo Jesus falar de "igreja" desse
modo, mas isso não chegou a surpreendê-lo. De fato, foi um alívio.
— Então como posso fazer parte dessa Igreja? Dessa mulher
pela qual você parece estar tão apaixonado?
— É simples, Mack. Tudo só tem a ver com os
relacionamentos e com o fato de compartilhar a vida. É exatamente
o que estamos fazendo agora, simplesmente isso, sendo abertos e
disponíveis um para o outro. Minha Igreja tem a ver com as
pessoas e a vida tem a ver com os relacionamentos. Você pode
construí-la. É o meu trabalho e, na verdade, sou bastante bom
nisso — disse Jesus com um risinho.
Para Mack essas palavras foram como um sopro de ar puro!
Simples. Não um monte de rituais exaustivos e uma longa lista de
exigências, nada de reuniões intermináveis com pessoas
desconhecidas. Simplesmente compartilhar a vida.
— Mas espere... — Mack tinha um monte de perguntas
aflorando à sua mente. Talvez tivesse entendido mal. Parecia
simples demais. Por isso pensou duas vezes antes de mexer com o
que estava começando a entender. Fazer seu monte confuso de
perguntas nesse momento seria como jogar um bocado de lama
num pequeno lago de águas límpidas. — Não faz mal — foi tudo
que disse.
— Mack, você não precisa entender tudo. Simplesmente
esteja comigo.
Depois de um momento ele decidiu se juntar a Jesus e
deitou-se de costas ao lado dele, abrigando os olhos do sol para
espiar as nuvens que passavam no início da tarde.
— Bom, para ser honesto — admitiu —, não estou
desapontado, porque nunca me senti atraído pela "rua de ouro".
Sempre achei meio chato. Maravilhoso mesmo é estar aqui com
você.
Um silêncio baixou enquanto Mack absorvia o momento.
Podia ouvir o sussurro do vento acariciando as árvores e o riso do
riacho ali perto derramando-se no lago. O dia estava majestoso e o
cenário era incrível.
— Realmente desejo entender. Quer dizer, acho que o modo
como vocês são é muito diferente de todo o negócio religioso em
que fui criado e com o qual me acostumei.
— Por mais bem-intencionada que seja, você sabe que a
máquina religiosa é capaz de engolir as pessoas! — disse Jesus,
num tom meio cortante. — Uma quantidade enorme das coisas
que são feitas em meu nome não têm nada a ver comigo. E
freqüentemente são muito contrárias aos meus propósitos.
— Você não gosta muito de religião e de instituições? —
perguntou Mack, sem saber se estava fazendo uma pergunta ou
uma afirmação.
— Eu não crio instituições. Nunca criei, nunca criarei.
— E a instituição do casamento?
— O casamento não é uma instituição. É um relacionamento.
— Jesus fez uma pausa e retomou, com a voz firme e paciente: —
Como eu disse, não crio instituições. Essa é uma ocupação dos
que querem brincar de Deus. Portanto, não, não gosto muito de
religiões e também não gosto de política nem de economia. — A
expressão de Jesus ficou notavelmente sombria. — E por que
deveria gostar? É a trindade de terrores criada pelo ser humano
que assola a Terra e engana aqueles de quem eu gosto. Quantos
tormentos e ansiedades relacionados a uma dessas três coisas as
pessoas enfrentam!
Mack hesitou. Não sabia o que dizer. Tudo parecia um pouco
excessivo. Notando que os olhos de Mack estavam ficando
vidrados, Jesus baixou o tom.
— Falando de modo simples, religião, política e economia são
ferramentas terríveis que muitos usam para sustentar suas ilusões
de segurança e controle. As pessoas têm medo da incerteza, do
futuro. Essas instituições, essas estruturas e ideologias são um
esforço inútil de criar algum sentimento de certeza e segurança
onde nada disso existe. É tudo falso! Os sistemas não podem
oferecer segurança, só eu posso.
— Uau! — Era tudo que Mack conseguia pensar. A paisagem
que ele e praticamente todo mundo que ele conhecia haviam
buscado para administrar e orientar a vida estava sendo reduzida
a pouco mais do que entulho. — Então... — Mack ainda estava
processando o que ouvira, sem conseguir grande coisa. — Então?
— Transformou a palavra numa pergunta.
— Eu vim lhes dar a vida na totalidade. Minha vida. — Mack
ainda estava se esforçando para entender. — A simplicidade e a
pureza de desfrutar de uma amizade crescente.
— Ah, entendi!
— Se você tentar viver isso sem mim, sem o diálogo constante
que estabelecemos ao compartilhar esta jornada juntos, será como
tentar andar sobre a água sozinho. Você não pode! E quando
tenta, por mais bem-intencionado que seja, vai afundar. — Apesar
de saber a resposta, Jesus perguntou: — Você já tentou salvar
alguém que estivesse se afogando?
Os músculos de Mack se retesaram instantaneamente. Ele
não gostava de se lembrar de Josh e da canoa, e um sentimento de
pânico subitamente jorrou da lembrança.
— É extremamente difícil resgatar alguém, a não ser que a
pessoa esteja disposta a confiar em você.
— É, sem dúvida.
— É só isso que eu lhe peço. Quando você começar a
afundar, deixe-me resgatá-lo.
Parecia um pedido simples, mas Mack estava acostumado a
ser o salva-vidas e não o afogado.
— Jesus, não sei bem como...
— Deixe-me mostrar. Basta continuar me dando o pouco que
você tem e juntos vamos vê-lo crescer.
Mack começou a calçar as meias e os sapatos.
— Sentado aqui com você, neste momento, não parece tão
difícil. Mas quando penso na minha vida normal, em casa, não sei
como manter o que você sugere. Estou preso na mesma
necessidade de controle que todo mundo tem. Política, economia,
sistemas sociais, contas, família, compromissos... é bastante
esmagador. Não sei como mudar tudo isso.
— Ninguém está pedindo que mude! — disse Jesus com
ternura. — Esta é uma tarefa para Sarayu e ela sabe como fazer
sem agredir ninguém. O importante é saber que tudo é
um processo e não um acontecimento. Só quero que você confie
em mim o pouco que puder e que cresça no amor pelas pessoas ao
seu redor com o mesmo amor que compartilho com você. Não cabe
a você mudá-las nem convencê-las. Você está livre para amar
sem qualquer obrigação.
— É isso que quero aprender.
— É mesmo. — Jesus piscou.
Jesus se levantou, espreguiçou-se e Mack o imitou.
— Quantas mentiras me contaram! — admitiu ele. Jesus
olhou para ele, puxou-o e o abraçou.
— Eu sei, Mack, a mim também. Simplesmente não acreditei
nelas. Juntos, começaram a andar pelo cais. Quando se
aproximavam da margem voltaram a diminuir o passo. Jesus
colocou a mão no ombro de Mack e virou-o gentilmente, até
ficarem cara a cara.
— Mack, o sistema do mundo é o que é. As instituições, as
ideologias e todos os esforços vãos e inúteis da humanidade estão
em toda parte e é impossível deixar de interagir com tudo isso. Mas
eu posso lhe dar liberdade para superar qualquer sistema de poder
em que você se encontre, seja ele religioso, econômico, social ou
político. Você terá uma liberdade cada vez maior de estar dentro ou
fora de todos os tipos de sistemas e de se mover livremente entre
eles. Juntos, você e eu podemos estar dentro do sistema e
não fazer parte dele.
— Mas tanta gente de quem eu gosto parece fazer parte do
sistema! — Mack estava pensando nos amigos, nas pessoas da
igreja que haviam expressado amor por ele e por sua família. Sabia
que elas amavam Jesus, mas que também eram totalmente
vendidas para a atividade religiosa e o patriotismo.
— Mack, eu as amo. E você comete um erro julgando-as.
Devemos encontrar modos de amar e servir os que estão dentro do
sistema, não acha? Lembre-se, as pessoas que me conhecem são
aquelas que estão livres para viver e amar sem qualquer
compromisso.
— É isso que significa ser cristão? — Achou-se meio idiota ao
dizer isso, mas era como se estivesse tentando resumir tudo na
cabeça.
— Quem disse alguma coisa sobre ser cristão? Eu não sou
cristão.
A idéia pareceu estranha e inesperada para Mack e ele não
pôde evitar uma risada.
— Não, acho que não é.
Chegaram à porta da carpintaria. De novo Jesus parou.
— Os que me amam estão em todos os sistemas que existem.
São budistas ou mórmons, batistas ou muçulmanos, democratas,
republicanos e muitos que não votam nem fazem parte de qualquer
instituição religiosa. Tenho seguidores que foram assassinos e
muitos que eram hipócritas. Há banqueiros, jogadores, americanos
e iraquianos, judeus e palestinos. Não tenho desejo de torná-los
cristãos, mas quero me juntar a eles em seu processo para se
transformarem em filhos e filhas do Papai, em irmãos e irmãs, em
meus amados.
— Isso significa que todas as estradas levam a você?
— De jeito nenhum — sorriu Jesus enquanto estendia a mão
para a porta da oficina. — A maioria das estradas não leva a lugar
nenhum. O que isso significa é que eu viajarei por qualquer
estrada para encontrar vocês. — Fez uma pausa. — Mack, tenho
algumas coisas para terminar na carpintaria; encontro você mais
tarde.
— Certo. O que quer que eu faça?
— O que quiser, Mack, a tarde é sua. — Jesus deu-lhe um
tapa no ombro e riu. — Uma última coisa: lembra-se de antes,
quando me agradeceu por tê-lo deixado ver Missy? Foi idéia de
Papai. — Depois de dizer isso ele se virou e acenou por cima do
ombro enquanto entrava na oficina.
Mack soube instantaneamente o que queria fazer e foi para a
cabana, em busca de Papai.


13. UM ENCONTRO DE CORAÇÕES
A falsidade tem uma infinidade de combinações,
mas a verdade só tem um modo de ser.
— Jean-Jacques Rousseau
Enquanto se aproximava da cabana, Mack sentiu um cheiro
delicioso que se desprendia de alguma coisa no forno. Talvez
tivesse se passado apenas uma hora desde o almoço, mas
era como se ele não tivesse comido havia horas. O aroma da
comida o conduziu até a cozinha. Mas quando chegou à porta dos
fundos ficou surpreso e desapontado ao ver que o local estava
vazio.
— Tem alguém aí? — chamou.
— Estou na varanda, Mack — a voz de Papai veio através da
janela aberta. — Pegue alguma coisa para beber e venha para cá.
Mack se serviu de um pouco de café e saiu para a varanda da
frente. Papai estava reclinada numa velha cadeira, de olhos
fechados, absorvendo o sol.
— O que é isso? Deus tem tempo de pegar um solzinho? Não
tem nada melhor para fazer nesta tarde?
— Você não faz idéia do que estou fazendo neste momento.
Mack se encaminhou para outra cadeira do lado oposto e,
enquanto ele se sentava, Papai abriu um dos olhos. Sobre uma
mesinha entre os dois havia uma bandeja cheia de bolos
de aparência maravilhosa, manteiga fresca e vários tipos de geléia.
— Uau, o cheiro é fantástico! — exclamou ele.
— Pode mergulhar de cabeça. É uma receita que peguei da
sua bisavó. — Ela riu.
Mack mordeu um dos bolinhos. Ainda estava quente e
praticamente derreteu na boca.
— Uau! Isso é bom! Obrigado!
— Bom, você terá de agradecer à sua bisavó quando a vir.
— Espero que não seja muito em breve — disse Mack entre
duas mordidas.
— Você não gostaria de saber? — perguntou Papai com uma
piscadela brincalhona e voltando a fechar os olhos.
Enquanto comia outro bolinho, Mack juntou coragem para
abrir o coração.
— Papai? — perguntou e, pela primeira vez, chamar Deus de
Papai não pareceu estranho.
— Sim, Mack? — respondeu ela, abrindo os olhos e sorrindo
com prazer.
— Eu fui muito duro com você.
— Humm, Sophia deve tê-lo afetado.
— Nem fale! Eu não fazia idéia de que estava julgando você.
Foi terrivelmente arrogante.
— Porque você estava mesmo — respondeu Papai com um
sorriso.
— Sinto muito. Eu realmente não fazia idéia... — Mack
balançou a cabeça, triste.
— Mas agora isso está no passado, que é o lugar onde deve
estar. Não quero que fique triste com isso, Mack. Só quero que
possamos crescer juntos.
— Também quero — disse Mack pegando outro bolinho. —
Não vai comer nenhum?
— Não, vá em frente. Você sabe como é, a gente vai provando
uma coisa e outra e acaba usando todo o apetite. Aproveite. —
Empurrou a bandeja na direção dele.
Mack pegou mais um bolinho e recostou-se para saboreá-lo.
— Jesus disse que foi você quem me deu um tempo com
Missy esta tarde. Não sei como agradecer!
— Ah, de nada, querido. Isso também me deu uma grande
alegria! Eu estava tão ansiosa para colocar vocês dois juntos que
mal conseguia esperar.
— Gostaria tanto que Nan estivesse aqui!
— Teria sido perfeito! — concordou Papai, empolgada.
Ficaram em silêncio por alguns instantes.
— Missy não é especial? — Ela balançou a cabeça sorrindo.
— Minha nossa, gosto especialmente daquela menina.
— Eu também! — Mack deu um sorriso largo e pensou na
sua princesa atrás da cachoeira.
— Princesa? Cachoeira? Espere um minuto! — Papai ficou
olhando enquanto as peças se encaixavam.
— Obviamente você conhece o fascínio da minha filha por
cachoeiras e pela lenda da princesa Multnomah.
Papai assentiu.
— É disso que se trata? Ela teve de morrer para que você
me mudasse?
— Espere aí, Mack. — Papai se inclinou. — Não é assim que
eu faço as coisas.
— Mas ela adorava tanto aquela história!
— Claro que sim. Por isso ela foi capaz de entender o que
Jesus fez por ela e por toda a raça humana. As histórias sobre
uma pessoa disposta a trocar sua vida pela de outra são um fio
de ouro em seu mundo e revelam tanto suas necessidades quanto
o meu coração.
— Mas se ela não tivesse morrido eu não estaria aqui agora...
— Mack, eu crio um bem incrível a partir de tragédias
indescritíveis, mas isso não significa que as orquestre. Nunca
pense que o fato de eu usar algo para um bem maior significa que
eu o provoquei ou que preciso dele para realizar meus propósitos.
Essa crença só vai levá-lo a idéias falsas a meu respeito. A graça
não depende da existência do sofrimento, mas onde há
sofrimento você encontrará a graça de inúmeras maneiras.
— Na verdade, isso é um alívio. Eu não suportaria pensar que
minha dor poderia ter cortado a vida dela.
— Ela não foi seu sacrifício, Mack. Ela é e sempre será sua
alegria. Este é um propósito suficiente para Missy.
Mack se recostou de novo na cadeira, examinando a vista da
varanda.
— Estou me sentindo preenchido!
— Bom, você comeu quase todos os bolinhos.
— Não é isso — ele riu —, e você sabe. O mundo
simplesmente parece mil vezes mais luminoso e estou me sentindo
mil vezes mais leve.
— E está, Mack! Não é fácil ser o juiz de todo o mundo.
O sorriso de Papai tranqüilizou Mack, que se sentia pisando
em terreno seguro.
— Ou julgar você. Eu estava numa tremenda confusão... pior
do que pensava. Havia me enganado totalmente com relação a
quem você é na minha vida.
— Não totalmente, Mack. Nós tivemos alguns momentos
maravilhosos também.
— Mas sempre gostei mais de Jesus do que de você. Ele
parecia tão bondoso e você tão...
— Má? É triste, não é? Jesus veio para mostrar como eu sou,
e a maioria só acredita nisso com relação a ele. Ainda acham que
fazemos o gênero "policial bom/policial mau", especialmente as
pessoas religiosas. Quando querem que os outros façam o que
elas acham certo, precisam de um Deus severo. Quando precisam
de perdão, correm para Jesus.
— É isso mesmo — concordou Mack.
— Mas nós estávamos nele. Ele refletia exatamente o meu
coração. Eu amo vocês e os convido a me amarem.
— Mas por que eu? Quer dizer, por que Mackenzie Allen
Phillips? Por que você ama alguém tão ferrado? Depois de todas as
coisas que eu senti em relação a você e de todas as acusações que
fiz, por que você se incomodaria em vir ao meu encontro?
— Porque é isso que o amor faz — respondeu Papai. —
Lembre-se, Mackenzie, eu não fico pensando nas escolhas que
você fará. Eu já sei. Vamos imaginar, por exemplo, que estou
tentando ensinar você a não se esconder dentro de mentiras — ela
piscou. — E digamos que eu sei que você vai ter que passar por 47
situações antes de me ouvir com clareza suficiente para concordar
comigo e mudar. Então, quando na primeira vez você não me ouve,
não fico frustrada nem desapontada, fico empolgada. Só faltam 46
vezes. E essa primeira vez será um tijolo para construir uma ponte
de cura que um dia, que hoje, você atravessará.
— Certo, agora estou me sentindo culpado — admitiu ele.
— Sério, Mackenzie, isso não tem nada a ver com culpa. A
culpa jamais vai ajudá-lo a encontrar a liberdade em mim. O
máximo de que ela é capaz é fazer você se esforçar mais para se
ajustar a alguma ética exterior. Eu me importo com o interior.
— Mas o que você disse... Quero dizer, sobre se esconder
atrás de mentiras. Acho que fiz isso, de um modo ou de outro,
durante a maior parte da vida.
— Querido, você é um sobrevivente. Não há vergonha nisso.
Seu pai machucou você de um modo feroz. A vida machucou você.
As mentiras são um dos lugares mais fáceis para onde os
sobreviventes correm. Elas dão um sentimento de segurança, um
lugar onde você só precisa contar consigo mesmo. Mas é um lugar
escuro, não é?
— Demais — murmurou Mack balançando a cabeça.
— Mas você está disposto a abrir mão do poder e da
segurança que esse lugar lhe promete? Esta é a questão.
— Como assim? — perguntou Mack olhando-a.
— As mentiras são uma pequena fortaleza onde você pode se
sentir seguro e poderoso.
Dentro de sua pequena fortaleza de mentiras você tenta
governar sua vida e manipular os outros. Mas a fortaleza precisa
de muros, por isso você constrói alguns. Os muros são
as justificativas para suas mentiras. Você sabe, como se estivesse
fazendo isso para proteger alguém que você ama ou para impedir
que essa pessoa sinta dor. Qualquer coisa que funcione para que
você se sinta bem com as mentiras.
— Mas o motivo pelo qual não contei a Nan sobre o bilhete foi
porque isso iria lhe causar muita dor.
— Está vendo, Mackenzie, como você precisa se justificar? O
que você disse é uma mentira descarada, mas você não consegue
ver. — Ela se inclinou para a frente. — Quer que eu lhe diga qual é
a verdade?
Mack sabia que Papai estava indo fundo, mas ainda assim
sentiu alívio e ficou tentado a quase rir alto. Estava à vontade.
— Na-ã-ão — respondeu lentamente e deu um risinho para
ela. — Mas vá em frente, de qualquer modo.
Ela sorriu de volta, depois ficou séria.
— A verdade, Mack, é que o motivo real para você ter mentido
a Nan não foi para evitar que ela sofresse. O verdadeiro motivo foi
que você estava com medo de enfrentar as emoções que poderiam
surgir, tanto as dela quanto as suas. As emoções o amedrontam,
Mack. Você mentiu para se proteger e não para protegê-la!
Ele se recostou. Papai estava absolutamente certa.
— E, além disso — continuou ela —, uma mentira dessas é
desamor. Tendo como justificativa o fato de se importar com Nan,
sua mentira prejudicou seu relacionamento com ela e o
relacionamento dela comigo. Se você tivesse contado, talvez ela
estivesse conosco aqui, agora.
As palavras de Papai acertaram Mack como um soco no
estômago.
— Você queria que ela viesse também?
— Isso seria uma decisão sua e dela, se ela tivesse tido a
chance de tomá-la. O ponto, Mack, é que você não sabe o que teria
acontecido porque estava ocupado demais tentando proteger a
Nan.
De novo ele estava afundando na culpa.
— Então o que faço agora?
— Conte a ela, Mackenzie. Enfrente o medo de sair do escuro
e conte a ela, peça perdão e deixe que o perdão dela o cure. Peça
que ela reze por você, Mack. Assuma os riscos da honestidade.
Quando fizer outra besteira, peça perdão de novo. É um processo,
querido, e a vida é suficientemente real sem precisar ser
obscurecida por mentiras. E, lembre-se, eu sou maior do que as
suas mentiras. Posso agir para além delas. Mas isso não as
torna certas nem impede o dano que elas causam ou a dor que
provocam nos outros.
— E se ela não me perdoar? — Mack sabia que esse era um
medo muito profundo com o qual convivia. Era mais seguro
continuar lançando novas mentiras na pilha crescente das velhas.
— Ah, esse é o risco da fé, Mack. A fé não cresce na casa da
certeza. Não estou aqui para lhe dizer que Nan vai perdoá-lo.
Talvez ela não queira ou não possa, mas minha vida dentro de você
vai tomar conta do risco e da incerteza para transformá-lo. Por
meio de suas escolhas, você passará a ser um contador de
verdades e esse será um milagre muito maior do que ressuscitar os
mortos.
Mack se recostou e deixou que as palavras dela assentassem.
— Por favor, perdoe-me — disse finalmente.
— Já fiz isso há muito tempo, Mack. Se não acredita,
pergunte a Jesus. Ele estava lá.
Mack tomou um gole de café, surpreso ao descobrir que a
bebida continuava quente.
— Mas eu me esforcei tremendamente para trancar você do
lado de fora da minha vida.
— As pessoas são persistentes quando se trata de garantir
sua independência imaginária. Elas acumulam e guardam a
doença como se fosse um bem precioso. Encontram sua identidade
e seu valor na mutilação e os guardam com cada grama de força
que possuem. Não é de espantar que a graça seja tão pouco
atraente. Nesse sentido você tentou trancar a porta do seu coração
por dentro.
— Mas não consegui.
— Porque meu amor é muito maior do que sua estupidez —
disse Papai, com uma piscadela. — Eu usei suas escolhas para
atingir meus propósitos. Há muitas pessoas como você, Mackenzie,
que terminam se trancando num lugar muito pequeno com um
monstro que acabará traindo-as, que não as preencherá nem lhes
dará o que elas imaginavam. Quando ficam prisioneiras de um
terror desses, têm de novo a oportunidade de retornar para mim. O
tesouro em que elas confiavam irá se tornar seu desastre.
— Então você usa a dor para forçar as pessoas a voltar? —
Era óbvio que Mack não aprovava isso.
Papai se inclinou e tocou gentilmente a mão de Mack.
— Querido, eu também o perdoei por pensar que eu poderia
ser assim. Entendo como é difícil para você começar a perceber,
quanto mais imaginar, o que são o verdadeiro amor e a bondade.
Porque você está tão perdido em suas percepções da realidade e ao
mesmo tempo tão seguro de seus julgamentos. O amor verdadeiro
nunca força. — Ela apertou a mão dele e se recostou na cadeira.
— Mas, se eu entendi o que está dizendo, as conseqüências
de nosso egoísmo fazem parte do processo que nos leva ao fim de
nossas ilusões e nos ajuda a encontrar você. É por isso que você
não impede as coisas ruins que nos acontecem? Por isso não me
avisou que Missy estava correndo perigo nem nos ajudou a
encontrá-la? — O tom de acusação estava ausente da voz de Mack.
— Se ao menos fosse tão simples, Mackenzie! Ninguém sabe
de que horrores eu salvei o mundo, porque as pessoas não podem
ver as coisas que jamais aconteceram. Todo o mal decorre da
independência e a independência foi a escolha que vocês fizeram.
Se fosse simples anular todas as escolhas de independência, o
mundo que você conhece deixaria de existir e o amor não teria
significado. O mundo não é um playground onde eu mantenho
todos os meus filhos livres do mal. O mal é o caos, mas não terá a
palavra final. Agora ele toca todos que eu amo, os que me seguem
e os que não me seguem. Se eu eliminar as conseqüências das
escolhas das pessoas, destruo a possibilidade do amor. O amor
forçado não é amor.
Mack passou as mãos pelos cabelos e suspirou.
— É simplesmente muito difícil de entender.
— Querido, deixe-me dizer um dos motivos pelos quais isso é
tão difícil de entender. É porque você tem uma visão muito
pequena do que significa ser humano. Você e a Criação são
incríveis, quer você entenda ou não. Vocês são absolutamente
maravilhosos. Só porque fazem escolhas horrendas e destrutivas,
isso não significa que mereçam menos respeito pelo que são por
essência: o auge da minha Criação e o centro do meu afeto.
— Mas... — começou Mack.
— Além disso — interrompeu ela —, não se esqueça de que
no meio de toda a sua dor e da sua mágoa você está rodeado por
beleza, pela maravilha da Criação, pela arte, pela música, pela
cultura, pelos sons de riso e amor, de esperanças sussurradas e de
celebrações, de vida nova e de transformações, de reconciliação e
perdão. Essas coisas também são resultado de suas escolhas e
toda escolha é importante, mesmo as ocultas. Então, que escolhas
não deveriam ter sido feitas, Mackenzie? Será que eu nunca
deveria ter criado? Será que Adão deveria ter sido impedido antes
de escolher a independência? Que tal a escolha de ter outra filha,
ou a escolha de seu pai de espancar o filho? Você exige
sua independência, mas depois reclama por eu amá-lo o bastante
para responder ao seu pedido.
Mack sorriu.
— Já ouvi isso antes.
Papai sorriu de volta e pegou um pedaço de bolo.
— Eu disse que Sophia mexeu com você. Mackenzie, meus
propósitos não existem para o meu conforto nem para o seu. Meus
propósitos são sempre e somente uma expressão de amor. Eu me
proponho a trabalhar a vida a partir da morte, a trazer a liberdade
de dentro do que está partido, a transformar a escuridão em luz. O
que você vê como caos, eu vejo como desdobramento. Todas as
coisas devem se desdobrar, ainda que isso ponha todos os que eu
amo no meio de um mundo de tragédias horríveis, mesmo os que
são mais próximos de mim.
— Está falando de Jesus, não é? — perguntou Mack
baixinho.
— É, eu adoro aquele garoto. — Papai afastou o olhar e
balançou a cabeça. — Tudo tem a ver com ele, você sabe. Um dia
vocês vão entender do que ele abriu mão. Simplesmente não
existem palavras.
Mack podia sentir as emoções crescendo. Algo o tocou
profundamente ao ouvir Papai falar do filho. Hesitou antes de
perguntar, mas finalmente rompeu o silêncio:
— Papai, pode me ajudar a entender uma coisa? O que
exatamente Jesus realizou ao morrer?
Ela ainda estava olhando para a floresta.
— Ah — e balançou a mão. — Não muita coisa. Apenas a
essência de tudo que o amor se propunha desde antes dos
alicerces da Criação — declarou Papai em tom casual. Depois se
virou e sorriu.
— Uau, isso é amplo demais. Pode diminuir só um
pouquinho? — perguntou Mack, achando-se ousado assim que as
palavras saíram de sua boca.
Em vez de ficar chateado, Papai sorriu para ele.
— Nossa, você está ficando metidinho! A gente dá a mão e
eles logo querem o braço.
Mack devolveu o sorriso, mas não disse nada.
— Como falei, tudo tem a ver com ele. A Criação e a história
têm tudo a ver com Jesus. Ele é o centro de nosso propósito e nele
agora somos totalmente humanos, de modo que o nosso propósito
e o destino de vocês estão ligados para sempre. Não existe
qualquer outro plano.
— Parece bem arriscado — comentou Mack.
— Talvez para vocês, mas não para mim. Nunca houve dúvida
de que conseguirei o que eu desejava desde o início. — Papai se
inclinou e cruzou os braços sobre a mesa. — Querido, você
perguntou o que Jesus realizou na cruz. Então agora me ouça
com cuidado: a morte dele e sua ressurreição foram a razão pela
qual eu agora estou totalmente reconciliado com o mundo.
— Com o mundo inteiro? Quer dizer, com os que acreditam
em você, não é?
— Com o mundo inteiro, Mack. Estou dizendo que a
reconciliação é uma rua de mão dupla e eu fiz a minha parte,
totalmente, completamente, definitivamente. Não é da natureza do
amor forçar um relacionamento, mas é da natureza do amor abrir
o caminho.
Após dizer isso, Papai levantou-se e pegou alguns pratos para
levar para a cozinha.
Mack balançou a cabeça e ergueu os olhos.
— Então eu realmente não entendo o que é reconciliação e
realmente morro de medo de emoções. É isso?
Papai não respondeu imediatamente, mas balançou a cabeça.
Mack a ouviu resmungar e murmurar, como se falasse com ela
mesma:
— Homens! Algumas vezes são tão idiotas!
Ele não podia acreditar.
— Ouvi Deus me chamar de idiota? — gritou pela porta de
tela. Viu-a dar de ombros antes de desaparecer na virada do
corredor.
Depois ela gritou em sua direção:
— Se a carapuça serve, querido. Sim senhor, se a carapuça
serve...
Mack riu e se recostou na cadeira. Sentia-se exausto. O
tanque do cérebro estava mais do que cheio, assim como o
estômago. Levou o resto dos pratos para a cozinha, depositou-os
na bancada, deu um beijo no rosto de Papai e foi para a porta dos
fundos.


14. VERBOS E OUTRAS LIBERDADES
Deus é um Verbo.
— Buckminster Fuller
Mack saiu para o sol do meio da tarde. Sentia uma mistura
estranha, como se estivesse ao mesmo tempo torcido como um
trapo e plenamente vivo. Que dia incrível tinha sido aquele e ainda
estavam no meio da tarde! Por um momento ficou indeciso, antes
de ir até o lago. Quando viu as canoas amarradas ao cais, sentiu
uma certa resistência, mas a idéia de entrar numa e passear pelo
lago o energizou pela primeira vez em anos.
Desamarrando a última, na extremidade do cais, entrou
cautelosamente e começou a remar para o outro lado. Nas duas
horas seguintes circulou pelo lago, explorando recantos e fendas.
Encontrou dois rios e alguns córregos que, vindo de cima,
alimentavam o lago e a seguir o esvaziavam na direção das bacias
inferiores. Descobriu um lugar perfeito para ficar à deriva olhando
a cachoeira. Flores alpinas brotavam em toda parte, acrescentando
manchas de cor à paisagem. Era o sentimento de paz mais intenso
e consistente que Mack experimentava havia uma enormidade de
tempo — se é que jamais havia experimentado.
Chegou a cantar algumas músicas só porque teve vontade.
Cantar também era algo que não fazia há muito tempo. Recuou ao
passado e começou a cantarolar a musiquinha ingênua
que costumava cantar para Kate: "K-K-K-Katie... linda Katie, você é
a única que eu adoro..."
Balançou a cabeça ao pensar na filha, tão forte e tão frágil.
Imaginou qual seria o modo de alcançar o coração dela. Não se
surpreendia mais com a facilidade com que as lágrimas chegavam
aos seus olhos.
Num determinado ponto virou-se para olhar os redemoinhos
feitos pelo remo e quando se virou de novo Sarayu estava sentada
na proa, olhando-o. Aquela presença súbita o fez dar um pulo.
— Nossa! — exclamou ele. — Você me assustou.
— Desculpe, Mackenzie, mas o jantar está quase pronto e é
hora de voltar para a cabana.
— Você estava comigo o tempo todo? — perguntou Mack,
consciente do jorro de adrenalina.
— Claro. Sempre estou com você.
— Então por que não percebi? Ultimamente consigo saber
quando você está por perto.
— O fato de você saber ou não saber não tem nada a ver com
o fato de eu estar aqui. Sempre estou com você. Algumas vezes
quero que não perceba especialmente a minha presença.
Mack assentiu, entendendo, e virou a canoa para a margem
distante onde ficava a cabana. A presença dela provocava um
arrepio na coluna. Os dois sorriram simultaneamente.
— Sempre poderei ver ou ouvir você como agora, mesmo
quando estiver de volta em casa?
Sarayu sorriu.
— Mackenzie, você sempre pode falar comigo e eu sempre
estarei com você, quer sinta minha presença ou não.
— Agora sei disso, mas vou escutar você?
— Vai aprender a ouvir meus pensamentos nos seus,
Mackenzie — ela garantiu.
— Vai ser claro? E se eu confundir você com outra voz? E se
eu errar?
Sarayu riu e o som parecia o de água cascateando, como se
fosse música.
— Claro que você vai errar. Todo mundo erra, mas vai
começar a reconhecer melhor minha voz à medida que nosso
relacionamento for crescendo.
— Não quero errar — resmungou Mack.
— Ah, Mackenzie, os erros fazem parte da vida e Papai
trabalha seus propósitos neles também.
Sarayu estava achando divertido e Mack não pôde evitar um
sorriso. Dava para entender muito bem o que ela dizia.
— Isso é muito diferente de tudo que eu conhecia, Sarayu.
Não me entenda mal, adoro o que vocês me deram neste fim de
semana. Mas não faço idéia de como voltar à minha vida normal.
Tenho a sensação de que era mais fácil viver com Deus quando eu
pensava Nele como o mestre exigente ou mesmo quando eu tinha
que conviver com a solidão da Grande Tristeza.
— Você acha? De verdade?
— Pelo menos dava a impressão de que as coisas estavam sob
controle.
— Dava a impressão é o termo certo. O que você ganhou com
isso? A Grande Tristeza e uma dor insuportável, uma dor que se
derramava até mesmo sobre as pessoas de quem você mais gosta.
— Segundo Papai, isso é porque eu tenho medo de emoções.
Sarayu riu alto.
— Achei aquela conversinha hilariante.
— Eu tenho medo de emoções — admitiu Mack, meio
perturbado porque ela parecia não dar importância. — Não gosto
da sensação que elas produzem. Magoei outros por causa das
minhas emoções e não consigo confiar nelas. Vocês criaram todas,
ou só as boas?
— Mackenzie. — Sarayu pareceu se erguer no ar. Ainda era
difícil olhar diretamente para ela, mas com o sol do fim da tarde se
refletindo na água ficava ainda pior. — As emoções são as cores da
alma. São espetaculares e incríveis. Quando você não sente, o
mundo fica opaco e sem cor. Pense em como a Grande Tristeza
reduziu a gama de cores na sua vida para matizes monótonos,
cinza e pretos.
— Então me ajude a entendê-las — implorou Mack.
— Na verdade, não há muito o que entender. As emoções
simplesmente são. Nem boas nem ruins, apenas existem. Eis algo
que vai ajudá-lo a entender melhor, Mackenzie. Os paradigmas dão
força às percepções e as percepções dão força às emoções. Não se
assuste, vou explicar. A maioria das emoções são reações àquilo
que você percebe: o que acha verdadeiro numa determinada
situação. Se sua percepção for falsa, sua reação emocional a ela
também será falsa. Então verifique suas percepções e além disso
verifique a verdade de seus paradigmas, dos seus padrões, daquilo
em que você acredita. Só porque você acredita firmemente numa
coisa não significa que ela seja verdadeira. Disponha-se
a reexaminar aquilo em que acredita. Quanto mais você viver na
verdade, mais suas emoções irão ajudá-lo a ver com clareza. Mas,
mesmo então, não confie mais nelas do que em mim.
Mack deixou o remo girar nas mãos, permitindo que ele
seguisse os movimentos da água.
— Tenho a impressão de que viver a partir do relacionamento
com você, confiando e falando com você, é bem mais complicado
do que simplesmente seguir as regras.
— Que regras são essas, Mackenzie?
— Você sabe, todas as coisas que as Escrituras dizem que
devemos fazer.
— Certo... — disse ela com alguma hesitação. — E quais são
elas?
— Você sabe — respondeu ele com um certo sarcasmo. —
Fazer o bem e evitar o mal, ser caridoso com os pobres, ler a
Bíblia, rezar e ir à igreja. Coisas assim.
— Sei. E como isso funciona para você?
Ele riu.
— Bom, nunca fiz nada disso muito bem. Tenho momentos
melhores, mas sempre há algo com que estou lutando ou algo que
me faz sentir culpado. Acabei de pensar que precisava me esforçar
mais, porém acho difícil manter essa motivação.
— Mackenzie! — Seu tom era de censura, as palavras voando
com afeto. — A Bíblia não lhe diz para seguir regras. Ela é uma
imagem de Jesus. Ainda que as palavras possam lhe dizer como
Deus é e o que Ele pode querer de você, é impossível fazer isso
sozinho. A vida está Nele e em mais ninguém. Minha nossa, será
possível que você se ache capaz de viver a retidão de Deus
sozinho?
— Bom, acho que sim, mais ou menos... — disse ele sem
graça. — Mas você tem de admitir que as regras e os princípios são
mais simples do que os relacionamentos.
— É verdade que os relacionamentos são muito mais
complicados do que as regras, mas as regras nunca vão lhe dar as
respostas para as questões profundas do coração. E nunca irão
amar você.
Mergulhando a mão na água, ele brincou, vendo a
repercussão de seus movimentos.
— Estou percebendo como tenho poucas respostas... para
qualquer coisa. Você me virou de cabeça para baixo e pelo avesso,
ou sei lá o quê.
— Mackenzie, a religião tem a ver com respostas certas e
algumas dessas respostas são de fato certas. Mas eu tenho a ver
com o processo que leva você à resposta viva, e só ele é capaz de
mudá-lo por dentro. Há muitas pessoas inteligentes que dizem um
monte de coisas certas a partir do cérebro porque aprenderam com
alguém quais são as respostas certas. Mas essas pessoas não me
conhecem. Assim, na verdade, como as respostas delas podem ser
certas, mesmo que estejam certas? — Ela sorriu. — Ficou confuso?
Mas pode ter certeza: mesmo que possam estar certas, elas estão
erradas.
— Entendo o que você está dizendo. Eu fiz isso durante anos,
depois da escola dominical. Tinha as respostas certas algumas
vezes, mas não conhecia vocês. Este fim de semana,
compartilhando a vida com vocês, foi muito mais esclarecedor do
que todas aquelas respostas.
Continuaram a se mover preguiçosamente na água.
— Então verei você de novo? — perguntou ele, hesitando.
— Claro. Você pode me ver numa obra de arte, na música, no
silêncio, nas pessoas, na Criação, mesmo na sua alegria e na sua
tristeza. Minha capacidade de me comunicar é ilimitada, vivendo e
transformando, e tudo isso sempre estará sintonizado com
a bondade e o amor de Papai. E você irá me ouvir e me ver na
Bíblia de modos novos. Simplesmente não procure regras e
princípios. Procure o relacionamento: um modo de estar conosco.
— Mesmo assim não será o mesmo do que ter você na proa
do meu barco.
— Não, mas será muito melhor do que você pode imaginar,
Mackenzie. E, quando você finalmente dormir neste mundo,
teremos uma eternidade juntos, face a face.
E então ela sumiu. Apesar de ele saber que não havia sumido
de verdade.
— Então, por favor, ajude-me a viver na verdade — disse
Mack em voz alta. "Talvez isso seja uma oração", pensou.
* * *
Quando entrou no chalé, Mack viu que Jesus e Sarayu já
estavam lá, sentados em volta da mesa. Papai estava ocupada
como sempre, trazendo pratos de comidas com
cheiros maravilhosos. Era evidente a ausência de qualquer
verdura. Mack foi para o banheiro se lavar e quando retornou os
outros três já haviam começado a comer. Puxou a quarta cadeira e
sentou-se.
— Vocês realmente não precisam comer, não é? — perguntou,
enquanto começava a colocar em sua tigela algo que parecia uma
fina sopa de frutos do mar, com lulas, peixes e outras iguarias
indefinidas.
— Não precisamos fazer nada — declarou Papai com certa
ênfase.
— Então por que comem?
— Para estar com você, querido. Você precisa comer. Então,
que desculpa melhor para ficarmos juntos?
— De qualquer modo, todos nós gostamos de cozinhar —
acrescentou Jesus. — E eu gosto um bocado de comida. Nada
como uns deliciosos pratos salgados para deixar felizes as papilas
gustativas. Acompanhe isso com um pudim de caramelo ou
um tiramisu e chá quente. Humm! Nada pode ser melhor.
Todos riram, depois voltaram a passar os pratos e a se servir.
Enquanto comia, Mack ouvia a conversa animada entre os três.
Falavam e riam como velhos amigos que se gostavam e se
conheciam mais intimamente do que qualquer outro ser humano.
Mack sentia inveja da conversa despreocupada mas respeitosa e se
perguntou o que seria necessário para compartilhar isso com Nan
e talvez até com alguns amigos.
De novo ficou pasmo com a maravilha e o puro absurdo do
momento. Voltavam-lhe à mente as conversas incríveis que o
haviam envolvido nas 24 horas anteriores. Uau! Só estivera ali por
um dia? E o que deveria fazer com isso quando voltasse para casa?
Sabia que contaria tudo a Nan. Ela podia não acreditar e
Mack não iria culpá-la, pois ele provavelmente também não
acreditaria.
À medida que sua mente ia acelerando, ele sentiu que se
afastava dos outros e fechou os olhos. Nada disso podia ser real.
De repente houve um silêncio de morte. Abriu devagar um dos
olhos, esperando acordar de novo em casa. Em vez disso, Papai,
Jesus e Sarayu o estavam encarando com sorrisos no rosto. Ele
nem tentou se explicar. Sabia que eles sabiam.
Em vez disso, apontou para um dos pratos e perguntou:
— Posso experimentar um pouco disso?
As interações foram retomadas e dessa vez ele escutou. Mas
de novo sentiu que ia se afastando. Para reagir, decidiu fazer uma
pergunta.
— Por que vocês nos amam, os humanos? Eu acho... —
Percebeu que não havia formulado bem a pergunta. — Acho que o
que eu quero perguntar é: por que vocês me amam, quando não
tenho nada para lhes oferecer?
— Pense um pouco nisso, Mack — respondeu Jesus. — Você
não experimenta uma forte sensação de liberdade ao saber que não
pode nos oferecer nada, pelo menos nada capaz de acrescentar ou
diminuir o que somos? Isso deve trazer um grande alívio,
porque elimina qualquer exigência de comportamento.
— E você ama mais os seus filhos quando eles se comportam
bem? — acrescentou Papai.
— Não. Estou entendendo. — Mack fez uma pausa. — Mas eu
me sinto mais realizado porque eles estão na minha vida. E vocês?
— Não — respondeu Papai. — Já somos totalmente realizados
em nós mesmos. Vocês estão destinados a viver em comunhão
também, já que são feitos à nossa imagem. Assim, sentir isso por
seus filhos ou por qualquer coisa que "acrescente" é perfeitamente
natural e certo. Lembre-se, Mackenzie, que por natureza eu não
sou um ser humano, apesar de termos escolhido estar com você
neste fim de semana. Sou verdadeiramente humano em Jesus,
mas sou algo totalmente separado em minha natureza.
— Você sabe, claro que sabe — disse Mack em tom de
desculpa —, que eu só posso seguir essa linha de raciocínio até um
determinado ponto e depois me perco e meu cérebro parece
derreter.
— Entendo — admitiu Papai. — É impossível compreender
com a mente algo que você não pode experimentar.
Mack pensou nisso por um momento.
— Acho que sim... Pois é... Está vendo? Está derretendo.
Quando os outros pararam de rir, Mack prosseguiu:
— Vocês sabem como me sinto grato por tudo, mas jogaram
coisas demais no meu colo neste fim de semana. O que faço
quando voltar? Qual é sua expectativa com relação a mim, agora?
Jesus e Papai se viraram para Sarayu, que estava com o garfo
cheio de alguma coisa a caminho da boca. Ela pousou-o
lentamente de volta no prato e depois respondeu à expressão
confusa de Mack.
— Mack — começou ela —, você deve perdoar esses dois. Os
humanos têm uma tendência a estruturar a linguagem de acordo
com sua independência e com sua necessidade de comportamento.
Assim, quando ouço a linguagem sofrer abusos em favor das
regras e não ser usada para compartilhar a vida conosco, é difícil
permanecer em silêncio.
— Como deve ser — acrescentou Papai.
— Então o que foi exatamente que eu disse? — perguntou
Mack, agora bastante curioso.
— Mack, vá em frente e termine de mastigar. Nós podemos
conversar enquanto você come.
Mack percebeu que também estava com o garfo a caminho da
boca. Mastigou agradecido o bocado enquanto Sarayu começava a
falar. À medida que fazia isso, ela pareceu se alçar da cadeira e
tremeluzir com uma dança de tons e cores sutis,
enchendo suavemente a sala com uma variedade de aromas.
— Deixe-me responder com uma pergunta. Por que você acha
que nós criamos os Dez Mandamentos?
De novo Mack estava com o garfo a meio caminho da boca,
mas mesmo assim mastigou o bocado enquanto pensava na
resposta.
— Acho, pelo menos foi o que me ensinaram, que é um
conjunto de regras que vocês esperavam que os humanos
obedecessem para viver com retidão e em estado de graça perante
vocês.
— Se isso fosse verdade, e não é — respondeu Sarayu —,
quantos você acha que viveram com retidão suficiente para entrar
em nossas boas graças?
— Não muitos, se as pessoas são como eu.
— Na verdade, só um conseguiu: Jesus. Ele obedeceu a letra
da lei e realizou completamente o espírito dela. Mas entenda,
Mackenzie: para fazer isso, ele teve de confiar totalmente em mim e
depender totalmente de mim.
— Então por que vocês nos deram esses mandamentos?
— Na verdade, queríamos que vocês desistissem de tentar ser
justos sozinhos. Era um espelho para revelar como o rosto fica
imundo quando se vive com independência.
— Mas tenho certeza de que vocês sabem que há muitos que
acham que se tornam justos seguindo as regras.
— Mas é possível limpar o rosto com o mesmo espelho que
mostra como você está sujo? Não há misericórdia nem graça nas
regras, nem mesmo para um erro. Por isso Jesus realizou todas
elas por vocês, para que elas não tivessem mais poder sobre vocês.
Agora ela estava com força total, as feições crescendo e
movendo-se.
— Mas tenha em mente que, se você viver sua vida sozinho e
de forma independente, a promessa é vazia. Jesus afastou a
exigência da lei. Ela não tem mais poder de acusar ou comandar.
Jesus é a promessa e o cumprimento.
— Está dizendo que não preciso seguir as regras? — Agora
Mack havia parado completamente de comer e estava concentrado
na conversa.
— Sim. Em Jesus você não está sob nenhuma lei. Todas as
coisas são legítimas.
— Não pode estar falando sério! — gemeu Mack.
— Criança — interrompeu Papai —, você ainda não ouviu
nada.
— Mackenzie — continuou Sarayu —, só têm medo da
liberdade os que não podem confiar que nós vivemos neles. Tentar
manter a lei é na verdade uma declaração de independência, um
modo de manter o controle.
— É por isso que gostamos tanto da lei? Para nos dar algum
controle? — perguntou Mack.
— É muito pior do que isso — retomou Sarayu. — Ela dá o
poder de julgar os outros e de se sentir superior a eles. Vocês
acreditam que estão vivendo num padrão mais elevado do
que aqueles a quem vocês julgam. Aplicar regras, sobretudo em
suas expressões mais sutis, como responsabilidade e expectativa, é
uma tentativa inútil de criar a certeza a partir da incerteza. E, ao
contrário do que você possa pensar, eu gosto demais da incerteza.
As regras não podem trazer a liberdade. Elas só têm o poder de
acusar.
— Uau! — De repente Mack percebeu o que Sarayu havia
dito. — Está dizendo que a responsabilidade e a expectativa são
apenas outra forma de regras? Ouvi direito?
— É — exclamou Papai de novo. — Agora chegamos ao ponto:
Sarayu, ele é todo seu!
Mack procurou concentrar-se em Sarayu, o que não era uma
tarefa simples.
Sarayu sorriu para Papai e de novo para Mack. Começou a
falar lenta e decididamente:
— Mackenzie, eu sempre prefiro um verbo a um substantivo.
Parou e esperou. Mack não tinha muita certeza de ter entendido.
— Hein?
— Eu — ela abriu as mãos para incluir Jesus e Papai — sou
um verbo. Sou o que sou. Serei o que serei. Sou um verbo! Sou
viva, dinâmica, sempre ativa e em movimento. Sou um ser-verbo.
Mack tinha uma expressão vazia no rosto. Entendia as
palavras, mas ainda não achava o sentido.
— E, como minha essência é um verbo — continuou ela —,
sou mais ligada a verbos do que a substantivos. Verbos como
confessar, arrepender-se, viver, amar, responder, crescer, colher,
mudar, semear, correr, dançar, cantar e assim por diante. Os
humanos, por outro lado, gostam de pegar um verbo vivo e cheio
de graça e transformá-lo num substantivo ou num princípio morto
que fede a regras. Os substantivos existem porque existe um
universo criado e uma realidade física, mas, se o universo for
apenas uma massa de substantivos, ele está morto. A não ser "eu
sou", não existem verbos e os verbos são o que torna o universo
vivo.
— E... — Mack ainda estava lutando, mas pareceu que um
brilho de luz começava a iluminar seu pensamento. — E isso
significa exatamente o quê?
Sarayu pareceu não se perturbar com sua falta de
entendimento.
— Para que alguma coisa se mova da morte para a vida, você
precisa colocar algo vivo e móvel na mistura. Passar de uma coisa
que é apenas um substantivo para algo dinâmico e imprevisível,
para algo vivo e no tempo presente — um verbo —, é mover-se da
lei para a graça. Posso dar alguns exemplos?
— Por favor. Sou todo ouvidos.
Jesus deu um risinho e Mack piscou para ele antes de se
voltar para Sarayu. A sombra levíssima de um sorriso atravessou o
rosto dela enquanto retomava:
— Então vamos usar suas duas palavras: responsabilidade e
expectativa. Antes que suas palavras se tornassem substantivos,
eram nomes que continham movimento e experiência: a
capacidade de reagir e a prontidão. Minhas palavras são vivas e
dinâmicas, cheias de vida e possibilidades. As suas são mortas,
cheias de leis, medo e julgamento. Por isso você não encontrará a
palavra responsabilidade nas Escrituras.
— Minha nossa! — Mack franziu a testa, começando a
perceber aonde isso ia dar. — Por outro lado, nós a usamos um
bocado.
Ela continuou:
— A religião usa a lei para ganhar força e controlar as
pessoas de que precisa para sobreviver. Eu, ao contrário, dou a
capacidade de reagir e sua reação é estar livre para amar e servir
em todas as situações. Por isso, cada momento é diferente, único e
maravilhoso. Como sou sua capacidade de reagir livremente, tenho
de estar presente em vocês. Se eu simplesmente lhes desse uma
responsabilidade, não teria de estar com vocês. A responsabilidade
seria uma tarefa a realizar, uma obrigação a cumprir, algo para
vencer ou fracassar.
— Minha nossa, minha nossa — disse Mack outra vez, sem
muito entusiasmo.
— Usemos o exemplo da amizade e veremos que remover o
elemento de vida de um substantivo pode alterar um
relacionamento. Mack, se você e eu somos amigos, há
uma prontidão dentro de nosso relacionamento. Quando nos
vemos ou quando estamos separados, há a prontidão de estarmos
juntos, de rirmos e falarmos. Essa prontidão não tem definição
concreta: é viva, dinâmica, e tudo que emerge do fato de estarmos
juntos é um dom único que não é compartilhado por mais
ninguém. Mas o que acontece se eu mudar "prontidão" por
"expectativa", verbalizada ou não? Subitamente a lei entra
no nosso relacionamento. Agora você espera que eu aja de um
modo que atenda às suas expectativas. Nossa amizade viva se
deteriora rapidamente e se torna uma coisa morta, com regras e
exigências. Não tem mais a ver com nós dois, mas com o que os
amigos devem fazer ou com as responsabilidades de um bom
amigo.
— Ou — observou Mack — com as responsabilidades de
marido, de pai, empregado ou qualquer outra coisa. Entendi.
Prefiro viver na prontidão.
— Eu também — disse Sarayu.
— Mas — argumentou Mack —, se não tivéssemos
expectativas e responsabilidades, tudo não iria simplesmente
desmoronar?
— Só se você fizer parte do mundo fora de mim, regido pela
lei. As responsabilidades e as expectativas são a base para a culpa,
a vergonha e o julgamento. Elas fornecem a estrutura que faz do
comportamento a base para a identidade e o valor de alguém.
Você sabe muito bem como é não atender às expectativas de
alguém.
— Sei mesmo! — murmurou Mack. — É uma idéia que me
traz tristes lembranças. — Parou brevemente, com um novo
pensamento relampejando. — Você está dizendo que não tem
expectativas com relação a mim?
Agora Papai falou:
— Querido, eu nunca tive expectativas com relação a você
nem a ninguém. A idéia por trás disso exige que alguém não saiba
o futuro ou o resultado e esteja tentando controlar o
comportamento do outro para chegar ao resultado desejado. Os
humanos tentam esse controle principalmente por meio das
expectativas. Eu o conheço e sei tudo sobre você. Por que teria
uma expectativa diferente daquilo que já sei? Seria idiotice. E,
além disso, como não a tenho, vocês nunca me desapontam.
— O quê? Você nunca ficou desapontado comigo? — Mack
estava se esforçando bastante para digerir isso.
— Nunca! — declarou Papai enfaticamente. — O que tenho é
uma prontidão constante e viva no nosso relacionamento e lhe dou
a capacidade de reagir a qualquer situação e circunstância em que
você se encontrar. Se passar a contar com expectativas
e responsabilidades, você não me conhece nem confia em mim.
— E pela mesma razão — exclamou Jesus — você vive no
medo.
— Mas... — Mack não estava convencido. — Mas você não
quer que a gente estabeleça prioridades? Você sabe: Deus
primeiro, depois sei lá o quê, seguido por mais não sei o quê?
— O problema de viver segundo prioridades — disse Sarayu
— é que se vê tudo como uma hierarquia, uma pirâmide, e você e
eu já falamos sobre isso. Se você puser Deus no topo, o que isso
realmente significa? Quanto tempo você me dá antes de poder
cuidar do resto do seu dia, da parte que lhe interessa muitíssimo
mais?
Papai interrompeu de novo.
— Veja bem, Mackenzie, eu não quero simplesmente um
pedaço de você e da sua vida. Mesmo que você pudesse, e não
pode, me dar o pedaço maior, não é isso que eu quero. Quero você
inteiro e todas as partes de você e de seu dia.
Agora Jesus falou de novo.
— Mack, não quero ser o primeiro numa lista de valores.
Quero estar no centro de tudo. Quando vivo em você, podemos
viver juntos tudo que acontece com você. Em vez de uma pirâmide,
quero ser como o centro de um móbile, onde tudo em sua vida —
seus amigos, sua família, seu trabalho, os pensamentos, as
atividades — esteja ligado a mim, mas se movimente ao vento,
para dentro e para fora, para trás e para a frente, numa incrível
dança do ser.
— E eu — concluiu Sarayu — sou o vento. — Ela deu um
sorriso enorme e fez uma reverência.
Houve silêncio enquanto Mack procurava se controlar.
Estivera segurando a borda da mesa com as duas mãos, como se
quisesse agarrar algo tangível diante daquele tiroteio de idéias e
imagens.
— Bom, chega disso — declarou Papai, levantando-se da
cadeira. — É hora de diversão! Vocês vão em frente enquanto eu
tiro as coisas que podem estragar. Cuido dos pratos mais tarde.
— E as orações? — perguntou Mack.
— Nada é um ritual, Mack — disse Papai, pegando alguns
pratos de comida. — Portanto, esta noite vamos fazer uma coisa
diferente. Você vai gostar!
Enquanto se levantava e se virava para acompanhar Jesus
até a porta dos fundos, Mack sentiu uma mão no ombro e virou-se.
Sarayu estava parada ali, olhando-o com intensidade.
— Mackenzie, se você me permitir, gostaria de lhe dar um
presente para esta noite. Posso tocar seus olhos e curá-los só por
esta noite?
Mack ficou surpreso.
— Eu enxergo bastante bem.
— Na verdade — disse Sarayu em tom de desculpa —, você vê
muito pouco, embora para um ser humano enxergue bastante
bem. Mas só por esta noite eu adoraria que você visse um pouco
do que nós vemos.
— Então está bem — concordou Mack. — Por favor, toque
meus olhos e até mais, se quiser.
Enquanto Sarayu estendia as mãos para ele, Mack fechou os
olhos. O toque dela era como gelo, inesperado e empolgante. Um
tremor delicioso o atravessou e Mack ergueu as mãos para segurar
as dela junto ao rosto. Não havia nada ali e ele começou
lentamente a abrir os olhos.


15. UM FESTIVAL DE AMIGOS
"Você pode dizer adeus a sua família e a seus
amigos e afastar-se milhas e milhas e, ao mesmo
tempo, carregá-los em seu coração, em sua mente,
em seu estômago, pois você não apenas vive no
mundo, mas o mundo vive em você."
— Frederick Buechner, Telling The Truth
Quando abriu os olhos, Mack teve de protegê-los
imediatamente de uma luz muito intensa que o ofuscou. Depois
ouviu algo.
— Você vai achar muito difícil olhar diretamente para mim —
disse a voz de Sarayu — ou para Papai. Mas, à medida que sua
mente se acostumar às mudanças, será mais fácil.
Ele estava parado no mesmo lugar onde fechara os olhos,
mas a cabana havia sumido, assim como o cais e a carpintaria.
Estava ao ar livre, no topo de uma pequena colina, sob um
céu noturno brilhante mas sem lua. Podia ver as estrelas em
movimento, tranqüilamente e com precisão, como se houvesse
grandes condutores celestiais coordenando seus movimentos.
Ocasionalmente, como se recebendo um comando, cometas e
chuvas de meteoros rolavam por entre as estrelas, acrescentando
variação à dança. Então Mack viu algumas estrelas crescerem e
mudarem de cor. Era como se o tempo tivesse se tornado dinâmico
e volátil, juntando-se à imagem celestial aparentemente caótica,
mas administrada com precisão.
Ele se virou para Sarayu, que ainda estava ao seu lado.
Apesar de ser difícil olhar diretamente para ela, agora podia
vislumbrar simetria e cores engastadas em padrões, como
se minúsculos diamantes, rubis e safiras tivessem sido costurados
numa roupa de luz que se movia primeiro em ondas e depois se
espalhava em partículas.
— É tudo incrivelmente lindo! — sussurrou ele.
— É verdade. — A voz de Sarayu vinha da luz. — Agora,
Mackenzie, olhe ao redor.
Ele ficou boquiaberto. Mesmo na escuridão da noite, tudo
tinha clareza e brilhava com halos de luz em vários tons e cores.
Embora a floresta estivesse incendiada de luz e cor, cada árvore e
cada folha eram distintamente visíveis. Pássaros criavam uma
trilha de fogo colorido ao voarem se perseguindo. À distância, um
exército da Criação parecia estar a postos: cervos, ursos, cabritos
monteses e alces majestosos desfilavam perto das bordas da
floresta, lontras e castores no lago, cada um luzindo com cores
chamejantes.
Miríades de pequenas criaturas saltavam e voavam por toda
parte, cada uma em sua própria glória.
Num jorro de chamas, uma águia-pescadora mergulhou em
direção à superfície do lago, mas mudou o curso no último
instante e roçou a superfície, com fagulhas caindo como neve nas
águas. Atrás dela, uma grande truta vestida de arco-íris rompeu
a superfície e mergulhou de volta em meio a um borrifo de cores.
Mack sentiu-se maior do que a vida, como se pudesse estar
presente em todas as partes. Dois filhotes de urso brincavam ao pé
da mãe e, de onde estava, Mack, sem pensar, estendeu o braço
para tocá-los. Recolheu-o de volta, espantado ao perceber
que também chamejava. Olhou as mãos maravilhosamente
esculpidas e claramente visíveis dentro da cascata de cores de luz
que parecia cobri-las como luvas. Examinou o resto do corpo e
descobriu que a luz e a cor o envolviam completamente. Uma veste
de pureza que o revestia de liberdade e decência.
Também percebeu que não sentia dor, nem mesmo nas
juntas geralmente doloridas.
Na verdade, nunca havia se sentido tão bem, tão inteiro. Sua
cabeça estava límpida e ele respirava profundamente os perfumes
da noite e das flores.
Uma alegria delirante e deliciosa cresceu por dentro, e ele
flutuou lentamente no ar, retornando suavemente ao chão. "É
como se eu voasse em um sonho", pensou.
Então Mack viu as luzes. Pontos em movimento emergiam da
floresta, convergindo para a campina abaixo onde ele estava com
Sarayu. Agora podia vê-los no alto das montanhas ao redor,
aparecendo e desaparecendo enquanto vinham em sua
direção seguindo caminhos e trilhas invisíveis.
Chegou à campina um exército de crianças. Não havia velas
— elas próprias eram luzes. E, dentro de sua própria
luminosidade, cada uma vestia roupas diferentes que Mack
imaginou que correspondiam a tribos diversas. Eram as crianças
da Terra, os filhos de Papai. Acercaram-se com dignidade e graça
silenciosa, rostos cheios de contentamento e paz, as maiores
segurando as mãos das menores.
Por um momento Mack se perguntou se Missy estaria ali,
mas logo desistiu. Achou que, se estivesse e quisesse ir ao seu
encontro, correria para ele. Agora as crianças haviam formado um
círculo enorme na campina, deixando um caminho aberto a
partir das proximidades de onde Mack estava, bem no centro.
Pequenos jorros de fogo e luz, como flashes fotográficos,
espocavam lentamente, acendendo-se quando as crianças riam ou
sussurravam. Embora Mack não fizesse idéia do que estava
acontecendo, elas obviamente sabiam.
Emergindo na clareira atrás delas e formando outro círculo
de luzes maiores, apareceram adultos cheios de cores brilhantes,
mas discretas.
De repente a atenção de Mack foi atraída por um movimento
incomum. Parecia que um dos seres de luz no círculo externo
estava tendo alguma dificuldade. Clarões e lanças de cor violeta e
marfim saltavam em forma de breves arcos na noite, sendo
substituídos por tons de orquídea, ouro e vermelho flamejante,
jorros ardentes e luminosos de luz que explodiam indo ao encontro
da escuridão ao redor.
Sarayu deu um risinho.
— O que está acontecendo? — sussurrou Mack.
— Há um homem com dificuldade para conter o que está
sentindo. A pessoa que não conseguia se controlar agitava as que
estavam próximas. O efeito de ondulação era claramente visível à
medida que a luz flamejante se estendia até o círculo de crianças.
As mais próximas do instigador pareciam reagir conforme as cores
e luzes fluíam delas para ele. As combinações que emergiam
eram únicas, diferentes da cor daquele que estava provocando a
agitação.
— Ainda não entendo — sussurrou Mack de novo.
— Mackenzie, o padrão de cor e luz é único em cada pessoa;
não há dois iguais, nenhum padrão se repete. Aqui podemos ver
uns aos outros verdadeiramente porque cada personalidade e cada
emoção são visíveis como cor e luz.
— Isso é incrível! — exclamou Mackenzie. — Então por que as
cores das crianças são principalmente brancas?
— Se você se aproximar, verá que elas têm muitas cores
individuais que se fundiram no branco. À medida que elas
amadurecerem e crescerem, as cores irão se tornar mais distintas
e emergirão tons e matizes únicos.
— Incrível! — foi tudo que Mack conseguiu dizer. Olhou com
mais atenção e notou que por trás do círculo de adultos haviam
surgido outros, igualmente espaçados, ao redor de todo o
perímetro. Eram chamas mais altas, aparentemente soprando com
as correntes de ar, e tinham cores semelhantes, de safira e azulágua,
com pedacinhos únicos de outras cores engastados em cada
um.
— Anjos — respondeu Sarayu antes que Mack pudesse
perguntar. — Servidores e guardiões.
— Incrível! — exclamou Mack mais uma vez.
— Há mais, Mackenzie, e isso vai ajudá-lo a entender o
problema que aquele indivíduo está tendo. — Ela apontou na
direção da agitação que continuava, lançando luzes e cores súbitas
e abruptas na direção deles.
— Não somente conseguimos ver a especificidade de cada
pessoa em cor e luz como reagimos também usando cor e luz. Essa
reação é muito difícil de controlar e geralmente não deve ser
contida, como esse homem está tentando. É mais natural deixar
que a reação simplesmente se expresse.
— Não entendo — hesitou Mack. — Está dizendo que
podemos reagir uns aos outros em cores?
— Sim — Sarayu assentiu. — Cada relacionamento entre
duas pessoas é absolutamente único. Por isso você não pode amar
duas pessoas da mesma maneira. Simplesmente não é possível.
Você ama cada pessoa de modo diferente por ela ser quem ela é e
pela especificidade do que ela recebe de você. E quanto mais vocês
se conhecem, mais ricas são as cores desse relacionamento.
Mack escutava ao mesmo tempo que olhava o que acontecia à
volta. Sarayu continuou:
— Vou dar um exemplo para você entender melhor. Suponha,
Mack, que você está com um amigo numa lanchonete. Você está
concentrado no companheiro e, se tiver olhos para ver, perceberá
que os dois estão envolvidos numa variedade de cores e luzes que
marcam não apenas o que cada um é especificamente, mas
também a especificidade do relacionamento entre vocês e das
emoções que estão experimentando.
— Mas... — Mack começou a perguntar e foi interrompido.
— Mas suponha — continuou Sarayu — que outra pessoa
que você ama entre na lanchonete e, embora esteja envolvido pela
conversa com o primeiro amigo, você nota a entrada do outro. De
novo, se você tivesse olhos para ver a realidade mais
ampla, testemunharia que uma combinação única de cor e luz
saltaria de você e se enrolaria no que acabou de chegar,
representando você em outra forma de amá-lo e recebê-lo. Mais
uma coisa, Mackenzie: a especificidade não é somente visual, mas
também sensorial. Você pode sentir, cheirar e até mesmo sentir o
gosto dela.
— Adoro isso! — exclamou Mack. — Mas, a não ser por
aquele lá — apontou na direção das luzes agitadas ao redor do
adulto —, por que todos estão calmos? Eu imaginaria
que houvesse cor por todo lado. Eles não se conhecem?
— A maioria se conhece muito bem, mas estão aqui para uma
comemoração que não tem nada a ver com eles nem com os
relacionamentos de uns com os outros, pelo menos não
diretamente — explicou Sarayu. — Eles estão esperando.
— O quê?
— Você verá logo — respondeu Sarayu e era óbvio que ela não
diria mais nada sobre o assunto.
— Então por que aquele está tendo tanta dificuldade e por
que ele parece concentrado em nós?
— Mackenzie — disse Sarayu com gentileza —, ele não está
concentrado em nós, está concentrado em você.
— O quê? — Mack ficou pasmo.
— Aquele que tem tanta dificuldade para se conter é o seu
pai.
Uma onda de emoções, uma mistura de raiva e anseio varreu
Mack.
Nesse momento as cores de seu pai explodiram da campina e
o envolveram. Ele ficou perdido num jorro de rubi e vermelhão,
magenta e violeta, à medida que a luz e a dor faziam um
redemoinho ao seu redor e o cobriam. E de algum modo, no meio
da tempestade que explodia, ele se viu correndo pela campina para
encontrar o pai, correndo para a fonte de cores e emoções. Era um
menininho querendo o pai e, pela primeira vez, não teve medo.
Estava correndo, sem se importar com coisa alguma além do
objeto do desejo de seu coração, e o encontrou. Seu pai estava de
joelhos, coberto de luz, lágrimas brilhando como uma cachoeira de
diamantes e jóias nas mãos que cobriam o rosto.
— Papai! — gritou Mack e jogou-se para o homem que nem
podia olhar o filho.
No uivo de vento e chamas, Mack segurou o rosto do pai com
as duas mãos, forçando-o a olhá-lo para que pudesse gaguejar as
palavras que sempre quisera dizer: "Papai, desculpe! Papai, eu te
amo!"
A luz de suas palavras pareceu explodir, afastando a
escuridão das cores do pai, transformando-as em vermelhosangue.
Os dois trocaram palavras soluçantes de confissão e
perdão. E um amor maior do que qualquer um dos dois os curou.
Finalmente se levantaram juntos, o pai abraçando o filho
como nunca pudera fazer antes. Foi então que Mack notou a onda
de uma canção passando sobre os dois, como se penetrasse no
lugar sagrado onde ele estava com o pai. Abraçados, incapazes de
falar em meio às lágrimas, eles ouviram a canção de reconciliação
que iluminava o céu noturno. Uma fonte de cor brilhante começou
a jorrar em arco entre as crianças, sobretudo entre as que haviam
sofrido mais, e ondulou ao passar de cada uma para a próxima,
levada pelo vento, até que todo o campo estivesse inundado de luz
e música.
De algum modo Mack soube que não era um momento para
conversar e que seu tempo com o pai estava passando
rapidamente. Para ele, a nova leveza que sentia era eufórica.
Beijando o pai nos lábios, virou-se e voltou para a pequena colina
onde Sarayu o esperava. Enquanto passava pelas fileiras de
crianças, pôde sentir o toque e as cores delas envolvendo-o
rapidamente e ficando para trás. De algum modo ele já
era conhecido e amado ali.
Quando chegou a Sarayu, ela o abraçou também e ele deixou
que ela o segurasse enquanto continuava a chorar. Quando
recuperou uma leve tranqüilidade, virou-se para olhar de novo a
campina, o lago e o céu noturno. Um silêncio baixou. A
antecipação era palpável. De repente, à direita, saindo da
escuridão, surgiu Jesus e o pandemônio irrompeu. Ele vestia uma
roupa branca e usava na cabeça uma coroa simples de ouro,
mas era, em cada centímetro do seu ser, o rei do universo.
Seguiu pelo caminho que se abriu à sua frente até chegar ao
centro — o centro de toda a Criação, o homem que é Deus e o
Deus que é homem. Luz e cor dançavam e teciam uma tapeçaria
de amor para ele pisar. Alguns choravam, dizendo palavras de
amor, enquanto outros simplesmente permaneciam de mãos
levantadas. Muitos daqueles cujas cores eram as mais ricas e
profundas estavam deitados com o rosto no chão. Tudo
que respirava cantava uma canção de amor e agradecimento sem
fim. Nessa noite o universo era como devia ser.
Quando chegou ao centro, Jesus parou para olhar em volta.
Seus olhos pousaram em Mack, que, parado na pequena colina,
ouviu Jesus sussurrar em seu ouvido:
— Mack, eu gosto especialmente de você. — Foi tudo que
Mack conseguiu suportar enquanto caía no chão dissolvendo-se
numa onda de lágrimas jubilosas. Não podia se mexer, preso no
abraço de Jesus, feito de amor e ternura.
Então ouviu Jesus dizer alto e claro, mas de modo muito
gentil e convidativo: "Venham!"
E eles foram, as crianças primeiro, depois os adultos, cada
um por sua vez, rindo, falando, abraçando-se e cantando com seu
Jesus. O tempo pareceu parar enquanto a dança celestial
prosseguia. E então cada um foi saindo até não restar ninguém, a
não ser as ardentes sentinelas azuis e os animais. Jesus caminhou
entre eles, chamando cada um pelo nome, e então os animais e
seus filhotes voltaram para as tocas, os ninhos e os leitos nas
pastagens.
Por fim estavam novamente sozinhos. O grito selvagem e
assombroso de um mergulhão ecoando sobre o lago pareceu
sinalizar o fim da celebração, e as sentinelas desapareceram ao
mesmo tempo. Os únicos sons que restavam eram os do coro de
grilos e sapos retomando suas canções de culto na margem da
água e nas campinas ao redor.
Sem uma palavra, os três se viraram e retornaram para a
cabana, que de novo se tornara visível para Mack. Como uma
cortina sendo puxada sobre seus olhos, de repente a visão voltou
ao normal. Ele teve uma sensação de perda e de ansiedade e
chegou a ficar um pouco triste, até que Jesus se aproximou, pegou
sua mão e apertou-a para assegurar que tudo era como devia ser.


16. MANHÃ DE TRISTEZAS
Um Deus infinito pode se dar inteiro a cada um de
seus filhos.
Ele não se distribui de modo que cada um tenha
uma parte,
mas a cada um ele se dá inteiro, tão integralmente
como se não houvesse outros.
— A. W. Tozer
Mack teve a sensação de que acabara de entrar num sono
profundo, sem sonhos, quando sentiu uma mão sacudindo-o para
acordar.
— Mack, acorde. É hora de irmos. — A voz era familiar, mas
profunda, como de alguém que também tivesse acabado de
acordar.
— Hein? — gemeu ele. — Que horas são? — murmurou
enquanto tentava descobrir onde estava e o que estava fazendo.
— É hora de ir! — repetiu o sussurro.
Mack saiu da cama resmungando e procurou até encontrar o
interruptor de luz. Depois da escuridão de breu, a claridade foi
ofuscante e ele demorou até conseguir abrir os olhos e se esforçar
para ver o visitante.
O homem parado junto dele se parecia um pouco com Papai:
digno, mais velho, magro e mais alto do que Mack. O cabelo muito
branco estava preso num rabo-de-cavalo, e o bigode e
o cavanhaque eram grisalhos. Camisa xadrez com mangas
enroladas, jeans e botas de caminhada completavam a vestimenta
de alguém pronto para pôr o pé na trilha.
— Papai? — perguntou Mack.
— Sim, filho.
Mack balançou a cabeça.
— Ainda está brincando comigo, não é?
— Sempre — disse ele com um sorriso. E, respondendo à
pergunta seguinte de Mack antes que ela fosse feita: — Nesta
manhã você vai precisar de um pai. Vamos indo. Tem tudo de que
você precisa na cadeira e na mesa ao pé da sua cama. Encontro-o
na cozinha, onde você pode comer alguma coisa antes de sairmos.
Mack assentiu. Não se incomodou em perguntar aonde
estaria indo. Se Papai desejasse que ele soubesse, teria dito. Vestiu
rapidamente as roupas do tamanho exato, semelhantes às de
Papai, e calçou um par de botas de caminhada. Parou rapidamente
no banheiro para se lavar e entrou na cozinha.
Jesus e Papai estavam perto da bancada, parecendo muito
mais descansados do que Mack. Ele já ia falar quando Sarayu
entrou pela porta dos fundos com um grande embrulho. Parecia
um longo saco de dormir, amarrado com uma tira presa em cada
ponta para ser carregado facilmente. Entregou-o a Mack e ele
sentiu imediatamente um perfume maravilhoso que vinha do
embrulho. Era uma mistura de ervas e flores aromáticas que ele
pensou reconhecer. Pôde sentir cheiro de canela e de hortelã junto
com sais e frutas.
— Isso é um presente para mais tarde. Papai vai lhe mostrar
como usá-lo. — Ela sorriu e ele sentiu uma espécie de abraço.
— Você pode carregar — acrescentou Papai. — Você colheu
essas plantas com Sarayu ontem.
— Meu presente vai esperar aqui até sua volta — sorriu Jesus
e também abraçou Mack.
Os dois saíram pelos fundos e Mack ficou sozinho com Papai,
que estava fritando ovos com bacon.
— Papai — perguntou Mack, surpreso ao ver como havia
ficado fácil chamá-lo assim. — Não vai comer?
— Nada é um ritual, Mackenzie. Você precisa disso, eu não.
— Ele sorriu. — Mastigue devagar. Você tem bastante tempo e
comer depressa demais não é bom para a digestão.
Mack comeu devagar e em silêncio, simplesmente
desfrutando a presença de Papai.
Num determinado momento, Jesus apareceu para informar
que havia posto as ferramentas de que precisariam do lado de fora
da porta. Papai agradeceu, Jesus lhe deu um beijo nos lábios e
saiu pela porta dos fundos.
Mack estava ajudando a limpar os poucos pratos quando
perguntou:
— Você realmente o ama, não é? Quero dizer, Jesus.
— Sei de quem você está falando — respondeu Papai, rindo.
Parou de lavar a frigideira. — De todo o coração! Imagino que haja
algo muito especial num filho unigênito. — Papai piscou para
Mack e continuou: — Isso faz parte do modo único pelo qual eu o
conheço.
Quando acabaram, Mack acompanhou Papai para fora. O
alvorecer se anunciava nos picos das montanhas, as cores do
nascer do sol invadindo o cinza da noite. Mack pegou o presente de
Sarayu e o pendurou no ombro. Papai lhe entregou uma pequena
picareta e pôs uma mochila às costas. Em seguida pegou uma pá
com uma das mãos, uma bengala com a outra e, sem dizer uma
palavra, passou pelo jardim e pelo pomar indo na direção do lado
direito do lago.
Quando chegaram ao início da trilha havia luz suficiente para
andar com facilidade.
Ali Papai parou e apontou a bengala para uma árvore fora do
caminho. Mack pôde ver que alguém marcara a árvore com um
pequeno arco vermelho quase imperceptível.
Aquilo não significava nada para ele e Papai não deu
explicação. Em vez disso, virou-se e seguiu pelo caminho, andando
com facilidade.
O presente de Sarayu era relativamente leve e Mack usou o
cabo da picareta como bengala. O caminho levou-os a atravessar
um dos riachos e a entrar mais fundo na floresta. Mack podia
ouvir Papai trauteando uma cantiga, mas não a reconheceu.
Enquanto andavam, Mack pensou na miríade de coisas que
experimentara nos dias anteriores. As conversas com cada um dos
três, juntos e separados, o tempo passado com Sophia, as orações
de que havia participado, a contemplação do céu estrelado
com Jesus, a caminhada pelo lago. A comemoração da noite
anterior completara tudo, até mesmo a reconciliação com seu pai
— tanta cura com tão poucas palavras. Era difícil absorver tal
quantidade de experiências e informações.
Enquanto pensava e avaliava o que havia aprendido, Mack
percebeu quantas perguntas ainda tinha para fazer. Mas sentia
que ainda não era hora. Sabia apenas que nunca mais seria o
mesmo e se perguntava o que significariam essas mudanças para
Nan e seus filhos, especialmente Kate. Mas havia uma coisa que o
estava incomodando. Por fim rompeu o silêncio.
— Papai?
— Sim, filho.
— Sophia me ajudou a entender muita coisa sobre Missy
ontem. E realmente foi útil conversar com Papai. Ah, quero dizer,
com você. — Mack estava confuso, mas Papai parou e sorriu como
se entendesse. Mack prosseguiu: — É estranho eu precisar
falar sobre isso com você também. Quero dizer, você é muito mais
do que um pai, se é que isso faz sentido.
— Entendo, Mackenzie. Estamos completando o círculo.
Perdoar seu pai ontem foi extremamente importante para você
poder me conhecer como pai hoje. Não precisa explicar mais.
De algum modo Mack sabia que estavam chegando ao fim de
uma jornada e que Papai estava trabalhando para ajudá-lo a dar
os últimos passos. Papai prosseguiu:
— Não havia possibilidade de criar a liberdade sem um custo,
como você sabe. — Papai olhou para baixo, com as cicatrizes
visíveis marcadas indelevelmente nos pulsos. — Eu sabia que
minha Criação iria se rebelar, que escolheria a independência e a
morte, e sabia o que me custaria abrir um caminho para a
reconciliação. A independência do ser humano liberou o que
parece a você um mundo de caos aleatório e apavorante.
Eu poderia ter impedido o que aconteceu com Missy? A resposta é
sim.
Mack olhou para Papai, os olhos fazendo a pergunta que não
precisava ser verbalizada. Ele continuou:
— Primeiro, se não tivesse havido a Criação, não haveria
essas questões.
Em segundo lugar, eu poderia ter optado por interferir
ativamente no que aconteceu com ela. Jamais considerei a
possibilidade de deixar de criar, e interferir no caso de Missy não
era uma opção, por causa de propósitos que você não pode
entender agora. Nesse ponto tudo que tenho a lhe oferecer como
resposta é o meu amor, minha bondade e meu relacionamento
com você. Eu não tive a intenção de fazer Missy morrer, mas isso
não significa que não possa usar a morte dela para o bem.
Mack balançou a cabeça, triste.
— Está certo. Não entendo direito. Por um segundo acho que
vou compreender, mas depois toda a dor da perda parece crescer e
me dizer que o que eu compreendi simplesmente não pode ser
verdade. Mas confio em você...
De repente irrompeu esse novo pensamento, surpreendente e
maravilhoso.
— Papai, eu confio em você!
Papai sorriu de volta para ele.
— Eu sei, filho, eu sei.
Virou-se e voltou a caminhar pela trilha, seguido por Mack,
agora com o coração mais leve e apaziguado. Logo começaram uma
subida relativamente fácil e o ritmo diminuiu. Ocasionalmente
Papai parava e batia numa pedra ou numa árvore grande
do caminho, indicando em cada uma a presença do pequeno arco
vermelho. Antes que Mack pudesse fazer a pergunta óbvia, Papai
se virava e continuava pela trilha.
À medida que avançavam, as árvores iam rareando e Mack
pôde vislumbrar campos rochosos onde deslizamentos de terra
haviam tirado trechos da floresta algum tempo antes de a trilha ser
aberta. Pararam uma vez para um rápido descanso e
Mack aproveitou para beber um pouco da água fresca que Papai
colocara nos cantis.
Pouco depois da parada, o caminho ficou bem íngreme e o
ritmo da caminhada diminuiu ainda mais. Mack achou que deviam
ter andado por quase duas horas quando saíram do meio das
árvores. Para chegar à trilha delineada na encosta adiante teriam
de passar por uma grande área de rochas e pedregulhos.
De novo papai parou, pousou sua mochila e enfiou a mão
dentro.
— Estamos quase chegando, filho — falou, entregando um
cantil a Mack.
— Estamos? — perguntou Mack, olhando para o solitário e
desolado terreno rochoso à frente.
— Estamos! — foi só o que Papai respondeu.
Papai escolheu uma pequena pedra perto do caminho e,
colocando a mochila e a pá ao lado, sentou-se. Parecia perturbado.
— Quero mostrar uma coisa que vai ser muito dolorosa para
você.
— Está bem. — O estômago de Mack começou a se revirar
enquanto ele se sentava e pousava a picareta e o presente de
Sarayu sobre os joelhos. Os aromas, reforçados pelo sol da manhã,
preencheram seus sentidos com beleza e trouxeram alguma paz. —
O que é?
— Para ajudá-lo a ver, quero tirar mais uma coisa que
obscurece seu coração.
Mack soube imediatamente o que era e olhou para o chão
entre seus pés. Papai falou gentilmente, tranqüilizando-o.
— Filho, isso não é para envergonhar você. Não uso
humilhação, nem culpa, nem condenação. Elas não produzem
uma fagulha de plenitude ou de justiça e por isso foram pregadas
em Jesus na cruz.
Esperou, deixando que esse pensamento penetrasse em Mack
e lavasse parte do sentimento de vergonha que ele sentia. Depois
continuou:
— Hoje estamos na trilha da cura para encerrar essa parte da
sua jornada. Não só para você, mas para outras pessoas também.
Hoje vamos jogar uma pedra grande no lago e as ondulações vão
chegar a lugares que você não imagina. Você já sabe o que eu
quero, não sabe?
— Acho que sim — murmurou Mack, sentindo emoções que
subiam aceleradas, saindo de um cômodo trancado em seu
coração.
— Filho, você precisa falar, precisa verbalizar isso.
Agora não havia como se conter e, enquanto lágrimas quentes
jorravam de seus olhos, Mack, soluçando, começou a confessar.
— Papai — ele disse chorando —, como posso perdoar aquele
filho da puta que matou minha Missy? Se ele estivesse aqui hoje,
não sei o que eu faria. Sei que não é certo, mas quero feri-lo como
ele me feriu... se eu não puder ter justiça, ainda quero vingança.
Papai simplesmente deixou a torrente sair de Mack,
esperando que a onda passasse.
— Mack, perdoar esse homem é entregá-lo a mim e permitir
que eu o redima.
— Redimi-lo? — De novo Mack sentiu o fogo da raiva e da
dor. — Não quero que você o redima! Quero que o machuque,
castigue, mande para o inferno... — Sua voz ficou no ar.
Papai esperou com paciência que as emoções passassem.
— Estou travado, Papai. Simplesmente não posso esquecer o
que ele fez, posso? — implorou Mack.
— Perdoar não significa esquecer, Mack. Significa soltar a
garganta da outra pessoa.
— Mas eu achava que você esquecia os nossos pecados.
— Mack, eu sou Deus. Não esqueço nada. Sei de tudo. Para
mim, esquecer é optar por me limitar. Filho — a voz de Papai ficou
baixa e Mack olhou-o diretamente nos olhos profundos e
castanhos —, por causa de Jesus, não há agora nenhuma lei
exigindo que eu traga seus pecados à mente. Eles se foram e não
interferem no nosso relacionamento.
— Mas esse homem...
— Ele também é meu filho. Quero redimi-lo.
— E depois? Você quer que eu simplesmente o perdoe, que
fique tudo bem e que nós nos tornemos amigos? — disse Mack
baixinho, mas com sarcasmo.
— Você não tem relacionamento com esse homem, pelo
menos ainda não tem. O perdão não estabelece um
relacionamento. Em Jesus eu perdoei todos os humanos por
seus pecados contra mim, mas só alguns escolheram relacionar-se
comigo. Mackenzie, você não vê que o perdão é um poder incrível,
um poder que você compartilha conosco, um poder que Jesus dá a
todos em quem ele reside, para que a reconciliação possa crescer?
Quando Jesus perdoou os que o pregaram à cruz, eles deixaram de
dever qualquer coisa, tanto a ele quanto a Mim. No meu
relacionamento com aqueles homens, jamais falarei do que eles
fizeram nem irei envergonhá-los ou constrangê-los.
— Não creio que eu seja capaz de fazer isso — respondeu
Mack baixinho.
— Quero que você faça. O perdão existe em primeiro lugar
para aquele que perdoa, para liberá-lo de algo que vai destruí-lo,
que vai acabar com sua alegria e capacidade de amar integral e
abertamente. Você acha que esse homem se importa com a dor e o
tormento que lhe causou? No mínimo ele se alimenta com seu
sofrimento. Você não quer cortar isso? Ao fazê-lo, irá libertar o
homem de um fardo que ele carrega, quer saiba ou não, quer
reconheça ou não. Quando você opta por perdoar o outro, você o
ama melhor.
— Eu não o amo.
— Hoje não, você não o ama. Mas eu amo, Mack, não pelo
que ele se tornou, mas pela criança mutilada e deformada pela dor.
Quero ajudá-lo a assumir a natureza que encontra mais poder no
amor e no perdão do que no ódio.
— Então isso significa — de novo Mack sentia um pouco de
raiva pela direção que a conversa havia tomado — que, se eu
perdoar esse homem, estarei deixando que ele brinque com Kate
ou com minha primeira neta?
— Mackenzie — Papai foi forte e firme. — Eu já lhe disse que
o perdão não cria um relacionamento. A não ser que as pessoas
falem a verdade sobre o que fizeram e mudem a mente e o
comportamento, não é possível um relacionamento de confiança.
Quando você perdoa alguém, certamente liberta essa pessoa do
julgamento, mas, se não houver uma verdadeira mudança, não
pode ser estabelecido nenhum relacionamento verdadeiro.
— Então o perdão não exige que eu finja que o que ele fez
nunca aconteceu?
— Como seria possível? Você perdoou seu pai ontem à noite.
Algum dia você vai esquecer o que ele lhe fez?
— Acho que não.
— Mas agora você pode amá-lo, apesar disso. A mudança dele
permite. O perdão não exige de modo algum que você confie
naquele a quem perdoou. Mas, caso essa pessoa finalmente
confesse e se arrependa, você descobrirá em seu coração um
milagre que irá lhe permitir estender a mão e começar a construir
uma ponte de reconciliação entre os dois. Algumas vezes, e isso
talvez pareça incompreensível para você agora, essa estrada pode
até mesmo levar ao milagre da confiança totalmente restaurada.
Mack escorregou para o chão e se recostou na pedra onde
estivera sentado. Examinou a terra sob seus pés.
— Papai, acho que entendo o que você está dizendo. Mas
parece que, se eu perdoar esse sujeito, ele vai ficar livre. Como
posso desculpá-lo pelo que fez? É justo para Missy deixar de ficar
com raiva dele?
— Mackenzie, o perdão não desculpa nada. Acredite, esse
homem pode ser qualquer coisa, menos livre. E você não tem o
dever de fazer justiça nesse caso. Eu cuidarei disso. E, quanto
a Missy, ela já o perdoou.
— Já? — Mack nem levantou os olhos. — Como pôde?
— Por causa de minha presença nela. É o único modo pelo
qual o verdadeiro perdão é possível.
Mack sentiu Papai sentar-se ao seu lado, no chão, mas não
olhou para cima. Enquanto os braços de Papai o envolviam,
começou a chorar.
— Deixe isso tudo sair — ouviu o sussurro de Papai e
finalmente se entregou. Fechou os olhos enquanto as lágrimas
jorravam. As lembranças de Missy inundaram de novo sua mente:
visões de livros de colorir, lápis de cor, vestido rasgado e
ensangüentado. Chorou até ter derramado toda a escuridão, todo o
anseio e a perda, até não restar nada.
Com os olhos fechados, balançando para trás e para a frente,
implorou:
— Me ajude, Papai. Me ajude! O que eu faço? Como posso
perdoá-lo?
— Diga a ele.
Mack levantou os olhos, como que esperando ver um homem
que nunca havia encontrado.
Mas não havia ninguém.
— Como, Papai?
— Só diga em voz alta. Há poder no que meus filhos
declaram.
Mack começou a sussurrar, primeiro hesitante, depois com
convicção crescente:
— Eu te perdôo. Eu te perdôo. Eu te perdôo.
Papai o abraçou com força.
— Mackenzie, você é uma alegria enorme.
Quando ele finalmente se controlou, Papai lhe entregou um
lenço umedecido para limpar o rosto. Depois Mack se levantou, a
princípio meio inseguro.
— Uau! — disse, rouco, tentando encontrar uma palavra
capaz de descrever a jornada emocional por que havia passado.
Sentia-se vivo.
Entregou o lenço de volta a Papai e perguntou: — Então, tudo
bem se eu ainda sentir raiva?
Papai foi rápido em responder:
— Sem dúvida! O que ele fez foi terrível. Ele causou uma dor
tremenda a muitas pessoas. Isso é errado e a raiva é a resposta
certa para algo tão errado. Mas não deixe que a raiva, a dor e a
perda que você sente o impeçam de perdoar e de tirar as mãos do
pescoço dele.
Papai pegou sua mochila e a colocou no ombro.
— Filho, talvez você tenha de declarar seu perdão uma
centena de vezes no primeiro e no segundo dia, mas a cada dia
serão menos vezes, até que um dia você perceberá que perdoou
completamente. E vai chegar o momento em que rezará pela
plenitude dele e o entregará a mim, para que meu amor queime na
vida dele qualquer vestígio de corrupção. Por mais incompreensível
que possa parecer no momento, talvez um dia você conheça esse
homem num contexto diferente.
Mack gemeu. Por mais que tudo que escutava lhe revirasse o
estômago, no coração ele sabia que era verdade. Os dois se
levantaram e Mack se virou na trilha para voltar na direção de
onde tinham vindo.
— Mack, nós não terminamos.
Mack parou.
— Verdade? Achei que era por isso que você me trouxe aqui.
— Era, mas eu lhe disse que tinha uma coisa para mostrar,
uma coisa que você me pediu para fazer. Estamos aqui para levar
Missy para casa.
De repente tudo fez sentido. Ele olhou o presente de Sarayu e
percebeu para que servia. Em algum lugar naquela paisagem
desolada o assassino havia escondido o corpo de Missy e eles
tinham vindo recuperá-lo.
— Obrigado — foi tudo que pôde dizer enquanto de novo uma
cascata de lágrimas rolava por seu rosto, como se viesse de um
reservatório infinito. — Odeio todas essas lágrimas, esse negócio de
ficar chorando como um idiota — ele gemeu.
— Ah, filho — disse Papai com ternura. — Jamais
desconsidere a maravilha das suas lágrimas. Elas podem ser águas
curativas e uma fonte de alegria. Algumas vezes são as melhores
palavras que o coração pode falar.
Mack parou e encarou Papai. Jamais havia olhado para um
amor, uma delicadeza, uma esperança e uma alegria tão puras.
— Mas você prometeu que um dia não haverá mais lágrimas.
Estou ansioso por isso.
Papai sorriu, encostou os dedos no rosto de Mack e
gentilmente enxugou as faces marcadas pelas lágrimas.
— Mackenzie, este mundo está cheio de lágrimas, mas, se
você lembra, prometi que seria Eu quem iria enxugá-las de seus
olhos.
Mack conseguiu sorrir enquanto sua alma continuava a se
derreter e se curar no amor desse Pai.
— Aqui — disse Papai e lhe entregou um cantil. — Tome um
bom gole. Não quero ver você se encolhendo como uma ameixa
seca antes de tudo isso acabar.
Mack não conseguiu evitar uma gargalhada que a princípio
pareceu deslocada, mas que depois, pensando bem, soube que era
perfeita. Era um riso de esperança e de alegria restauradas... do
processo de encerramento.
Papai foi à frente. Antes de deixar o caminho principal e
seguir por uma trilha que penetrava na massa de pedras
espalhadas, parou e com sua bengala bateu numa pedra grande.
Indicou para Mack o mesmo arco vermelho. E Mack descobriu que
o caminho que estavam seguindo fora marcado pelo homem que
levara sua filha. Enquanto caminhavam, Papai explicou a Mack
que nenhum corpo fora encontrado porque esse homem procurava
lugares para escondê-los meses antes de seqüestrar as meninas.
No meio da área pedregosa, Papai saiu do caminho e entrou
num labirinto de pedras e paredões da montanha, não sem antes
apontar novamente para a marca, agora familiar, numa face de
rocha próxima. Mack podia ver que, a não ser que a pessoa
soubesse o que estava procurando, as marcas passariam
facilmente despercebidas. Dez minutos depois Papai parou diante
de uma fenda onde dois afloramentos de pedra se encontravam.
Havia uma pequena pilha de pedregulhos na base, um deles
com o símbolo do assassino.
— Pode me ajudar? — pediu a Mack e começou a retirar as
pedras maiores. — Isso esconde a entrada de uma caverna.
Assim que a entrada ficou livre, eles tiraram com a picareta e
a pá a terra endurecida e o cascalho que bloqueavam a passagem.
De repente o resto de entulho cedeu e apareceu a entrada de uma
pequena caverna que provavelmente já fora a toca de algum
animal durante a hibernação. Um odor rançoso de podridão saiu,
deixando Mack engasgado.
Papai enfiou a mão na extremidade do rolo dado por Sarayu e
tirou um pedaço de pano do tamanho de um lenço de cabeça.
Amarrou-o em volta da boca e do nariz de Mack e imediatamente
um cheiro doce cortou o fedor da caverna.
Só havia espaço suficiente para entrarem se arrastando.
Tirando uma poderosa lanterna da mochila, Papai se enfiou
primeiro no buraco, com Mack logo atrás, ainda levando o presente
de Sarayu.
Só demoraram alguns minutos para encontrar o tesouro
agridoce. Num pequeno afloramento de rocha, Mack viu o corpo
que ele presumiu ser o de Missy, de rosto para cima, coberto por
um pano sujo e apodrecido. No mesmo instante soube que
a verdadeira Missy não estava ali.
Papai desembrulhou o que Sarayu lhes dera e no mesmo
instante a toca se encheu de maravilhosos perfumes vivos. O pano
por baixo do corpo de Missy era frágil, mas Mack conseguiu
levantá-la e colocá-la no meio de todas as flores e especiarias.
Então Papai a enrolou com ternura e levou-a até a entrada. Mack
saiu primeiro e Papai lhe passou o tesouro. Nenhuma palavra fora
dita, a não ser as de Mack, que murmurava baixinho:
— Eu te perdôo... eu te perdôo...
Antes de deixarem o local, Papai pegou a rocha com o arco
vermelho e colocou-a sobre a entrada. Mack não prestou muita
atenção, pois estava absorvido pelos próprios pensamentos,
enquanto segurava com ternura o corpo da filha junto ao coraçã


17. ESCOLHAS DO CORAÇÃO
Não há sofrimento na Terra que o Céu não possa
curar.
— Autor desconhecido
Chegaram de volta ao chalé em pouco tempo. Jesus e Sarayu
esperavam perto da porta dos fundos. Jesus aliviou Mack
gentilmente do fardo e juntos foram à carpintaria onde ele
estivera trabalhando. Mack não entrava ali desde que chegara e
ficou surpreso com a simplicidade do lugar. A luz, atravessando
grandes janelas, captava e refletia o pó de madeira que ainda
pairava no ar. As paredes e as bancadas, cobertas com todo tipo de
ferramentas, estavam dispostas para facilitar as atividades da
carpintaria. Este era claramente o santuário de um mestre artesão.
À frente deles estava o trabalho que Jesus estivera fazendo,
uma obra de arte para guardar os restos de Missy. Ao examinar a
caixa, Mack reconheceu imediatamente os relevos na madeira.
Detalhes da vida de Missy estavam nela esculpidos. Havia um
relevo de Missy com seu gato, Judas, e outro com Mack sentado
numa cadeira lendo uma história para ela. Toda a família aparecia
em cenas trabalhadas na lateral e em cima: Nan e Missy fazendo
bolinhos, a viagem ao lago Wallowa com o teleférico subindo a
montanha e até Missy colorindo o livro na mesa do acampamento,
com uma representação caprichada do broche de joaninha que o
assassino deixara. Havia também um relevo exato de Missy de pé
sorrindo e olhando para a cachoeira, ciente de que seu pai estava
do outro lado. Entremeados com as cenas estavam as flores
e animais prediletos de Missy.
Mack abraçou Jesus e este lhe sussurrou ao ouvido:
— Foi Missy quem ajudou a escolher as cenas.
O abraço de Mack ficou mais forte e demorado.
— Temos o lugar perfeito preparado para o corpo dela — disse
Sarayu, que se aproximara. — Mackenzie, é no nosso jardim.
Com grande cuidado puseram os restos de Missy na caixa,
colocando-a num leito de grama e musgo macios, e depois
encheram com as flores e especiarias do embrulho de Sarayu.
Fecharam a tampa, Jesus e Mack pegaram as extremidades e
levaram o caixão para fora, seguindo Sarayu até o local do pomar
que Mack ajudara a limpar. Ali, entre cerejeiras e pessegueiros,
rodeado por orquídeas e lírios, fora aberto um buraco no
lugar onde Mack havia desenraizado os arbustos floridos na
véspera. Papai esperava-os. Assim que a caixa enfeitada foi posta
gentilmente no chão, ele deu um grande abraço em Mack, que
retribuiu com a mesma intensidade.
Sarayu se adiantou e disse com um floreio e uma reverência:
— Sinto-me honrada em cantar a canção que Missy compôs
exata mente para esta ocasião.
E começou a cantar com uma voz que parecia vento de
outono: um som de folhas balançando e florestas adormecendo
lentamente, tons da noite chegando e uma promessa de novos
dias. Era a cantiga insistente que ele ouvira Sarayu e Papai
cantarolarem antes.
Agora Mack escutava as palavras de sua filha:
Respire em mim... fundo,
Para que eu respire... e viva.
E me abrace apertado para eu dormir
Suavemente segura por tudo que você dá.
Venha me beijar, vento, e tire meu fôlego
Até que você e eu sejamos um só,
E dançaremos entre os túmulos
Até que toda a morte se vá.
E ninguém sabe que existimos
Nos braços um do outro,
A não ser Aquele que soprou o hálito
Que me esconde livre do mal
Venha me beijar, vento, e tire meu fôlego
Até que você e eu sejamos um só,
E dançaremos entre os túmulos
Até que toda a morte se vá.
Quando ela terminou houve silêncio, e depois Deus, todos os
três, disseram simultaneamente:
— Amém.
Mack ecoou o amém, pegou uma das pás e, com a ajuda de
Jesus, começou a encher o buraco, cobrindo o caixão onde
descansava o corpo de Missy.
Quando a tarefa terminou, Sarayu enfiou a mão dentro da
roupa e pegou seu frasco pequeno e frágil. Derramou algumas
gotas da preciosa coleção na mão e começou a espalhar as
lágrimas de Mack no solo rico e preto sob o qual dormia o corpo de
Missy. As gotas caíram como diamantes e rubis, e onde pousavam
brotavam flores instantaneamente, abrindo-se ao sol luminoso.
Então Sarayu parou um momento, olhando com intensidade
uma pérola que repousava em sua mão, uma lágrima especial, e
depois deixou-a cair no centro do terreno. Imediatamente
uma pequena árvore rompeu a terra e começou a se desdobrar,
jovem, luxuriante e espantosa, crescendo e amadurecendo até se
abrir em brotos e flores. Então Sarayu, no seu modo de
brisa sussurrante, virou-se e sorriu para Mack, que estivera
olhando hipnotizado.
— É uma árvore da vida, Mack, crescendo no jardim do seu
coração.
Papai chegou perto e pôs o braço em seu ombro.
— Missy é incrível, você sabe. Ela o ama muitíssimo.
— Sinto uma falta terrível dela... ainda dói demais.
— Eu sei, Mackenzie. Eu sei.
* * *
Era pouco mais de meio-dia quando os quatro retornaram do
jardim e entraram de novo no chalé. Não havia nada preparado na
cozinha nem qualquer comida sobre a mesa de jantar. Papai levouos
para a sala de estar, onde sobre a mesinha de centro havia
uma taça de vinho e um pão recém-assado. Sentaram-se todos,
menos Papai, que permaneceu de pé. Ele dirigiu suas palavras a
Mack.
— Mackenzie, temos uma coisa para você refletir. Enquanto
esteve conosco, você foi curado e aprendeu muito.
— Acho que isso é um eufemismo — riu Mack.
Papai sorriu.
— Você sabe o quanto nós gostamos de você. Mas agora há
uma escolha a ser feita. Você pode permanecer conosco e
continuar a crescer e aprender ou pode retornar à sua outra casa,
a Nan, seus filhos e amigos.
De qualquer modo, prometo que sempre estarei com você.
Mack se recostou e pensou.
— E Missy? — perguntou.
— Bom, se você optar por ficar, irá vê-la esta tarde. Ela virá
também. Mas, se escolher deixar este lugar, também estará
escolhendo deixar Missy para trás.
— Essa não é uma escolha fácil — Mack suspirou.
A sala ficou em silêncio durante vários minutos enquanto
Papai dava a Mack espaço para lutar com seus próprios
pensamentos e desejos. Por fim, ele perguntou:
— O que Missy iria querer?
— Embora adorasse ficar com você hoje, ela vive onde não há
impaciência. Ela não se incomoda em esperar.
— Eu adoraria ficar com ela. — Mack sorriu diante do
pensamento. — Mas seria muito duro para Nan e meus outros
filhos. Deixe-me perguntar uma coisa. O que eu faço lá em casa é
importante? Eu apenas trabalho e cuido de minha família e dos
amigos...
Sarayu o interrompeu:
— Mack, se alguma coisa importa, tudo importa. Como você é
importante, tudo que faz é importante. Todas as vezes que você
perdoa, o universo muda; cada vez que estende a mão e toca um
coração ou uma vida, o mundo se transforma; a cada gentileza
e serviço, visto ou não visto, meus propósitos são realizados e nada
jamais será igual.
— Certo — disse Mack em tom decidido. — Então vou voltar.
Não creio que ninguém vá acreditar na minha história, mas, se eu
voltar, sei que posso fazer alguma diferença, mesmo que seja
pequena. Há algumas coisas que eu preciso... é... que quero fazer
de qualquer modo. — Ele parou e olhou para cada um. — Vocês
sabem...
Todos riram.
— E realmente acredito que vocês nunca vão me deixar nem
me abandonar, por isso não estou com medo de voltar. Bom, talvez
um pouquinho.
— É uma escolha muito boa — disse Papai. Em seguida deu
um sorriso luminoso e sentou-se ao lado dele.
Sarayu parou diante de Mack e falou:
— Mackenzie, agora que você vai voltar, tenho mais um
presente para você levar.
— O que é? — perguntou Mack, curioso.
— É para Kate.
— Kate? — exclamou Mack, percebendo que ainda a levava
como um fardo no coração. — Por favor, diga.
— Kate acredita que é culpada pela morte de Missy.
Mack ficou pasmo. O que Sarayu acabava de dizer era óbvio
demais. Fazia sentido que Kate se culpasse. Ela havia erguido o
remo que provocara a seqüência de acontecimentos, permitindo
que Missy fosse seqüestrada. Ele não podia acreditar que esse
pensamento nunca lhe tivesse passado pela cabeça. Num instante
as palavras de Sarayu abriram uma nova perspectiva na luta de
Kate.
— Muito obrigado! — disse, com o coração cheio de gratidão.
Agora tinha certeza de que precisava voltar, nem que fosse
somente por Kate. Sarayu concordou e sorriu. Por fim Jesus se
levantou, foi até uma das prateleiras e apanhou a latinha de Mack.
— Mack, achei que você iria querer...
Mack a pegou e a manteve nas mãos por um momento.
— Na verdade, acho que não vou precisar mais disso. Pode
guardar para mim? Todos os meus melhores tesouros estão
escondidos em você, de qualquer modo. Quero que você seja a
minha vida.
— Eu sou — disse a clara e verdadeira voz da confirmação.
* * *
Sem qualquer ritual nem cerimônia, eles saborearam o pão
quente, compartilharam o vinho e riram lembrando os momentos
mais estranhos do fim de semana. Mack sabia que o tempo havia
acabado, que era hora de voltar e pensar num modo de contar
tudo a Nan.
Não tinha nada para guardar na bagagem. Seus poucos
pertences presumivelmente estavam de volta no carro. Tirou a
roupa de caminhada e vestiu aquelas com as quais tinha vindo,
recém-lavadas e muito bem dobradas. Quando terminou de se
vestir, pegou o casaco e deu uma última olhada em seu quarto
antes de sair.
— Deus, o servidor — ele riu, mas depois sentiu algo
crescendo por dentro de novo, enquanto o pensamento o fazia
parar. — É mais verdadeiramente Deus, meu servidor.
Quando Mack retornou à sala, os três haviam sumido. Uma
xícara de café fumegante o esperava perto da lareira. Ele não tivera
chance de dizer adeus, mas, ao pensar nisso, achou que se
despedir de Deus parecia meio idiota. Sentado no chão, de costas
para a lareira e tomando um gole de café, sorriu. Era maravilhoso
e ele pôde sentir o calor descendo pelo peito. De repente estava
exausto com a infinidade de emoções. Como se tivessem vontade
própria, seus olhos se fecharam e Mack escorregou suavemente
para um sono reconfortante.
A sensação seguinte foi de frio, dedos endurecidos se
enfiando pela roupa e gelando a pele. Acordou de um salto e
levantou-se desajeitadamente, com os músculos doloridos e rígidos
por ter ficado deitado no chão. Olhando ao redor, viu rapidamente
que tudo estava igual ao que era dois dias antes, até a mancha de
sangue perto da lareira onde estivera dormindo.
Pulou, correu pela porta quebrada e saiu para a varanda em
ruínas. De novo a cabana era velha e feia, com portas e janelas
enferrujadas e quebradas. O inverno cobria a floresta e a trilha que
levava ao jipe de Willie. Mal se via o lago através da vegetação
de urzes e espinheiros que o rodeavam. A maior parte do cais
estava afundada e apenas algumas das pilastras maiores
continuavam de pé. Estava de volta ao mundo real. Então sorriu.
Era mais como se estivesse de volta ao mundo irreal.
Apertou o casaco contra o corpo e retornou ao carro,
seguindo suas próprias pegadas ainda visíveis na neve. Foi
tranqüila a volta até Joseph, onde chegou no escuro de um fim de
tarde de inverno. Encheu o tanque, comeu comida de gosto normal
e tentou ligar para Nan, sem sucesso. Ela provavelmente estava na
estrada, disse a si mesmo, e a cobertura do celular podia ser
precária. Resolveu passar pela delegacia para falar com
Tommy, mas depois que um rápido exame não revelou qualquer
atividade lá dentro decidiu não entrar.
No cruzamento seguinte o sinal ficou vermelho e ele parou.
Estava cansado, mas em paz e estranhamente empolgado. Não
achava que teria qualquer problema para ficar acordado na longa
viagem para casa. Sentia-se ansioso para encontrar sua
família, especialmente Kate.
Perdido em pensamentos, simplesmente passou pelo
cruzamento quando o sinal ficou verde. Não viu o outro motorista
avançando o sinal vermelho da transversal. Houve apenas um
clarão luminoso e depois nada, a não ser silêncio e escuridão.
Numa fração de segundo o jipe vermelho de Willie foi
destruído, em minutos chegaram o resgate dos bombeiros e a
polícia e em horas o corpo ferido e inconsciente de Mack foi
entregue pelo resgate aéreo no Hospital Emmanuel em Portland,
Oregon.


18. ONDULAÇÕES SE ESPALHANDO
A fé nunca sabe aonde está sendo levada, Mas
conhece e ama Aquele que a está levando.
— Oswald Chambers
E finalmente, como se viesse de muito longe, ele escutou uma
voz familiar gritando:
— Ele apertou meu dedo! Eu senti! Juro!
Mack não podia abrir os olhos para ver, mas sabia que Josh
estava segurando sua mão.
Tentou apertar de novo, mas a escuridão o dominou e ele
apagou. Demorou um dia inteiro para recuperar a consciência
outra vez. Mal podia mover outro músculo do corpo. Até mesmo
o esforço para levantar uma única pálpebra parecia avassalador,
mas o movimento foi recompensado por gritos e risos. Uma após
outra, um desfile de pessoas veio até seu único olho entreaberto,
como se estivessem olhando para dentro de um buraco fundo e
escuro que continha algum tesouro incrível. Aquilo que viam
parecia agradá-las tremendamente e elas foram espalhar a notícia.
Alguns rostos Mack reconhecia, e os que não reconhecia, ele
logo ficou sabendo, eram os de seus médicos e das enfermeiras.
Dormia com freqüência, mas parecia que cada vez que abria
os olhos isso causava uma grande empolgação. "Esperem só até eu
poder esticar a língua", pensava, "aí, sim, todo mundo vai ficar
realmente impressionado."
Tudo parecia doer. Todo o corpo reclamava quando um
enfermeiro o virava para a fisioterapia e para impedir as escaras.
Aparentemente esse era um tratamento de rotina para pessoas
que haviam ficado inconscientes por mais de um ou dois dias, mas
saber disso não tornava a coisa mais suportável.
No princípio, Mack não fazia idéia de onde estava nem de
como havia chegado àquela situação. Mal conseguia perceber
quem era. Sentia-se grato pela morfina que tirava o excesso de dor.
Nos dois dias seguintes sua mente foi clareando devagar e
ele começou a recuperar a voz. Num entra-e-sai constante,
familiares e amigos vieram desejar uma recuperação rápida ou
conseguir alguma informação que ninguém sabia dar. Josh e Kate
estavam sempre ali, ocupando-se com o dever de casa, enquanto
Mack cochilava ou respondia às perguntas que nos primeiros dias
ele se fazia repetidamente.
Num determinado ponto, Mack por fim entendeu que ficara
inconsciente durante quase quatro dias depois do acidente terrível
em Joseph. Nan deixou claro que ele tinha de dar muitas
explicações, mas por enquanto estava mais concentrada em
sua recuperação do que na necessidade de respostas. De qualquer
forma, sua memória estava envolta numa névoa e, mesmo que ele
pudesse recordar alguns pedaços, não conseguia juntá-los de
modo a fazer sentido.
Lembrava-se vagamente de ter ido à cabana, mas depois
disso as coisas ficavam turvas. Nos sonhos, as imagens de Papai,
Jesus, Missy brincando junto ao lago, Sophia na caverna e a luz e
as cores do festival na campina voltavam como cacos de um
espelho quebrado. Cada uma era acompanhada por ondas de
deleite e alegria, mas ele não sabia se eram reais ou uma
alucinação provocada por colisões entre neurônios danificados e os
remédios que percorriam suas veias.
Na terceira tarde depois de ter recuperado a consciência
acordou e encontrou Willie encarando-o, parecendo meio sem jeito.
— Seu idiota! — resmungou Willie.
— É um prazer vê-lo também, Willie — bocejou Mack.
— Onde foi que você aprendeu a dirigir? — interpelou Willie.
— Ah, já sei, é um garoto criado em fazenda que não se acostumou
com cruzamentos. Mack, pelo que ouvi dizer, você deveria ter
sentido o bafo do outro cara a um quilômetro de distância.
Mack ficou deitado, olhando o amigo falar sem parar,
tentando ouvir e compreender cada palavra, sem conseguir.
E agora — continuou Willie — Nan está furiosa e não quer
falar comigo. Ela me culpa por ter emprestado o jipe e deixado você
ir à cabana.
— Então por que eu fui à cabana? — perguntou Mack,
lutando para juntar os pensamentos. — Tudo está confuso.
Willie gemeu suplicando.
— Você tem de contar a ela que eu tentei convencê-lo a não
ir.
— Você tentou?
— Não faça isso comigo, Mack. Eu tentei convencer...
Mack sorria enquanto ouvia Willie reclamar. Se as outras
lembranças eram confusas, recordava-se com nitidez de quanto
esse sujeito gostava dele e apreciava tê-lo por perto.
De repente Mack se espantou ao perceber que Willie havia se
inclinado e sussurrava.
— Sério, ele estava lá? — Willie olhou rapidamente ao redor
para se certificar de que não havia ninguém escutando.
— Quem? — sussurrou Mack. — E por que estamos falando
baixo?
— Você sabe, Deus — insistiu Willie. — Ele estava na
cabana?
Mack achou divertido.
— Willie — ele respondeu —, não é segredo. Deus está em
toda parte. Então eu estive na cabana.
— Sei disso, gênio — reagiu Willie impetuosamente. — Não se
lembra de nada? Quer dizer, nem se lembra do bilhete? Você sabe:
o que recebeu do Papai e que estava na sua caixa de correio
quando você escorregou no gelo e bateu com a cabeça.
Foi então que a história desconjuntada começou a se
cristalizar na mente de Mack.
Subitamente tudo fez sentido quando sua mente começou a
ligar os pontos e preencher os detalhes: o bilhete, o jipe, a viagem à
cabana e cada acontecimento daquele glorioso fim de semana. As
imagens e as lembranças começaram a jorrar de volta tão
poderosamente que ele sentiu que elas seriam capazes de arrancálo
da cama e levá-lo para fora deste mundo. Enquanto se
lembrava, começou a chorar.
— Mack, desculpe. — Agora Willie estava implorando. — O
que foi que eu disse?
Mack estendeu a mão e tocou o rosto do amigo.
— Nada, Willie... agora me lembro de tudo. Do bilhete, da
cabana, de Missy, de Papai. Eu me lembro de tudo.
Willie ficou imóvel, sem saber o que pensar ou dizer, com
medo de ter forçado o amigo além do limite. Por fim, perguntou:
— Quer dizer que ele estava lá? Deus estava lá?
E agora Mack ria e chorava.
— Willie, ele estava lá! Ah, ele estava lá! Espere até que eu lhe
conte. Você nunca vai acreditar. Cara, nem eu sei se acredito.
Mack parou, perdido nas lembranças por um momento. —
Ah, é — falou finalmente. — Ele me mandou lhe dizer uma coisa.
— O quê? A mim? — Mack ficou olhando enquanto a
preocupação e a dúvida se estampavam no rosto de Willie. —
Então, o que ele disse?
Mack parou, procurando as palavras.
— Ele falou: diga ao Willie que gosto especialmente dele.
Mack viu o rosto e o maxilar do amigo ficarem tensos e poças
de lágrimas encherem seus olhos. Os lábios e o queixo de Willie
tremeram e Mack soube que o amigo estava se esforçando para
manter o controle.
— Preciso ir — sussurrou Willie, rouco. — Você terá de me
contar isso mais tarde.
Virou-se e saiu do quarto, deixando Mack às voltas com seus
pensamentos e lembranças.
Quando Nan chegou, encontrou Mack sentado e rindo. Como
ele não sabia por onde começar, deixou que a mulher falasse
primeiro. Ela o colocou a par de alguns detalhes do acidente. Ele
quase fora morto por um motorista bêbado e havia passado
por cirurgias de emergência para reparar vários ossos quebrados e
ferimentos internos. Seu estado era grave e, por isso, o seu
despertar aliviara a preocupação.
Enquanto ela falava, Mack pensou que era realmente
estranho sofrer um acidente logo depois de passar um fim de
semana com Deus. O aparente caos aleatório da vida. Não era
assim que Papai tinha dito?
Então ouviu Nan dizer que o acidente havia acontecido na
noite de sexta-feira.
— Não foi no domingo? — perguntou.
— Claro que não! Foi na noite de sexta-feira que trouxeram
você para cá de helicóptero.
As palavras dela o confundiram e por um momento ele se
perguntou se os acontecimentos na cabana teriam sido apenas um
sonho. "Talvez fosse um daqueles deslocamentos temporais de
Sarayu", pensou.
Quando Nan terminou de narrar os acontecimentos, Mack
começou a contar tudo o que lhe havia acontecido. Mas primeiro
pediu perdão, confessando como e por que mentira. Perplexa, Nan
pensou que se tratava dos efeitos do trauma e da morfina.
Toda a história de seu fim de semana — ou do dia, como Nan
repetia — se desdobrou lentamente em várias narrativas. Algumas
vezes os remédios o dominavam e ele caía num sono sem sonhos,
no meio de uma frase. Inicialmente Nan ouviu com paciência e
atenção, tentando suspender ao máximo o julgamento, pensando
que a narrativa dele pudesse ser conseqüência de algum dano
neurológico. Mas a nitidez e a profundidade das lembranças a
tocaram e lentamente foram sola pando sua dúvida. Era
intensamente vivo o que Mack estava contando e ela entendeu
rapidamente que o que quer que tivesse acontecido causara um
enorme impacto e transformara seu marido.
O ceticismo de Nan foi cedendo e finalmente ela concordou
em terem uma conversa com Kate. Mack não quis dizer o motivo, o
que a deixou nervosa, mas decidiu confiar nele. Chamaram a filha
e mandaram Josh se ocupar com alguma coisa, deixando os
três sozinhos.
Mack estendeu a mão e Kate segurou-a.
— Kate — ele começou, com a voz ainda um pouco fraca e
áspera. — Quero que você saiba que eu a amo de todo o coração.
— Eu amo você também, papai.
Vê-lo naquele estado a havia suavizado um pouco.
Ele sorriu, depois ficou sério de novo, ainda segurando a mão
da filha. — Quero falar com você sobre Missy.
Kate deu um repelão para trás, como se tivesse sido picada
por uma abelha, e seu rosto ficou sombrio. Instintivamente tentou
puxar a mão, mas Mack a segurou, o que exigiu um esforço
considerável. Ela olhou ao redor. Nan se aproximou e a envolveu
com o braço. Kate tremia.
— Por quê? — perguntou num sussurro.
— Katie, não foi sua culpa.
Agora ela hesitou, quase como se tivesse sido apanhada num
segredo.
— O que não foi minha culpa?
De novo ele precisou esforçar-se para falar, mas ela ouviu
com clareza.
— Termos perdido Missy.
Lágrimas rolaram pelo rosto de Mack enquanto ele lutava
com essas palavras simples.
De novo Kate se encolheu, dando-lhe as costas.
— Querida, ninguém culpa você pelo que aconteceu.
O silêncio dela durou apenas alguns segundos mais, antes
que a represa transbordasse.
— Mas se eu não fosse descuidada na canoa você não teria
que... — sua voz saiu pesada de acusações.
Mack a interrompeu, pondo a mão em seu braço.
— É isso que estou tentando dizer, querida. Não foi sua
culpa.
Kate soluçou enquanto as palavras do pai penetravam em seu
coração devastado.
— Mas eu sempre achei que fosse minha culpa. E achava que
você e mamãe me culpavam, e eu não queria...
— Nenhum de nós queria que isso acontecesse, Kate.
Simplesmente aconteceu, e vamos aprender a conviver com isso.
Mas vamos fazer isso juntos. Está bem?
Kate não tinha idéia de como reagir. Dominada pela emoção e
soluçando, soltou-se da mão do pai e saiu correndo do quarto.
Nan, com lágrimas descendo pelo rosto, deu um olhar
desamparado mas encorajador para Mack e saiu rapidamente
atrás da filha.
Na vez seguinte em que Mack despertou, Kate estava
dormindo ao seu lado na cama, aninhada e segura. Era evidente
que Nan pudera ajudá-la a superar parte da dor. Quando Nan
percebeu que Mack abrira os olhos, aproximou-se em silêncio para
não acordar a filha e beijou-o.
— Acredito em você — sussurrou e ele sorriu, surpreso ao se
dar conta de como era importante ouvir isso. "Provavelmente eram
os remédios que o estavam deixando assim tão emotivo", ele
pensou.
* * *
Mack melhorou rapidamente nas semanas seguintes. Menos
de um mês depois de receber alta do hospital, ele e Nan ligaram
para o recém-nomeado subxerife de Joseph, Tommy Dalton, para
falar sobre a possibilidade de fazerem uma caminhada outra vez
na área atrás da cabana. Como tudo havia revertido à desolação
original, Mack começara a se perguntar se o corpo de Missy ainda
estaria na caverna. Seria difícil explicar à polícia como sabia onde
o corpo da filha estava escondido, mas Mack achava que o amigo
lhe daria o benefício da dúvida e o ajudaria.
Tommy foi realmente solícito. Mesmo depois de ouvir a
história do fim de semana de Mack, que ele interpretou como
sendo os sonhos e pesadelos de um pai sofredor, concordou em
voltar à cabana. Queria ver Mack, de qualquer modo. Itens
pessoais haviam sido salvos dos destroços do jipe de Willie e
devolvê-los era uma boa desculpa para passarem algum tempo
juntos. Assim, numa manhã límpida de sábado, no início
de novembro, Willie acompanhou Mack e Nan até Joseph. Lá
encontraram Tommy e os quatro se dirigiram para a Reserva.
Tommy ficou surpreso ao ver Mack passar direto pela cabana
e ir até uma árvore perto do início de uma trilha. Tal como
explicara aos outros na vinda, Mack encontrou um arco vermelho
na base da árvore. Ainda mancando ligeiramente, guiou-os numa
caminhada de duas horas pelo terreno ermo. Nan ficou em
absoluto silêncio, mas seu rosto revelava claramente a intensidade
das emoções com as quais batalhava. No caminho
continuaram encontrando o mesmo arco vermelho marcado em
árvores e pedras. Quando chegaram a uma vasta área de
pedregulhos, sem hesitar Mack entrou diretamente no labirinto
de paredes rochosas.
Provavelmente nunca teriam encontrado o lugar exato se não
fosse por Papai. No topo de uma pilha de rochas diante da caverna
estava a pedra com a marca vermelha voltada para fora. A
percepção de que aquilo era obra de Papai levou Mack a quase
rir alto.
Mas encontraram e, quando ficou convencido do que estavam
abrindo, Tommy fez com que parassem. Mack entendeu a
importância do procedimento e, embora um tanto de má vontade,
concordou que deveriam lacrar de novo a caverna para protegê-la.
Retornariam a Joseph, onde Tommy poderia notificar os peritos
legistas e as agências policiais adequadas.
Durante a descida, Tommy ouviu novamente a história de
Mack, dessa vez com uma nova percepção. Também aproveitou
para orientar o amigo sobre o melhor modo de enfrentar os
interrogatórios — que logo viriam.
No dia seguinte os peritos recuperaram os restos de Missy e
guardaram o pano junto com tudo o que puderam encontrar.
Depois disso foram necessárias apenas algumas semanas até
obterem provas para rastrear e prender o Matador de Meninas. A
partir das pistas que o homem deixara para poder encontrar a
caverna de Missy, as autoridades localizaram e recuperaram os
corpos das outras meninas assassinadas.


POSFÁCIO
Bom, aí está. Pelo menos como me foi contado. Tenho certeza
de que algumas pessoas se perguntarão se a história de Mack
aconteceu de verdade ou se o acidente e a morfina simplesmente o
deixaram meio confuso. Mack continua levando sua vida normal
e produtiva e teima em garantir que cada palavra da história é
verdadeira. Todas as mudanças em sua vida, segundo ele, são
provas suficientes. A Grande Tristeza se foi e ele passa a maior
parte dos dias com um profundo sentimento de alegria.
Assim, a questão que eu me coloco enquanto redijo este texto
é: como terminar uma história destas? Talvez eu possa fazer isso
falando um pouco das transformações que ela causou em mim.
Como declarei no prefácio, a história de Mack me mudou. Não
creio que haja um aspecto da minha vida, sobretudo de meus
relacionamentos, que não tenha sido profundamente tocado e
alterado de modo importante. Se eu acho que é verdade?
Quero que tudo seja verdade. Talvez alguma parte não seja
verdadeira num determinado sentido, mas ainda assim é verdade.
Você sabe o que quero dizer. Acho que Sarayu vai ajudá-lo a
entender.
E Mack? Bom, ele é um ser humano que continua passando
por um processo de mudança, como todos nós. Só que ele aceita
bem as mudanças, enquanto que eu muitas vezes resisto a elas.
Noto que ele ama mais e melhor do que a maioria das pessoas,
é rápido em perdoar e ainda mais rápido em pedir perdão. As
transformações que ele sofreu provocaram na família e nos amigos
efeitos que nem sempre foram fáceis de entender. Mas devo lhe
dizer que nunca conheci outro adulto que leve a vida com
tanta simplicidade e alegria. De algum modo, ele virou criança de
novo. Ou, para explicar melhor, ele virou a criança que nunca teve
permissão de ser. Uma pessoa confiante e cheia de entusiasmo.
Ele consegue acolher até mesmo os tons mais escuros da
vida, vendo-os como parte de uma tapeçaria incrivelmente rica e
profunda, tecida magistralmente por invisíveis mãos de amor.
Enquanto escrevo isto, Mack está sendo testemunha no
julgamento do Matador de Meninas.
Ele quer fazer uma visita ao acusado, mas ainda não teve
permissão. Porém está determinado a vê-lo, mesmo que isso só
aconteça depois do veredicto.
Se você tiver chance de passar um tempo com Mack, logo vai
perceber que ele está esperando uma nova revolução, uma
revolução de amor e gentileza — uma revolução provocada por
Jesus, pelo que ele fez por nós e continua a fazer em um mundo
que tem fome de reconciliação e de um local que possa chamar de
lar. Não é uma revolução que pretenda derrubar nada, ou, se
derrubar, fará isso de um modo que jamais poderemos imaginar
antecipadamente. Serão os poderes silenciosos e cotidianos de
morrer, servir, amar e rir, de ternura simples e gentileza gratuita,
porque, se alguma coisa importa, todas as coisas importam. E um
dia, quando tudo for revelado, cada um de nós ficará de joelhos e
confessará, por obra e graça de Sarayu, que Jesus é o Senhor de
toda a Criação, para a glória de Papai.
Ah, uma última coisa. Estou convencido de que Mack e Nan
ainda vão lá algumas vezes, à cabana, só para ficarem a sós. Não
me surpreenderia se soubesse que ele anda até o velho cais, tira os
sapatos e as meias e, você sabe, põe os pés na água só para ver
se... bem, você sabe...
Willie
* * *