sexta-feira, 25 de maio de 2012

Morador de rua de SP reencontra família após perfil criado no Facebook

Vizinha da região onde mendigo ficava criou página na rede social. Raimundo, 73, não tinha contato com a família há mais de 20 anos.

Primeiro encontro de Raimundo com o irmão
Francisco, em outubro (Foto: Arquivo pessoal)
Morador de rua de São Paulo há mais de 30 anos, Raimundo Arruda Sobrinho, 73, reencontrou a família depois de um perfil criado para ele no Facebook. Em setembro de 2011, um de seus quatro irmãos, Francisco Tomaz Arruda, que vive em Goiânia (GO), encontrou por acaso na internet sua página na rede social.

O perfil de Raimundo no Facebook (acesse aqui) foi criado por Shalla Monteiro, moradora da região onde ele vivia há quase 19 anos, no Alto de Pinheiros, zona oeste de São Paulo.

Raimundo não entrava em contato com a família desde a metade da década de 1980. Ele saiu de casa para estudar em São Paulo no início dos anos 1960.

Sem informações precisas sobre sua localização, a família de Raimundo sempre buscou notícias sobre ele na internet. Durante todos esses anos, Raimundo já apareceu em revistas, jornais, programas de TV e inclusive documentários. “Mas a maioria do material era antigo e não informava sua localização exata”, conta Josangela Roberta, mulher de Francisco.

Em setembro de 2011, Roberta buscou na internet o nome de Raimundo para mostrar uma foto dele para a filha de Francisco. Ao fazer a pesquisa na web, elas localizaram o perfil de Raimundo no Facebook, que havia sido criado por Shalla há menos de dois meses. 

Shalla conheceu Raimundo em maio de 2011
(Foto: Arquivo pessoal)
“Conheci Raimundo em maio de 2011. Acho que foi amor à primeira vista. O que mais me chamou a atenção foi a paz e a tranquilidade que ele transmite”, conta Shalla, que criou a página no Facebook  dez dias depois do aniversário de 73 anos de Raimundo, comemorado em 10 de agosto com bolo e presentes.

“Criei o perfil como uma forma de dar reconhecimento e afeto para uma pessoa com a qual eu estava muito envolvida”, diz. Antes de criar a página no Facebook, Shalla explicou para Raimundo o que é internet e mídias sociais, e pediu sua autorização. “Ele apenas me disse: ‘se você quer perder tempo com um mendigo’”.

Ao encontrar Raimundo na rede social, Roberta levou um susto. “Mandamos imediatamente uma mensagem questionando quem havia feito a página, já que Raimundo era morador de rua”. Shalla logo entrou em contato com a família para dar todas as informações.

“Eu nunca imaginei que encontraria a família pelo Facebook, mas eu sabia que haveria alguma repercussão. Durante o tempo que convivi com ele, notei a grande popularidade de Raimundo, que sempre era cumprimentado por moradores, policiais e inclusive crianças”, diz Shalla.

Shalla montou uma placa para promover a página de Raimundo no Facebook (Foto: Arquivo pessoal)
Primeiro encontro 
Duas semanas depois do primeiro contato, Francisco desembarcou em São Paulo para reencontrar Raimundo pela primeira vez depois de mais de 20 anos. “O Facebook foi muito útil, pois quem criou o perfil tentou ajudá-lo”, opina Roberta. Francisco passou dois dias inteiros com Raimundo, que se disponibilizou a voltar para Goiás.

No fim de novembro, Roberta saiu de Goiânia em direção a São Paulo de carro para buscá-lo. “No momento que cheguei lá, ele disse que não queria voltar para não dar trabalho, pois já está velho”, relata Roberta. A família já tinha preparado um quarto para receber Raimundo com toda a estrutura necessária, inclusive com computador. Segundo Roberta, Raimundo diz escutar vozes que falam que ele ainda não está preparado para voltar. “Ele me disse que é um ser estragado socialmente e que não consegue mais conviver em um ambiente familiar”, relata Shalla.

 Andar pelo sem fim interior Catar da geometria todas as tintas que ela consumiu e esmaeceram Depois, a matéria de tudo que a natureza modela Restam as formas vazias" 

poema 'Missão', de Raimundo Arruda Sobrinho 

Dias depois, Roberta buscou ajuda para tirar Raimundo das ruas no Ministério Público de São Paulo, que pediu um dossiê com informações sobre a história de Raimundo. A resposta chegou dois meses depois. Em uma reunião no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) em 30 de março, a remoção foi agendada para 23 de abril. Nesse dia, Raimundo foi transferido ao Caps do Itaim, onde ele está até hoje. Na última quarta-feira (23), ele completou um mês fora das ruas.

No início, Raimundo precisou tomar vitaminas, pois estava muito magro. Agora, ele vai cortar o cabelo e trocar a capa de plástico que veste até hoje. “Raimundo nunca quis usar roupa porque ele não tinha onde tomar banho. Ele fala que roupa traz fungos e bactérias, e o plástico não, principalmente o preto, que ainda o mantém aquecido”, conta Roberta.

Foto da família mostra Raimundo na década de 1960 na cidade em que ele nasceu (Foto: Arquivo pessoal)
História 
Antes de ir para São Paulo, na década de 1960, Raimundo morou na casa de amigos de seus pais em Carolina (MA). Ele sempre quis estudar, e a cidade onde nasceu, Piacá (TO), era muito rural e sem estrutura. Depois de alguns anos, Raimundo resolveu ir para a capital paulista dar continuidade aos estudos no Ensino Médio.

Segundo Francisco, Raimundo foi morar na casa de amigos da família. Depois de alguns anos, esse casal mudou de cidade e Raimundo ficou sozinho. Conforme o irmão, foi a partir daí que ele deixou de mandar notícias. “Ele escrevia muitas cartas amorosas para os meus pais, uma vez por mês. Ele chegou a mandar presentes para a minha mãe. O último foi uma máquina de costura. Depois, ele sumiu”.

Em São Paulo, Raimundo foi vendedor de livros e jardineiro. “Na página do Facebook tem pessoas que lembram quando ele foi jardineiro da família”, conta Shalla. Os irmãos ainda não descobriram como Raimundo foi parar nas ruas. Conforme Shalla, Raimundo pagava 1,6 mil cruzeiros de aluguel para morar em um quartinho. “Mas chegou um momento em que a renda era menor que o aluguel. Quando Raimundo se deu conta disso, foi morar na rua”.

Na década de 1980, Raimundo participou de um programa de TV e foi reconhecido por um amigo da família, que pagou uma passagem de avião para que Raimundo fosse até Goiânia, onde Francisco viu o irmão pela primeira vez. “Ele ficou na cidade quase 20 dias, mas não gostou e pediu para voltar para São Paulo”, conta Francisco. Um dos irmãos de Raimundo, então, comprou uma passagem de ônibus para que ele retornasse à capital paulista. Desde então, a família perdeu contato com Raimundo novamente.

“Antes do reencontro em 2011, quando você questionava Raimundo se ele tinha família, ele respondia que era uma pessoa só. Depois, quando Shalla mostrou uma foto dos irmãos e colocou na mão dele, Raimundo reconheceu na hora, mesmo após anos sem vê-los, principalmente Francisco e sua irmã gêmea, que eram bebês quando ele saiu de casa”, conta Roberta.

Os poemas que Raimundo escreve em
minipáginas (Foto: Arquivo pessoal)
Poemas 
Raimundo sempre escreveu poemas, mas nunca se autodenominou um poeta, segundo Shalla. “Eu o considero um poeta da vida. Ele inclusive tem um estilo literário nas minipáginas em que escreve. Raimundo sempre assina do mesmo jeito e todos os poemas são datados”, conta.

Conforme Shalla, o sonho de Raimundo sempre foi publicar um livro. “Ele escreve o mesmo poema em diversas minipáginas e coloca um número de série atrás”. Shalla diz que essa pode ser a forma que ele encontrou para “publicar” um livro, já que entrega o mesmo poema para diversas pessoas.

Outra curiosidade é que Raimundo sempre coloca em seus poemas a data 1999 mais o número que, somado, chega ao ano atual (1999+13=2012). Shalla explica que esse é o jeito que Raimundo gosta de registrar o ano de seus poemas.

Um dos objetivos de Shalla ao criar o Facebook era mostrar o trabalho de Raimundo. “Eu queria usar a tecnologia das redes sociais para aproximar esses mundos diversos, para que as pessoas observem os moradores de rua com outros olhos, para que elas prestem atenção que é possível encontrar outros talentos como Raimundo”, diz.

Raimundo nunca escondeu que seu grande sonho sempre foi publicar um livro. “Ele conta que chegou a ir a várias editoras, que não lhe deram atenção”, diz Shalla. Depois de voltar a conviver com a família, o próximo passo será concretizar o sonho de Raimundo, segundo Roberta. “Já estamos preparando tudo para que ele volte e vamos lutar para publicar um livro dele”.

Fonte: Laura Brentano Do G1, em São Paulo